Após criminalizar como apropriação indébita a inadimplência do ICMS próprio, o Supremo Tribunal Federal aprovou a seguinte tese: “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º, II, da Lei 8.137/1990” (RHC 163.334).
Decorrem daí diversos aspectos.
Por um lado, os meros inadimplentes terão que provar nos autos que não agiram de forma contumaz e com dolo de apropriação dos recursos. Isso ampliará fortemente a discricionariedade investigativa (poder das polícias e do Ministério Público), o que pode ser muito ruim nos casos concretos, nos quais se deverá separar uma situação da outra.
Por outro lado, tudo indica que ocorrerá enorme queda na inadimplência (pois, embora transparente, pode ensejar apropriação indébita) e exponencial aumento da sonegação (que não deixa registros claros). E passaremos anos ouvindo sobre a transformação do crime de apropriação indébita tributária de objetivo em subjetivo.
Entre os pontos a destacar, surge o objeto deste texto. Observa-se que o referido julgamento se transmudou ao longo de seu percurso, pois o que se propunha inicialmente era a criminalização do inadimplente, e acabou sendo criminalizado o devedor contumaz. Porém, o que é um devedor contumaz tributário? Tangenciei o assunto em diversas ocasiões (ver aqui; aqui e aqui), mas é necessário avançar, pois algumas iniciativas legislativas estão sendo adotadas no Congresso para distinguir o que é mera inadimplência daquilo que o STF julgou.
O que me parece mais adequado é fortalecer o que já está em curso, objetivando esta urgente definição. O assunto está sob análise no Congresso através do Projeto de Lei 1646/2019, que teve como proponente o ministro Guedes, em seus primeiros dias de governo, e tem na PGFN um de seus principais promotores. No dia 11 de novembro de 2019 o PL foi debatido em audiência pública da Câmara dos Deputados, ocorrida no auditório da Fiesp, presentes diversos especialistas em diferentes áreas (clique aqui ler aqui uma visão panorâmica do evento). Na ocasião apresentei alguns comentários sobre o referido projeto de lei, que busco condensar neste texto.
O problema ocorre quando a empresa adota como modelo de negócio a sonegação contumaz, que se torna o eixo central de sua atividade e de seu lucro. Nesta situação, constata-se facilidade do devedor se evadir da tributação regular, com dificuldades de arrecadação pelos entes públicos acerca de suas operações, e isso ocasiona distúrbios concorrenciais que podem levar ao domínio dos mercados, ao abuso de posição dominante e até mesmo a situações de insolvência por parte da concorrência.
A solução consta do artigo 146-A da Constituição, que prevê o advento de uma lei complementar que poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo. Falta regulamentação federal, embora existam projetos de lei nesse sentido (PLS 284, da senadora Maria Amélia). A norma constitucional permite a regulamentação pelos entes subnacionais, através de lei complementar, o que já foi feito pelo estado de São Paulo, através da Lei Complementar 1.320/18 — lei nos conformes.
O Projeto de Lei ordinária (PL 1.646/19) tem fundamento infraconstitucional e trata do problema apenas no âmbito federal. A comissão que está analisando o PL tem como presidente o deputado Tadeu Alencar (PSB-PE), por relator o deputado Arthur Oliveira Maia (DEM-BA), e 1º vice-presidente o deputado Joaquim Passarinho (PSD-PA), assessorados por Cristiane Coelho Galvão, técnica concursada da Câmara e doutora pela FDUSP.
O projeto considera devedor contumaz aquele “contribuinte cujo comportamento fiscal se caracteriza pela inadimplência substancial e reiterada de tributos” (artigo 1º, parágrafo único).
É prevista a abertura de processo administrativo para a aplicação de restrições administrativas a esse tipo de devedor quando houver indícios (artigo 2º): (a) de que uma pessoa jurídica tenha sido constituída para a prática de fraude fiscal estruturada, inclusive em proveito de terceiros; (b) de pessoa jurídica constituída por interpostas pessoas que não sejam os verdadeiros sócios ou acionistas (figura mais conhecida por laranja); (c) pessoa jurídica constituída com o propósito de se evadir da cobrança de tributos; ou (d) que a pessoa física, devedora principal ou corresponsável, deliberadamente oculte bens, receitas ou direitos com o propósito de não recolher tributos ou burlar mecanismos de cobrança fiscal.
Para fins do projeto de lei, considera-se inadimplência substancial e reiterada de tributos a existência de débitos, em nome do devedor ou das pessoas físicas ou jurídicas a ele relacionadas, inscritos ou não em dívida ativa da União, de valor igual ou superior a quinze milhões de reais, em situação irregular por período igual ou superior a um ano. Considera-se em situação irregular o crédito tributário que não esteja garantido ou com exigibilidade suspensa, conforme estabelecido pelo CTN.
