Não há dúvidas de que um dos relevantes empecilhos ao crescimento do setor de tecnologia está na incerteza da provisão de custos tributários, decorrente da atual falta de segurança jurídica sobre a aplicação de leis vigentes sempre que o assunto é a 4a Revolução Industrial e seus termos conexos, como cloud computing, Internet das Coisas (IoT), Inteligência Artificial (IA), big data, softwares, etc.
Nesse sentido, percebeu-se que se consideradas, desde o início de 2017, as Soluções de Consulta[1] realizadas pela Receita Federal, 55 dizem respeito à tributação de softwares. Dada a relevância do tema, o presente artigo visa, então, analisar os critérios majoritariamente utilizados pela RFB no período mencionado, para decidir sobre a natureza e, por consequência, a tributação do licenciamento das plataformas.
Para isso, tem-se como ponto de partida a definição de software e as particularidades destes programas que são mais citadas pela RFB, para, a partir daí, analisar as principais definições utilizadas para o negócio jurídico representado no licenciamento de software.
Definição de software
A definição legal (e abrangente) de software como sistema operacional pode ser encontrada no art. 1o da Lei 6.609/1998[2], que dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual a programa de computador. A Lei, é importante ressaltar, é utilizada para a proteção de softwares em geral, como aplicativos, SaaS (Software as a Service) e SaaP (Software as a Product), já que, à época da legislação, ainda não se falava nas referidas tecnologias.
Software, a partir disso, pode ser entendido como a inclusão de programas em um sistema computacional (de qualquer natureza) que aceitem comandos do usuário e forneçam serviços desejados tanto ao usuário quanto aos programas anteriormente instalados. Estes programas são conhecidos coletivamente como sistemas operacionais.[3]
Seja qual for das modalidades de software ofertadas aos usuários, a legislação proíbe o uso ou a comercialização de software sem a devida licença de quem detém o direito de exploração (ou seja, do criador ou dos criadores da inteligência por trás do sistema), uma vez que o programa de computador é protegido pela Lei 9.6010/1998 – Lei de Direitos Autorais[4]. Nesse contexto, obrigatoriedade do contrato de licenciamento é explicada pelo art. 9o da Lei n. Lei 6.609/1998[5], sem deixar espaços para interpretações divergentes.
O contrato de licenciamento de uso pode ser firmado em caráter que melhor servir ao negócio: permanente ou temporário, exclusivo ou não, e só será afastado se a intenção das partes abarcar a transferência da tecnologia em si (art. 11), e não apenas a permissão de utilização do software por terceiro.[6]
O contrato funciona no lugar da compra e venda, e, como bem definido pela Solução de Consulta Cosit 123/2014, “é referente à autorização de uso do bem, por meio da qual o licenciante, sem transferir a propriedade intelectual do produto, permite que o adquirente-licenciado utilize o software contratado”.
Ao adquirir um software, dessa forma, o consumidor final estará adquirindo uma licença de uso para utilizar do programa, não podendo sequer reproduzi-lo, ressalvada uma cópia de segurança (backup), sob pena de configurar conduta criminosa (art. 12 e seguintes da Lei n. Lei 6.609/1998).
Soluções predominantes: como determinar qual relação jurídica representa o licenciamento
Se o critério utilizado for o de interpretação conforme a Lei Complementar (critério que reconhece a lei como instrumento primeiro, principal e em certos aspectos, definitivo para resolver conflitos de interpretação em matéria tributária), tem-se que o licenciamento de software seria necessariamente um serviço, por previsão expressa da Lei Complementar (LC) 116/2003, que dispõe sobre os serviços a serem tributados por ISS. Na lista de serviços anexa à LC, estão:
1 – Serviços de informática e congêneres.
1.01 – Análise e desenvolvimento de sistemas.
(…)
1.05 – Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação.
No entanto, apesar de algumas Soluções de Consulta aplicarem a conclusão dos programas como serviços, sobretudo os chamados SaaS em nuvem[7], a interpretação não é majoritária. Vejamos.
Software como bem ou mercadoria
Desde a conhecida manifestação do STF no RE 176.626, de 1998, foi definida a percepção que se tornou referência de interpretação nacional acerca da percepção da relação jurídica que representa o licenciamento de software. No julgamento, discutia-se se o software poderia ser considerado mercadoria, nos casos em que fosse licenciado em larga escala.
No julgamento, a primeira turma do STF definiu que a disponibilização em massa de softwares visando a revenda de exemplares prontos superaria o intuito legislativo para o qual foi pensado o instituto do licenciamento, ou seja, a simples cessão de direitos autorais. Constitui, assim, “genuínas operações de mercadoria, sujeitas ao ICMS”.
