Se aplicado com eficiência, o mecanismo da transação trará interessantes resultados para a redução de litígios no âmbito do contencioso tributário.
O dogma da indisponibilidade do crédito tributário, decorrente de leitura enviesada dos princípios de indisponibilidade do patrimônio público e da Lei de Responsabilidade Fiscal, é usado desde tempos imemoriais para impedir a autocomposição entre os contribuintes e o Estado. O crédito tributário sempre recebeu o status de sagrado e intocável.
Paradoxalmente, a rigidez aplicada é uma das principais causas da ineficiência da cobrança fazendária. Apesar da perseguição irrestrita ao crédito tributário e da intransigência com que se objetiva satisfazê-lo, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) apontou, em seu último relatório, que 44,8% do estoque de crédito- em montante aproximado de R$ 1 trilhão – são irrecuperáveis, o que não deixa dúvida sobre a necessidade de utilização de métodos alternativos para recuperá-los.
Se aplicada com eficiência, a transação trará interessantes resultados para a redução de litígios.
Não obstante o crédito tributário ser dotado de privilégios e garantias, o engessamento de sua indisponibilidade sempre foi um mito sem fundamento jurídico, já que o artigo 171 do Código Tributário Nacional (CTN) traz o instituto da transação como modalidade de extinção do crédito tributário. Contudo, como nunca foi promulgada lei que o regulamentasse, o instrumento se consolidou como utopia.
Os motivos são variados, mas aparentemente o principal deles é a insegurança jurídica dos agentes administrativos que, em razão do risco de responsabilização funcional por ato de improbidade administrativa, têm dificuldades em estabelecer critérios gerais, porém objetivos, para orientar as transações. Não à toa várias medidas que visaram à autocomposição entre ente público e iniciativa privada excluíram expressamente o crédito tributário.
Uma janela de oportunidade se abriu com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (CPC), que estabeleceu ser lícito aos interessados prevenirem ou terminarem determinado litígio mediante concessões mútuas (artigo 1.025).
O CPC também previu a possibilidade de celebração de negócio jurídico processual (NPJ) entre partes litigantes (artigo 190). Em âmbito tributário, o NPJ foi disciplinado pela Portaria PGFN nº 742/2018 e, por mais interessante e salutar que seja, já que permite versar sobre amortização do débito fiscal e garantias, está longe de ter contornos de transação, em razão da expressa vedação à redução do montante dos créditos inscritos ou renuncia às garantias e privilégios do crédito tributário. Ou seja, tornou-se lícito ao contribuinte e à Fazenda Nacional transacionarem sobre o fim do litígio, mas sem possibilidades quanto ao conteúdo da obrigação tributária.
A Medida Provisória nº 899/2019, por sua vez, é inovadora nesse sentido. Denominada MP do Contribuinte Legal regulamentou o artigo 171, do CTN, que há 53 anos pendia dessa providência. Em suma, tratou da possibilidade de transacionar créditos tributários administrados pela Receita Federal do Brasil que não estejam judicializados, além daqueles inscritos em dívida ativa da União cuja cobrança e/ou representação incumbam à PGFN.
A transação poderá se dar por adesão ou por proposta individual e permitirá a concessão de descontos de 50% ou até 70% nos casos de micro e pequenas empresas e pessoas físicas, prazo de até 84 meses para pagamento e possibilidade de substituição de garantias e constrições.
Certamente, se aplicado com eficiência, o mecanismo da transação trará interessantes resultados para a redução de litígios no âmbito do contencioso tributário. Todavia, é preciso ter em mente alguns pontos controvertidos da medida. Primeiro, o artigo 5º, parágrafo 2º, da MP deixa claro que é vedada a transação para a redução do montante principal do crédito inscrito em dívida ativa da União. Ou seja, os descontos só serão conferidos para as multas e os juros aplicados ao contribuinte.
Além disso, o não cumprimento das condições da transação, que implicará rescisão da transação, poderá ensejar peculiar e questionável autorização para a Fazenda Pública ajuizar ação de falência ou, na hipótese de recuperação judicial em curso, requerer sua convolação em falência.
No mais, será preciso que critérios para aferição do grau de recuperabilidade das dívidas e parâmetros para aceitação da transação individual sejam disciplinadas, oque pode gerar restrições que relativizem ou reduzam sua eficácia – a exemplo das exigências direcionadas à dação em pagamento tributária, consistente na exigibilidade de declaração de interesse público relacionada ao imóvel a ser recebido, o que inviabilizou o uso da medida. Eis o fator que será determinante para o sucesso ou fracasso da transação.
O que se espera é que a novidade torne a transação entre contribuinte e poder público realidade apta a eficaz ao interesse de ambos, consolidando-se como mecanismo que viabilize a regularidade fiscal, ao passo em que, para a máquina arrecadatória, torne recuperável parte de seu estoque de créditos.Enfim, a depender de como vier a ser implementada, a transação poderá se tornar um ganha-ganha que, sem descuidar da segurança jurídica, evidenciará o contribuinte legal como aquele que não necessariamente paga toda a conta, mas que não poupa esforços para pagá-la.
Valor Econômico – Por Amanda Pahim e Diego Fischer – 7 de novembro de 2019