Trata-se de uma definição amplíssima, que deve ser aperfeiçoada, para não penalizar a mera inadimplência decorrente de crises empresariais e econômicas, bem como o planejamento tributário lícito = elisão fiscal.
No PL consta uma fase inicial, em que o processo administrativo seja realizado com respeito (artigo 4º) à ampla defesa, com decisões fundamentadas, obedecido o duplo grau, com efeito suspensivo e possibilidade de revisão, caso tenham cessado os motivos que ensejaram sua propositura.
Dentre as sanções, ao final do procedimento administrativo (artigo 3º), constam o cancelamento do CNPJ ou CPF, e a vedação ao gozo de (a) incentivos fiscais pelo prazo de 10 anos, (b) parcelamentos, (c) remissão ou anistia e ao uso de (d) créditos de prejuízos fiscais ou da base de cálculo negativa da CSLL.
De fato, o objetivo declarado do projeto de lei se encerra no artigo 4º, com as disposições referentes ao devedor contumaz. As demais normas propostas se referem à recuperação de créditos irrecuperáveis (artigo 5º) e ao fortíssimo endurecimento da Lei de Execuções Fiscais (LEF) e à Lei da Ação Cautelar Fiscal, que podem até ser aplicadas aos devedores contumazes, mas se encontram redigidas de tal forma que se tornarão, caso aprovadas, aplicáveis também aos inadimplentes usuais.
Dentre as alterações propostas na LEF, destaquei a necessária cautela que se deve ter com a proposta de alteração do artigo 7º, VII, prevendo que o singelo despacho do juiz na petição inicial da execução fiscal implique desde logo em “autorização para exploração econômica dos direitos decorrentes (da posse dos bens penhorados) pelo depositário ou administrador judicial”. Isso pode gerar, por exemplo, o imediato afastamento de toda uma diretoria da gestão da empresa, em qualquer hipótese de inadimplemento (não se trata de aplicação apenas para devedores contumazes), desde logo deferida junto com o “cite-se” pelo juiz.
Nas alterações propostas às ações cautelares fiscais, é necessário ter cautela com diversas normas (artigo 8º do PL). Propõe-se a possibilidade de utilização de cautelar fiscal desde a notificação do auto de infração, e não quando a dívida estiver consolidada, o que é negativo, pois pode ocorrer de o devedor já ser notificado da existência de um auto de infração e, ao mesmo tempo, ter os bens bloqueados (artigo 1º e artigo 3º, I). A mesma inadequação se verifica na proposta de modificação do artigo 2º, parágrafo 3º, ao permitir que a cautelar fiscal seja manejada mesmo que a exigibilidade da dívida esteja suspensa ou que o crédito não esteja definitivamente constituído. Destaquei apenas os principais problemas que merecem redobrada atenção.
Em apertada síntese, é importantíssimo dar atenção a este problema que atinge vários setores, em especial na distribuição de produtos como combustíveis, cigarros e bebidas, dentre vários outros, gerando incomensuráveis problemas à economia brasileira e desestimulando investimentos.
Para fazer avançar o debate acerca do PL 1.646/19, deve-se melhor distinguir a situação do devedor contumaz da mera inadimplência, o que ainda não está claro. É necessário respeitar a função social da empresa, a qual deve ser preservada pois geradora de empregos e renda à sociedade, e centrar atenção nas empresas que tenham como modelo de negócio a situação de devedor contumaz, e não as meramente inadimplentes.
A criminalização da conduta dos dirigentes das empresas devedoras contumazes, que já foi determinada pela açodada decisão do STF no RHC 163.334, deve ser identificada através de medidas de inteligência fiscal, e não por meio de uma indiscriminada e geral criminalização da inadimplência, pois, tal como decidido, acarreta a falência da presunção de inocência em nosso país.
O cerco está se fechando para os devedores contumazes. A decisão do STF acabou por “legislar” para todo o país, embora o foco fosse um tributo estadual, o ICMS; por outro lado, este PL é apenas para o âmbito federal, e impõe sanções fiscais, sem criminalizar condutas. Ao debater, aperfeiçoar e aprovar este PL, o Congresso conseguirá auxiliar a sociedade a limitar a enorme extensão dada pelo STF na criminalização da inadimplência do ICMS. É preciso trabalhar com urgência nesse sentido.
Por Fernando Facury Scaff
Fernando Facury Scaff é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 13 de janeiro de 2020.
https://www.conjur.com.br/2020-jan-13/tributacao-concorrencia-criminalizacao-devedor-contumaz