É importante lembrar que a possibilidade de o Fisco rediscutir suas próprias decisões administrativas sempre foi rejeitada pelo Poder Judiciário.
Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada. A célebre frase de H.L. Mencken vem bem a calhar ao Projeto de Lei nº 6.064/16, que acaba de ganhar regime de urgência na Câmara dos Deputados.
Certamente imbuído de boa vontade, este PL procura resolver o problema do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
O Carf é o órgão encarregado de julgar processos administrativos sobre tributos federais. Sua principal característica é a composição paritária: ele é formado por conselheiros representantes do Fisco (fiscais) e dos contribuintes (ex-advogados, contadores etc.), sempre em igualdade de número.
É importante lembrar que a possibilidade de o Fisco rediscutir suas próprias decisões administrativas sempre foi rejeitada pelo Poder Judiciário.
O problema é que este formato permite que as votações terminem empatadas, hipótese em que o voto de qualidade atribuído ao presidente (este sempre representante do Fisco) prevalece e determina o resultado. Embora este formato exista há quase um século, o tema só ganhou maior repercussão recentemente, após a Operação Zelotes, quando se verificou um expressivo aumento do uso do voto de qualidade desfavoravelmente aos contribuintes.
A discussão sobre a possibilidade de uso do voto de qualidade em favor do Fisco já chegou ao Judiciário e existe, inclusive, uma ação direta de inconstitucionalidade proposta pela OAB, aguardando julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nas instâncias inferiores já há diversas decisões favoráveis aos contribuintes.
Pois bem. O Projeto de Lei nº 6.064 propõe uma solução simples: em caso de empate, deverá prevalecer a interpretação mais favorável ao contribuinte. Só que há uma contrapartida: em tais casos, o Fisco poderia recorrer ao Poder Judiciário contra a decisão de mérito do Carf.
Aqui mora o perigo.
Ao lado da alta carga tributária e da complexidade de nosso sistema tributário, outro de nossos maiores problemas é a enorme insegurança jurídica que enfrentamos em nosso país. Contribui para esse quadro o excesso de judicialização e, consequentemente, um número de processos sem precedente em qualquer outra parte do mundo. Some-se a isso o cenário de frequentes mudanças jurisprudenciais e o resultado é evidente: insegurança jurídica. Chega um momento em que se torna difícil dizer o que é certo ou errado.
Toda essa instabilidade e imprevisibilidade gera aumento dos custos de conformidade (custo Brasil), prejudicando a competitividade de nossa economia. Isso é inclusive pior do que o grande peso do Estado. Sem saber qual alíquota ou regime a ser aplicado, o empresário com frequência não sabe exatamente quais custos tributários deve incorporar em seu preço. São claras também as distorções na concorrência.
Tudo. Pois a possibilidade de o Fisco levar ao Judiciário questões já decididas na via administrativa contribuiria para todos os problemas mencionados acima, e criaria ainda um problema adicional: a eternização dos litígios tributários. Aquele processo que já tomou cinco ou oito anos na esfera administrativa estaria sujeito a outros tantos anos de discussão judicial. O efeito seria: mais insegurança jurídica, a fragilização das instituições (Carf, neste caso) e o aumento do número de processos judiciais.
É importante lembrar que a possibilidade de o Fisco rediscutir suas próprias decisões administrativas sempre foi rejeitada pelo Poder Judiciário. Há decisões antigas tanto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto do Supremo sobre o tema.
Para o STJ (MS nº 8.810-DF, julgado pela primeira Seção em 23/4/2003) isso seria litigar contra fato próprio (se ele mesmo, Fisco, representado por um de seus órgãos, considerou indevida uma cobrança, ele não pode ressuscitar esta questão no Judiciário). Na mesma linha, já há meio século o Supremo se pronunciou no sentido de que a decisão administrativa faz coisa julgada, sendo, portanto, definitiva (RE nº 68.253-PR, de 1969).
Há um detalhe importante: embora o PL seja claro ao limitar o recurso do Fisco ao Poder Judiciário apenas aos casos julgados por voto de qualidade, a fundamentação usada na exposição de motivos do PL é perigosamente muito mais ampla. Alega-se que se o contribuinte pode recorrer ao Judiciário quando perde no Carf, o Fisco também deveria ter essa possibilidade.
Embora esta ideia não proceda, já que a garantia de acesso ao Poder Judiciário é direito fundamental do cidadão, e não do próprio Estado, não é difícil imaginar que em breve o Fisco poderia tentar ampliar este limite, para rediscutir judicialmente qualquer decisão administrativa que lhe for contrária.
A verdade é que o projeto é mesmo inconstitucional. O princípio da ampla defesa e contraditório é uma garantia constitucional aplicável também ao processo administrativo (art. 5, LV). Ele traz implícito não apenas o direito de se defender na esfera administrativa, mas também, e por óbvio, o direto do contribuinte a uma decisão administrativa. E esta decisão precisa ser respeitada. A possibilidade de o Fisco contestar judicialmente esta decisão fere aquela garantia constitucional.
Diante disso, acreditamos que Projeto de Lei nº 6.064/16 traz um grande retrocesso e merecer ser rejeitado pelo Congresso Nacional. O que o Brasil precisa é de instituições mais fortes, mais segurança jurídica e menos complexidade. Em matéria tributária e, particularmente, em relação ao Carf, isso se traduz na necessidade de maior imparcialidade e conhecimento técnico. São esses fatores que contribuirão para decisões mais justas e acertadas. Elas não precisam e nem podem ser submetidas a revisão judicial.
Por Daniel Vitor Bellan
Fonte: Valor Econômico-12/06/2019.
https://www.valor.com.br/legislacao/6302647/voto-de-qualidade-no-carf-e-o-pl-n-606416