Decisões no Paraná e Rio de Janeiro seguem entendimento do ministro Luiz Fux.
A decisão do ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), de que a empresa precisa estar em dia com as obrigações fiscais para que o seu processo de recuperação judicial seja aceito foi proferida não faz nem 20 dias e já está sendo reverberada nos tribunais estaduais. O do Paraná (TJ-PR), por exemplo, adotou o mesmo entendimento ao julgar o tema no Órgão Especial – a sua mais alta instância.
No Rio de Janeiro (TJ-RJ) também há registro semelhante. O desembargador Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto, da 16ª Câmara Cível, suspendeu os efeitos de uma decisão da primeira instância que havia concedido a recuperação judicial de uma rede de hotéis por causa das dívidas fiscais. Eram quase R$ 800 milhões.
Ele cita o caso julgado pelo ministro Fux na decisão. O desembargador repete trecho em que o ministro afirma que “a obrigação não interdita o pedido de recuperação judicial do devedor, apenas exige a regularização de tais débitos”.
“Liberar as recuperandas de indicar de que forma pretendem equacionar um débito fiscal de quase oitocentos milhões de reais é o mesmo que permitir que a recuperação judicial se faça às custas da União”, afirma na decisão (processo nº 0046087-14.2020.8.19.0000).
Esse pode ser o início de uma virada na jurisprudência. A apresentação de Certidão Negativa de Débitos (CND) consta na Lei de Recuperações Judiciais e Falências (nº 11.101, de 2005) como um dos requisitos ao processo. Mas essa regra, desde sempre, foi flexibilizada pelos tribunais estaduais e também pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O argumento predominante era o de que não haveria um parcelamento de dívidas tributárias adequado para as empresas em recuperação judicial. Até 2014 não existia nenhum. Naquele ano foi editada a Lei nº 13.043, que passou a permitir o pagamento em até 84 vezes. Mas esse programa foi considerado insuficiente e não pegou no mercado.
As decisões levavam em conta o artigo 47 da Lei nº 11.101, de 2005. Consta que o processo de recuperação judicial tem como finalidade viabilizar a preservação da empresa e a sua função social – mantendo empregos e, com o pagamento dos credores, fazendo a economia girar. Esse artigo, se aplicado o princípio da proporcionalidade, se sobrepõe ao 57, que trata da obrigação de regularidade fiscal.
“Haverá uma grande onda de falências se isso mudar”, diz Julio Mandel, sócio do Mandel Advocacia. “O entendimento do STJ manteve muitas empresas funcionando, gerando emprego, renda e pagando tributos. Exigir a CND logo no início do processo não é factível para a nossa realidade. Praticamente nenhuma empresa em recuperação tem.”
Mandel afirma que o Fisco não é deixado de lado nos processos de recuperação judicial. “As empresas pagam os tributos correntes e preveem, nos planos, um percentual do faturamento para quitar os atrasados”, diz.
O advogado chama a atenção ainda que a Fazenda tem privilégios em relação aos demais credores. Existe uma via específica para a cobrança das dívidas – as ações de execução fiscal – e não está sujeita ao processo de recuperação, não se submetendo, portanto, a descontos e prazos previstos nos planos.
A decisão do ministro Luiz Fux, contrária à jurisprudência, foi proferida em caráter liminar no dia 8. Ele julgou pedido da Fazenda Nacional contra acórdão da 3ª Turma do STJ, de junho, que dispensou a apresentação de CND por uma indústria que produz equipamentos para o setor sucroenergético (Rcl 43169).
Pesou, para a decisão de Fux, uma questão processual. A Súmula Vinculante nº 10, editada pelo STF, proíbe órgão fracionário de tribunal de afastar a incidência de lei ou ato normativo do poder público, mesmo que não declare expressamente a sua inconstitucionalidade. O órgão de cúpula dos tribunais é quem teria competência para tanto.
No caso do STJ só a Corte Especial poderia fazer isso. O colegiado tem decisão para dispensar a CND, mas anterior ao parcelamento de 2014 e, por esse motivo, na visão de Luiz Fux, não poderia ser replicada para a situação atual.
O ministro diz, na sua decisão, que outros parcelamentos, até mais benéficos que o de 2014, foram editados depois disso e que há possibilidade de as empresas obterem certidões positivas com efeito de negativas ao negociarem as suas dívidas com o Fisco.
O TJ-PR julgou esse tema por meio de um incidente de arguição de inconstitucionalidade. A maioria dos 24 desembargadores do Órgão Especial votou para declarar constitucionais o artigo 57 da Lei nº 11.101 e o 191-A do Código Tributário Nacional (CTN) – ambos condicionam a concessão da recuperação à regularidade fiscal. Praticamente todos que se posicionaram desta forma citaram a decisão do ministro Fux.
A discussão era saber se a exigência de CND configuraria sanção política. Prevaleceu o entendimento do desembargador Clayton Maranhão, que abriu a divergência. Ele entendeu não se tratar de sanção política porque não se estaria falando em “quitação de tributos”, mas sim de “regularização”.
Os desembargadores que acompanharam a divergência levaram muito em conta o fato de o ministro Fux não ter tratado o artigo 57 como exigência para a quitação imediata de todos os tributos devidos (processo nº 0048778-19.2019.8.16.0000).
“Exigir CND de quem está quase em extrema unção causaria até perplexidade”, disse o desembargador Adalberto Jorge Xisto Pereira, presidente do TJ-PR. “Não se está a exigir a pronta quitação, mas diligenciar junto ao Fisco o parcelamento e a renegociação do seu débito.”
A decisão do Órgão Especial foi proferida a um caso específico. Não tem efeito vinculante. “Mas é um precedente que tem uma alta eficácia persuasiva dentro do tribunal. A tendência é que os juízes e os desembargadores das câmaras acatem essa decisão do Órgão Especial”, diz o procurador Thiago Morelli de Sousa, chefe da Divisão de Grandes devedores da PGFN no Paraná.
Ele afirma que a Fazenda Nacional possibilita, por várias formas, que as empresas regularizarem os seus débitos. Cita, entre elas, a Lei nº 13.988, de abril, que permite a negociação dos pagamentos com descontos de até 70% em juros e multas e parcelamento em até 145 meses.
Para o advogado André Moraes, do escritório Moraes & Savaget, no entanto, ainda é cedo para se falar em uma mudança de jurisprudência. Ele chama a atenção que há também decisão por manter a dispensa da CND mesmo depois do posicionamento do ministro Luiz Fux.
Cita uma da 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, do dia 15. O juiz Alexandre Mesquita destaca o fato de que a decisão de Fux se deu em medida cautelar em sede de reclamação, e, portanto, não produz efeitos fora do caso específico, devendo ser ainda respeitado e observado o entendimento consolidado no STJ ao longo da última década (processo nº 0012633-08.2018.8.19.0002).
FONTE: Valor Econômico – Por Joice Bacelo, 25 de setembro de 2020