O entendimento, intitulado de critério de “encomenda e personalização”, é largamente aplicado até os dias de hoje[8], apesar de, à época, o STF estar se referindo aos softwares comercializados por meio físico[9].
A partir disso, firmou-se a posição de que os programas de computador desenvolvidos para clientes, de forma personalizada, geram incidência de ISS (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza), enquanto sobre o software de prateleira incide o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços)[10].
O critério é utilizado pela maioria das Soluções de Consulta publicadas nos últimos dois anos, citando-se, como exemplo, a Disit/SRRF09 n. 9022/2018, Disit/SRRF09 n. 8056/2017, Cosit 241/2017, Cosit 303/2017, dentre outras.
No entanto, a interpretação tem sido rechaçada por recentes Soluções de Consulta, sobretudo atinentes à exportação e importação de software. Ao que parece, a RFB deu um passo atrás na discussão que prevalece desde 1998, e passou a interpretar que software, por envolver contrato de licenciamento oriundo da cessão de direitos autorais, não poderia ser considerado mercadoria ou serviço. É a posição que se explica no tópico a seguir.
Software como cessão de direitos autorais
Para as consultas Cosit 431/2017, Cosit 65/2018, Cosit 146/2019, o fato da comercialização das plataformas ser autorizada mediante licença é suficiente para identificar os valores recebidos como royalties oriundos de uma cessão de direitos – e, como cessão de direitos, não assumiria características nem de venda de bens, nem de prestação de serviços.
O entendimento já foi utilizado tanto para licenciamento do direito de revenda (ou seja, licenciamento para empresa intermediária) como para licença de uso (venda ao usuário final). É o que se percebe dos seguintes trechos da Solução de Consulta Disit/SRRF09 n. 9022 de 2018 e Solução de Consulta Disit n/ 6014/2018, respectivamente:
- Disit/SRRF09 n. 9022 de 2018
As importâncias remetidas (…) sob qualquer forma, como remuneração pelo direito de distribuir ou comercializar programa de computador (software), enquadram-se no conceito de royalties. Tais operações, por envolverem o licenciamento (autorização para usar ou explorar comercialmente direito patrimonial) dos direitos de propriedade intelectual se enquadram no conceito de intangíveis (…) (grifo acrescido)
- Solução de Consulta Disit n/ 6014/2018
A decisão referida tratou de analisar apenas o “licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador”, previsto no art. 9o da Lei no 9.609, de 1998 (…).
(….)
E, no caso dos softwares, o fato de sua comercialização ser autorizada mediante licença é suficiente para identificar a natureza jurídica dos pagamentos efetuados como royalties.
Contudo, vale mencionar que em nova contradição, a Consulta Disit n. 6014/2018, logo acima mencionada, traz divergência: Pela interpretação apresentada, a empresa intermediária estaria vendendo um produto ao usuário final, enquanto o licenciante estaria cedendo seus direitos autorais, e, portanto, recebendo royalties.
Para a preocupação das empresas de TI, a Solução de Divergência n. 2 – Cosit de 2019 veio, ao que aparenta, para pacificar o entendimento do órgão administrativo.
A solução de divergência tratou do cenário contraditório que aqui se expõe: analisou cinco soluções de consulta que entendiam o licenciamento de software na visão dicotômica do chancelada pelo STF (naquele caso, a interpretação era como serviço), e as contrapôs ao entendimento contrário de outros cinco pronunciamentos, no sentido de que os valores relativos à remuneração pelo licenciamento de direitos do autor relativos a computador não poderiam ser entendidos como serviço.
Ao final, firmou-se o seguinte entendimento: “constata-se que o pagamento de royalties relativos a programa de computador (software) (…) não se trata de uma prestação de serviços.”
Possíveis implicações tributárias e a visão dos tribunais
Uma vez que a Solução de Consulta tem efeito vinculante no âmbito da Receita Federal do Brasil (art. 9o da Instrução Normativa 1396/2013), certo é que as empresas que trabalham com licenciamento de software devem ficar atentas a possíveis autuações relacionadas ao novo posicionamento acima elencado.
