Juiz(a) de Direito: Dr(a). Frederico dos Santos Messias Vistos. Trata-se de Ação de Obrigação de fazer cumulada com Declaratória de Inexigibilidade de Débito e, ainda, Reparação de Danos em que a parte autora aduz, em síntese, que celebrou contrato de transporte marítimo com a ré. Diz que, após o transporte, ultrapassou o período livre (free time) de utilização dos containeres, ensejando a incidência de sobre-estadia (demurrage). Todavia, ao tentar efetuar a devolução dos containeres vazios, a ré teria condicionado o ato ao pagamento “antecipado” da sobre-estadia, o que configura, em seu entender, conduta ilícita. Diz, ainda, que a conduta da requerida atrasou mais ainda a devolução dos containeres vazios, o que ensejou a incidência de mais sobre-estadia e de outras despesas decorrentes de armazenagem e manutenção dos containeres. Pede que a ré seja obrigada a aceitar a devolução dos containeres vazios, independentemente do pagamento “antecipado” da sobre-estadia. Pede, também, a declaração de inexigibilidade da sobre-estadia incidente após a data especificada na inicial e o ressarcimento dos valores gastos com armazenagem e manutenção das unidades de carga. A tutela provisória de urgência antecipada foi indeferida (fls. 80/84). Regularmente citada, a ré ofereceu contestação e reconvenção (fls. 148/164) sustentando, em breves linhas, matéria preliminar e, no mérito, a legalidade da conduta, pois se trata de cobrança à vista da sobre-estadia que encontra previsão legal e contratual. Sustenta, também, que a cobrança à vista não se confunde com a cobrança “antecipada”, pois a sobre-estadia incide de forma automática a partir do encerramento do período livre (free time) e, por consequência, o vencimento da obrigação. Em reconvenção, a ré reconvinte pleiteia a condenação ao pagamento da sobre-estadia devida até a efetiva entrega das unidades de carga. Foi negado o efeito ativo ao recurso de Agravo de Instrumento interposto pela Parte Autora em face do indeferimento da tutela provisória (fls. 215/216). Houve Réplica e Contestação à Reconvenção (fls. 220/242). É a síntese necessária. FUNDAMENTO E DECIDO. O processo comporta julgamento imediato nos termos do que prescreve o artigo 355, inciso I, do Código de Processo Civil. Não é pelo trâmite do processo que se caracteriza o julgamento antecipado. Nem por ser a matéria exclusivamente de direito; ou, mesmo de fato e de direito; e até em razão da revelia. É a partir da análise da causa que o Juiz verifica o cabimento. Se devidamente instruída e dando-lhe condições para amoldar a situação do artigo 355 do CPC, é uma inutilidade deixa-lo para o final de dilação probatória inútil e despicienda (RT 624/95). Registre-se, também, que já decidiu o Supremo Tribunal Federal que a necessidade da produção de prova há que ficar evidenciada para que o julgamento antecipado da lide implique em cerceamento de defesa. A antecipação é legítima se os aspectos decisivos estão suficientemente líquidos para embasar o convencimento do magistrado (RE 101.171/8-SP). Delimitação do objeto. A controvérsia posta nos autos está na possibilidade ou não da cobrança “à vista” da sobre-estadia e no alegado impedimento para devolução do container vazio, sem o pagamento do valor que extrapola o período livre. Inexistência de hipossuficiência. Inexiste, no caso, relação de consumo. Sequer há parte hipossuficiente que possa justificar a aplicação da chamada Teoria Finalista Mitigada reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça no CC 92.519/SP. Portanto, a relação jurídica existente entre as partes atrai o disposto nos artigos 421, § Único, e 421-A, incisos II e III, ambos do Código Civil. Isso significa que, estando as partes cientes dos riscos alocados no negócio, habituadas que estão com a espécie de obrigação empresarial assumida, ao Estado impõe-se o dever de intervenção apenas excepcional. Não há, na hipótese dos autos, qualquer situação excepcional que justifique a intervenção judicial na relação jurídica. Possibilidade de cobrança à vista da sobre-estadia. Não há qualquer cobrança antecipada de sobre-estadia, na medida em que a obrigação de pagar passou a existir imediatamente após a superação do prazo livre, contratualmente ajustado entre as partes. A cobrança à vista da sobre-estadia está fundada