VALORAÇÃO DA PROVA E AS CAMADAS DE LINGUAGEM DO DISCURSO: O PAPEL DO JUIZ HUMANO E A VERDADE CONSTRUÍDA “EX-MACHINA”, POR BIANOR ARRUDA BEZERRA NETO
No filme “Blade Runner”, clássico da ficção científica de 1983, dirigido por Ridley Scott, há uma empresa de tecnologia chamada Tyrrel. Ela fabrica uma inteligência artificial humanoide tão perfeita que se torna praticamente indistinguível de um ser humano comum. Eles são conhecidos como replicantes e desempenham relevante papel na humanidade, porém alguns deles se tornam nocivos à sociedade. Com isso, instala-se uma desconfiança sobre os reais objetivos dessa empresa. É então criada uma força especial para caçar e eliminar os replicantes maléficos. Essa força é composta pelos “Blade Runners”, os caçadores de androides.
No início do filme, há um diálogo, que se passa no interior da empresa Tyrrel, entre Rachel (Sean Young), uma replicante, e Deckard (Harrison Ford), um ex-“Blade Runner” que volta à ativa:
Rachael: Do you like our owl?
Deckard: It’s artificial?
Rachael: Of course it is.
Deckard: Must be expensive.
Rachael: Very.
Rachael: I’m Rachael.
Deckard: Deckard.
Rachael: It seems you feel our work is not a benefit to the public.
Deckard: Replicants are like any other machine – they’re either a benefit or a hazard. If they’re a benefit, it’s not my problem.
Após o diálogo, a coruja (owl) artificial levanta voo de forma exuberante, deixando claro que replicantes emulam seres vivos com perfeição. O voo da Ave de Minerva, que na filosofia representa o despertar da consciência crítica, sempre ocorre durante a noite. A escuridão da noite é uma metáfora para os momentos de dificuldades da cultura humana: a inteligência artificial é positiva ou negativa para a humanidade? O próprio enredo do filme já anuncia: depende.
Na saga para eliminar a má inteligência artificial, surge um dos maiores riscos para os “Blade Runners”: confundir um humano com a IA e eliminá-lo por engano.
Para evitar essa tragédia, cria-se o chamado teste “Voight-Kampff”. É um teste de empatia. Ele consiste em um procedimento de detecção de emoções para distinguir humanos de replicantes. Ele mede respostas fisiológicas a perguntas emocionalmente provocativas, baseando-se na ideia de que replicantes, por não serem genuinamente humanos, têm dificuldade em reagir com empatia e emoções autênticas.
O teste avalia várias respostas involuntárias, como dilatação das pupilas, padrões de respiração e outras microexpressões faciais. O operador faz perguntas que abordam temas sensíveis – geralmente envolvendo dilemas morais ou cenas de potencial crueldade com animais – para verificar se o sujeito exibe reações emocionais esperadas. A ausência dessas reações ou respostas inadequadas à provocação emocional é interpretada como um indicativo de que o indivíduo é um replicante.
Esse método é central na narrativa do filme, já que a linha entre humano e replicante se torna cada vez mais tênue, desafiando tanto Deckard quanto o espectador a reconsiderar o que define a humanidade. Para se ter uma noção da dificuldade, mesmo sabendo que ela é uma replicante, ou seja, uma IA, Deckard se apaixona por Rachel.
Deckard : Do you love me?
Rachael : I love you.
Deckard : Do you trust me?
Rachael : I trust you.
A Ave de Minerva, então, está ali na cena para anunciar uma nova verdade, até então desconhecida dos humanos: a verdade a partir das narrativas e múltiplas camadas de linguagens postas pela máquina. Essa nova verdade pode servir aos humanos? Como é que a IA generativa disponível ao público em 2024, ao produzir textos, significa o mundo? Que critérios de verdade ela usa? É possível usar a IA para escrever decisões e sentenças que valoram provas e definem fatos?
O processo de criação de textos por Inteligência Artificial (IA) generativa envolve a construção de frases a partir de unidades básicas chamadas “tokens”, que representam
palavras, partes de palavras ou até sinais de pontuação1. A IA utiliza modelos treinados para prever e selecionar o próximo “token” com base no contexto dos “tokens” anteriores, construindo a narrativa de forma coerente e ajustando-se ao estilo e ao tema solicitado. Para esse treinamento, a IA acessa e tem à disposição um banco de dados gigantesco. A partir dele e de seu processo preditivo, baseado em probabilidade, o algoritmo sugere a palavra certa na posição certa e constrói o texto. Esse processo é iterativo e busca maximizar a coerência e a adequação do texto a cada novo token adicionado, formando uma sequência significativa e contextualmente apropriada.
O raciocínio da máquina, portanto, é probabilístico2, posicionando termos em uma grande nuvem de palavras, a partir do qual oferece um texto estruturado e o mais coerente possível. Porém, não há consciência. Há a linguagem do senso comum, mas não há intuição sobre o senso comum, ou seja, não há a valoração. Há racionalidade e pode haver método, mas, novamente, não há a intuição e, portanto, não há valoração na significação do mundo.
Se não há valoração, também não há “explicabilidade” a respeito da significação do mundo, dos critérios utilizados e, portanto, do processo interpretativo.
O objetivo deste texto é fazer uma reflexão filosófica, a partir das escolas realista, racionalista e da filosofia da linguagem, com o objetivo de entender como o humano lida com a realidade, utiliza critérios de verdade, valora provas e constrói seu discurso sobre a verdade.
Aquele que encontra a verdade deve ser capaz de justificá-la com base em evidências ou em conceitos metodicamente formulados e logicamente articulados dentro de um sistema de referência.
Bianor Arruda Bezerra Neto
Doutor pela PUC/SP
Juiz Federal na 5.ª Região
Professor do IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários