A tributação do haircut desestimula a recuperação de empresas em crise, na contramão do que determina o artigo 47 da Lei de Falências.
A pandemia de Covid-19 gerou impactos negativos à economia brasileira, trazendo consigo uma considerável diminuição de receita a diversos setores, de maneira a levar muitas empresas a buscarem a via da recuperação judicial, para se reerguerem e subsistirem.
Conforme artigo 47 da Lei de Falências, a recuperação judicial visa prover a superação da crise econômico-financeira da sociedade empresária devedora, para a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos direitos dos credores, tendo como norte o princípio da preservação da empresa, da sua função social, bem como o estímulo à economia.
A tributação do haircut desestimula a recuperação de empresas em crise, na contramão do que determina o artigo 47 da Lei de Falências.
Optar pela recuperação judicial não é uma escolha fácil e, em contrapartida ao alívio das dívidas a serem reestruturadas, há uma série de limitações à gestão da empresa recuperanda. As concessões dos credores representam um esforço que só valerá a pena se a empresa em recuperação conseguir se reerguer, fim este que a lei falimentar visa garantir impondo um certo rigor na sua administração.
Um dos mais eficientes instrumentos para a reestruturação das dívidas na recuperação judicial é o chamado haircut, que consiste no perdão, pelos credores, de dívidas do recuperando, gerando a este uma diminuição ou eliminação do passivo e, consequentemente, um acréscimo patrimonial.
No que diz respeito aos efeitos fiscais do haircut, existe em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei nº 4.458/2020 que pretende isentar da tributação pelo PIS e pela Cofins estas receitas geradas com a diminuição do passivo perdoado.
Entretanto, pelo projeto, as receitas do haircut deverão compor a base de incidência do IRPJ e da CSLL. A atenuante é que esta receita não ficará sujeita à trava dos 30%, para ser compensada com prejuízos fiscais. Ainda, há a previsão de dedutibilidade das obrigações incorridas pela empresa em seu plano de recuperação judicial.
De toda sorte, atualmente, quando há um aumento líquido no patrimônio de um contribuinte, causado pela diminuição do seu passivo em virtude de perdão de dívida, a RFB entende que este aumento patrimonial é renda tributável pelo IRPJ e CSLL, conforme resposta à consulta proferida na Solução de Consulta nº 17 de 2010.
Tal entendimento é endossado por alguns julgamentos já realizados no âmbito do Carf, no sentido de que o perdão de dívida deve compor a base de cálculo do IRPJ e da CSLL (menciono o Acórdão nº 1401-001.114, da 4ª Câmara da 1ª Turma Ordinári do Carf).
Muito embora os efeitos tributários do gozo do perdão de dívida (da perspectiva do devedor) já tenham sido analisados pela RFB e pelo Carf, esta situação ainda não foi avaliada sob a égide de um devedor em recuperação judicial.
Assim, não obstante este entendimento (de que o perdão de dívida é receita contábil que, por trazer aumento líquido ao patrimônio do contribuinte beneficiado, deve compor o lucro fiscal), é certo que para os casos de recuperação judicial, devemos levar em consideração algumas peculiaridades, que tornam a receita do haircut intributável.
Como já mencionado, o haircut concedido na recuperação judicial só se dá com a finalidade exclusiva de preservar a existência da pessoa jurídica, para que esta continue a gerar lucros, manter empregos e cumprir com sua função social, conforme determinado no artigo 47 da legislação falimentar.
Sem este perdão, a subsistência da empresa restaria prejudicada, de modo que tal receita não representa riqueza disponível. Não é disponível pois será empregada na manutenção da atividade empresarial, dentro dos ditames estabelecidos pelo plano de recuperação.
Pelo que diz o artigo 43 do Código Tributário Nacional, a exigência do imposto de renda pressupõe que, antes da sua tributação, a riqueza nova deva estar disponível, de modo que o contribuinte possa dar a ela a destinação que melhor lhe aprouver. Só assim haverá capacidade contributiva capaz de autorizar a tributação da renda. E, como se vê, não é o que ocorre com o perdão de dívida concedido sob o rigor de um plano de recuperação judicial.
Ademais, essa pretensa tributação se mostra uma verdadeira injustiça, já que, enquanto os credores se organizam e abrem mão de parte de seu direito creditório, concedendo perdão à empresa em recuperação, para que esta possa se reerguer, o Fisco irá enriquecer às custas deste esforço dos credores, onerando a recuperanda. Neste cenário de injustiça, quanto maior o perdão, maior será o valor a ser a ser arrecadado pela RFB da empresa devedora.
É um verdadeiro contrassenso, pois além de enriquecer às custas das concessões dos credores, em última análise, a tributação estatal desvirtuará o plano de recuperação de uma empresa, que recebeu um perdão de dívida exatamente pelo fato de sua crise econômico-financeira não permitir o cumprimento da obrigação.
Em resumo, a tributação do haircut desestimula a recuperação de empresas em crise, na contramão do que determina o artigo 47 da Lei de Falências, além de violar os limites de incidência do imposto de renda, previstos no artigo 43 do CTN.
Muitos conhecem a célebre frase proferida pelo Justice John Marshall, da Supreme Court of United States: “The power to tax, involves the power to destroy.”
Apesar de proferida em situação distinta, esta máxima muito bem se aplica ao cenário aqui tratado, de sorte que o poder de tributar a renda deve se ater aos limites de sua hipótese legal de incidência, não podendo onerar um perdão de dívida estritamente necessário à sobrevivência da empresa devedora.
Valor Econômico – Por Caio Malpighi, 8 de outubro de 2020