na lei e no contrato. A cobrança à vista está amparada pelo artigo 331 do Código Civil, que assim dispõe: “Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente”. Está, também, amparada no contrato de transporte celebrado entre as partes. Confira-se as cláusulas 202 e 325 (fls. 26/27). Ademais, a mera insatisfação com a forma de cobrança da sobre-estadia não afasta a mora, que permanece até a efetiva devolução dos containeres. Dessa forma, é incorreto afirmar que houve “cobrança antecipada” da sobre-estadia, houve tão somente cobrança à vista, em consonância com o que fora acordado pelas partes no momento da contratação do transporte e com o artigo 331 do Código Civil. Estando a autora amparada na lei e no contrato, não há que se falar em recusa injustificada no recebimento dos containeres, no que é devida a sobre-estadia após o decurso do período livre (free time) até a data da efetiva devolução das unidades de carga, pois não se cogita de afastamento da mora. Nesse sentido: Legitimidade para a causa – Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos morais Transporte marítimo Autora que é proprietária da carga armanezada nos contêineres de propriedade da ré, sendo parte legítima para pleitear judicialmente a devolução das unidades de armazenamento Preliminar suscitada pela ré afastada. Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos materiais Transporte marítimo. Suposta recusa da ré em receber os contêineres vazios antes do pagamento do valor relativo às sobrestadias Sentença de procedência da ação Pedido de reforma Cabimento Alegado condicionamento do recebimento dos contêineres ao prévio pagamento das sobrestadias não demonstrado Sistema da ré que exige, para que o portador do contêiner agende a sua devolução, o comprovante de agendamento do pagamento das sobrestadias, com vencimento para até 24h da efetiva devolução da unidade de carga Prática que não se confunde com a negativa de recebimento dos contêineres sem o prévio pagamento das sobrestadias Contraprestação relativa à sobrestadia de contêiner que é devida, sempre que escoado o período de “free time” Exigência da ré que tem amparo no art. 331 do CC – Autora que não fez pedido expresso acerca de eventual inexigibilidade do valor relativo às sobrestadias, nem negou ter excedido o “free time” vigente para os contêineres que estavam em sua posse Autora que se limitou a afirmar que, de sua parte, não houve pacto acerca do “free time” e dos termos da cobrança Irrelevância na hipótese vertente Autora que, ao portar os contêineres, tornando-se parte legítima para pleitear a sua devolução, deve inteirar-se das condições em que se dá a sua utilização, as quais constaram do conhecimento de transporte Desnecessidade de ajuste expresso para se exigir a contraprestação pela sobrestadia de contêineres – Contratos de transporte marítimo que revelam forte influência dos usos e costumes da região que são entabulados Recusa da ré em proceder ao agendamento da devolução do contêiner nos termos pretendidos pela autora que não se revelou ilegítima Pedido obrigacional da autora rejeitado. (TJSP, Apelação Cível nº 1005951-86.2021.8.26.0562, da Comarca de Santos, 23ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, 26 de abril de 2023, Relator Desembargador José Marcos Marrone). Grifei. Da alegada autotutela. Nem se pretenda argumentar com a tese de que se trata de meio forçado de cobrança implementado pelo credor (autotutela). Isso porque se coloca o fato descrito propositadamente travestido com essa natureza, porém não é disso que se trata, como exposto. Em primeiro, porque o que se tem nos autos é a cobrança à vista a partir do regular vencimento da obrigação. Em segundo, porque, do que consta dos autos, o que se tem é singela necessidade de agendamento do pagamento, no que, estando o devedor de boa-fé, não há razão para que não o faça. Ainda que assim não fosse, apenas para argumentar, a autotutela não é instituto desconhecido no direito brasileiro. Veja-se os seguintes casos tratados no Código Civil: legítima defesa e o estado de necessidade (Código Civil, art. 188), legítima defesa e desforço imediato na proteção possessória (Código Civil, art. 1.210, § 1º), autotutela de urgência nas obrigações de fazer ou não fazer (Código Civil, art. 249 § único e art. 