Está pautado para o fim de março o que deve ser o julgamento tributário mais importante desde o começo de 2022 no Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte analisará, por meio do plenário virtual, a constitucionalidade do dispositivo que prevê o desempate pró-contribuinte no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
O desempate favorável às pessoas físicas e jurídicas veio substituir o voto de qualidade, por meio do qual o presidente do colegiado, que representa o fisco, profere voto duplo, dando a palavra final em caso de empate. Vale lembrar que o Carf é um órgão paritário, com colegiados formados em igual número por representantes do fisco e dos contribuintes. Com a regra anterior (que ainda é usada em alguns casos, como explicarei à frente), a esmagadora maioria dos empates eram decididos de forma favorável aos interesses da Fazenda Nacional.
O cenário, porém, mudou a partir de abril de 2020, quando o presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei do Contribuinte Legal (Lei 13.988/2020) com uma alteração na Lei 10.522/2002. Foi adicionado o artigo 19-E à norma para prever que “em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade”, devendo a questão ser resolvida a favor do contribuinte.
Nas ADIs em análise no STF, o principal questionamento ao desempate pró-contribuinte vem do fato de a Lei do Contribuinte Legal, resultante da conversão em lei da MP 899/19, instituir a transação tributária. O dispositivo seria, aos olhos das organizações que foram ao Supremo, um jabuti, ou seja, um elemento que não guarda relação ao tema original da MP.
Mas antes de passar à discussão no STF vamos voltar ao Carf. Isso porque menos de um mês após a edição da Lei do Contribuinte Legal o Brasil começou a sentir com mais intensidade a chegada da Covid-19, e os tribunais foram fechados. As turmas ordinárias e a Câmara Superior do Carf ficaram paralisadas entre abril e junho, até que o conselho retomou suas atividades de forma virtual.
O fato fez com que, em um primeiro momento, os efeitos do desempate pró-contribuinte fossem pouco sentidos, já que no formato virtual o Carf optou inicialmente por analisar apenas casos de até R$ 1 milhão. As grandes teses antes decididas por voto de qualidade no conselho não entraram em pauta por conta do teto de julgamentos, e não foi possível perceber o impacto da alteração no Carf.
Uma das principais polêmicas relacionadas ao tema antes de 2021 foi a restrição ao uso do novo mecanismo de desempate. Por meio da portaria 260/20, o Ministério da Economia definiu que o voto de qualidade ainda deveria ser usado em casos nos quais não é discutida a exigência de crédito tributário, como pedidos de compensação e embargos de declaração.
Com o tempo, porém, o teto de julgamento no Carf começou a ser elevado, chegando aos atuais R$ 36 milhões. E junto à elevação puderam ser sentidos com mais intensidade os efeitos do desempate pró-contribuinte, com teses relevantes que antes eram decididas pelo voto de qualidade passando a ser definidas a favor dos contribuintes.
Um exemplo desse movimento é a tese dos Juros Sobre Capital Próprio (JCP) extemporâneos. Na Câmara Superior do Carf era certa a derrota em casos de distribuição de JCP acumulados em anos anteriores ao do pagamento, mas o cenário mudou a partir de setembro de 2021, com a aplicação do desempate pró-contribuinte.
Outro tema alterado está relacionado à tese da “CSLL coisa julgada”: a possibilidade de contribuintes serem cobrados pela Receita a recolherem a contribuição mesmo com ações transitadas em julgado reconhecendo a irregularidade do tributo. A disputa tem origem no fato de em 2007 o STF ter reconhecido a constitucionalidade da CSLL. Alguns contribuintes, porém, conseguiram decisões favoráveis antes do precedente do STF.
Processos sobre o tema, que também será julgado pelo STF, têm sido resolvidos de forma favorável aos contribuintes na Câmara Superior do Carf desde agosto. No Supremo a discussão sobre coisa julgada consta nos REs 949.297 e 955.227, em pauta para 11 de maio.
A discussão sobre o desempate pró-contribuinte torna-se relevante à medida que o Carf estuda a volta das sessões presenciais, sem o limite de valor dos processos. Abre-se a possibilidade de aplicação do mecanismo para os casos bilionários que tramitam no conselho, e em caso de vitória do contribuinte no tribunal administrativo não é possível à Fazenda Nacional recorrer à Justiça.
Foi um longo prefácio para chegar às ADIs 6399, 6403 e 6415, que entrarão na pauta do STF a partir de 23 de março. As ações foram propostas pela PGR, pelo Partido Socialista Brasileiro e pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, que questionam principalmente o fato de o desempate pró-contribuinte não ter relação com a MP 899/19.
Como um dos argumentos para a manutenção da sistemática antiga, a PGR toma como base um dado do Sindifisco Nacional, que defende que o desempate pró-contribuinte implicaria em impacto de R$ 60 bilhões anuais aos cofres públicos. De acordo com documento citado na petição inicial, os recursos julgados por voto de qualidade somaram, entre 2017 e 2019, R$ 221 bilhões. Do total, R$ 177 bilhões de créditos tributários foram julgados a favor da Fazenda.
Por enquanto o placar no Supremo está em 1 a 1, com o ex-ministro Marco Aurélio, relator, votando pela volta do voto de qualidade. O ministro Luís Roberto Barroso abriu divergência para manter o desempate pró-contribuinte, prevendo, entretanto, que em caso de derrota no Carf a Fazenda Nacional possa ir ao Judiciário.
A posição de Barroso foi uma surpresa a advogados e procuradores, já que o pedido de autorização para que a Fazenda vá à Justiça não consta em nenhuma das ADIs.
O cenário, como pode se ver, é de incerteza. Além da dificuldade de prever como será decidido o tema no STF, ficam dúvidas adicionais: em caso de declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo, como ficam os processos finalizados no Carf com base no desempate pró-contribuinte? Será possível a reabertura de processos já finalizados na esfera administrativa?
São dúvidas complexas em um tema que tem o poder de unir Carf e STF. Agora é aguardar pelo dia 23.
Fonte: JOTA/BÁRBARA MENGARDO