Uma das implicações a ser destacada é, por exemplo, o recolhimento de PIS e COFINS sobre pagamentos recebidos por licenciamento de software a clientes domiciliados no exterior (exportação de software), já que a isenção das contribuições para exportações, previstas respectivamente no art. art. 5º da Lei nº 10.637/2002 e art. 6º da Lei nº 10.833/2003 abarcam tão somente mercadorias e serviços. Veja-se, como exemplo, a conclusão da Solução de Consulta abaixo:
CONTRIBUIÇÃO PARA O PIS/PASEP EMENTA: EXPORTAÇÃO. ROYALTIES. INCIDÊNCIA. Os royalties recebidos do exterior, em pagamento pelo licenciamento de tecnologia, não configuram receita de venda de mercadorias ou de prestação de serviços, razão pela qual não se enquadram nas hipóteses de não incidência da Contribuição para o PIS/Pasep previstas no art. 5º da Lei nº 10.637, de 2002. DISPOSITIVOS LEGAIS: Lei nº 10.637, de 2002, art. 5º. ASSUNTO: CONTRIBUIÇÃO PARA O FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL – COFINS EMENTA: EXPORTAÇÃO. ROYALTIES. INCIDÊNCIA. Os royalties recebidos do exterior, em pagamento pelo licenciamento de tecnologia, não configuram receita de venda de mercadorias ou de prestação de serviços, razão pela qual não se enquadram nas hipóteses de não incidência da Cofins previstas no art. 6º da Lei nº 10.833, de 2003. DISPOSITIVOS LEGAIS: Lei nº 10.833, de 2003, art. 6º.
Ainda assim, apesar da possibilidade de os contribuintes se virem surpreendidos por lançamentos tributários advindos do posicionamento da Receita Federal, que se mostra em verdadeiro descompasso com o cenário atual de aplicativos e plataformas em geral, é necessário ressaltar que o posicionamento dos tribunais permanece aplicando a interpretação da natureza jurídica de licenciamento de software conforme o posicionamento do STF, manifestado em 1998, conforme se vê da recente decisão a seguir, mencionada pelo STJ:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ART. 535 DO CPC/1973. VIOLAÇÃO. INEXISTÊNCIA. FUNDAMENTO AUTÕNOMO. IMPUGNAÇÃO. AUSÊNCIA. PREQUESTIONAMENTO. INOCORRÊNCIA. SOFTWARE DE PRATELEIRA. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE.
(…)
5. Hipótese em que o Tribunal Regional Federal, com base no acervo probatório, decidiu pela não incidência do IRRF em razão de a parte autora ter adquirido o software comercial “de prateleira”, situação que afastaria o pagamento de direitos autorais/royalties, não sendo possível o reexame na via do especial. 6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido. [11]
Dessa forma, apesar de as recentes Soluções de Consulta, ao que parece, deixarem de lado as conclusões do STF no RE 176.626 de 1998, onde foi firmada a convicção de que softwares licenciados em grande escala superam a natureza originária de licenciamento de uso, não podendo os valores recebidos a este título serem compreendidos pela definição de royalties, a jurisprudência continua, do que se vê, reiterando posicionamento do STF. E, no descompasso entre o fisco e a jurisprudência, a busca pela intervenção do Poder Judiciário pode se fazer necessária, em prol da segurança jurídica dos contribuintes licenciantes.
[1] Instrumento que possibilita resposta oficial sobre a interpretação dada pela Fazenda Pública à aplicação de tributos federais.
[2] Art. 1o Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.
[3] ENGLANDER, Irv. A Arquitetura de Hardware Computacional, Software de Sistema e Comunicação em Rede: Uma abordagem da Tecnologia de Informação. 4. ed. Rio de Janeiro: LTCE. p. 388.
[4] Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: (…) XII – os programas de computador;
[5] Art. 9o O uso de programa de computador no País será objeto de contrato de licença. Parágrafo único. Na hipótese de eventual inexistência do contrato referido no caput deste artigo, o documento fiscal relativo à aquisição ou licenciamento de cópia servirá para comprovação da regularidade do seu uso.
[6] A lei do software prevê que a entrega pelo fornecedor do código-fonte dos programas é condição indispensável para essa transferência (art.11). Assim, somente caracteriza transferência de tecnologia o acesso ao código-fonte dos programas que permite realizar modificações nos produtos adquiridos para revenda.
[7] Solução de Consulta Cosit 499/2017 e Solução de Consulta Cosit 191/2017;
[8] Solução de Consulta Cosit n. 89/2018; Solução de Consulta Cosit n. 434/2017, Solução de Consulta Cosit n. 123/2014, Solução de Consulta Cosit n. 243/2017, Solução de Consulta Cosit n. 12/2005, dentre outras.
[9] Para que se compreenda melhor o cenário, a decisão do STF foi utilizada posteriormente para decidir a respeito da tributação sobre fitas cassete, no RE 191.732, de Relatoria do então Ministro Sepúlveda Pertence, publicado no Diário de Justiça em 18/06/1999.
[10] REsp n. 216.967 SP de 2002;
[11] REsp 1641775 SP, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 04/12/2018;
Por Victória Fracari
Victória Fracari é advogada do escritório Menezes Niebuhr Advogados Associados; pós-graduanda em Direito Tributário pelo IBET (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários); e graduada em Direito pela UFSM (Universidade Federal de Santa Maria).
Revista Consultor Jurídico, 11 de setembro de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-set-11/victoria-fracari-receita-ve-tributacao-softwares