251, § único), direito de retenção de bens (Código Civil, arts. 578, 644, 1.219, 1.433, II, 1.434), entre outros. E, na hipótese especial da autotutela decorrente do direito de retenção de bens, inexiste diferença na razão jurídica que inspira o instituto com a situação de fato descrita nos autos. A retenção, nos termos da lei civil, existe como forma de garantia do pagamento da obrigação assumida. O fato de não haver previsão específica para a situação dos autos se justifica porquanto a norma é repetição de anterior previsão já contida no Código Civil de 1916, quando não se concebia o transporte marítimo de carga via container com a pujança dos dias de hoje, muito menos se imaginava o uso desvirtuado da ação judicial como meio de permissão para a inadimplência. Aliás, de arremate, com base nas regras de experiência comum, ínsita ao homem médio, em procedimento de locação de veículos, as operadoras, de posse prévia do cartão de crédito do locatário, na hipótese de devolução com atraso, cobram “à vista” e “na hora”, os valores dos dias excedidos. É a autotutela em seu grau máximo! Boa-Fé Objetiva e Abuso do Direito de Ação. Nesse ponto, digo que, no cenário ideal das relações empresariais, sequer haveria de se cogitar de ação judicial para imposição de obrigações contratuais regularmente assumidas. O devedor, acredita-se, não contrai obrigação para descumprir. Nem tudo são flores! Nas relações contratuais, assume hoje papel de destaque como vetor de conduta a boa-fé objetiva do artigo 422, do Código Civil e a teoria do abuso do direito, do artigo 187, do mesmo Código Civil. Sobre a teoria do abuso do direito, Flávio Tartuce, ao falar sobre a responsabilidade civil, afirma que “… a construção, atualmente, tem duas pilastras, estando aqui a principal alteração estrutural da matéria de antijuridicidade civil no estudo comparativo das codificações brasileiras. Frise-se que a modificação também atinge a responsabilidade contratual, pois o art. 187 do CC/2002 também pode e deve ser aplicado em sede autonomia privada…” (Manual de Direito Civil, Flávio Tartuce, p. 517, Editora Método). Sem destaque no original. Os conceitos de boa-fé-objetiva e abuso do direito estão intimamente relacionados, bastando para tanto observar a menção expressa que faz da boa-fé o disposto no artigo 187, do Código Civil. Rubens Limongi França conceitua o abuso do direito como sendo um “ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito” (Enciclopédia Saraiva de Direito, p. 45, Ed. Saraiva). É o ato lícito no objeto, mas ilícito por seu modo de execução. No cotidiano forense, assiste-se a perpetuação da inadimplência das obrigações, no mais das vezes, valendo-se o devedor de ações judiciais habilmente manejadas para esse fim, colocando ele, devedor, na posição de soberano no reino da inadimplência, restando ao credor ser mero súdito. Veja-se, por oportuno, que à Autora foi dada a oportunidade de assinar Termo de Confissão de Dívida para o agendamento de devolução do contêiner (fls. 33), porém houve recusa, a evidenciar que a intenção é clara em não pagar. Os princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao abuso do direito, inclusive o de ação, devem ser conjugados para obstar tal modo de agir. No que ordinariamente acontece, a partir da análise empírica dos fatos, o devedor se vale do presente tipo de ação, exclusivamente, para, a partir da devolução do container, sem o pagamento da sobre-estadia, perpetuar a sua inadimplência, valendo-se também de mecanismos de blindagem patrimonial. A ação judicial está à serviço do não cumprimento da obrigação. É preciso, portanto, um novo olhar a partir da ideia de boa-fé objetiva, reveladora de standards positivos de conduta na relação contratual (antes, durante e depois), bem como, a partir da vedação ao exercício abusivo do direito de ação com o fim de perpetuar a inadimplência, em evidente desvio de finalidade da previsão constitucional do artigo 5º, inciso XXXV, da CF. Reconvenção. Não se pode olvidar que os contratos de transporte marítimo ostentam forte influência dos usos e costumes da região que são entabulados, dado o caráter consuetudinário inerente ao Direito Marítimo. Dentre estes institutos encontram-se o salvamento, a avaria comum, o fretamento, e, inclusive, a sobre-estadia, dentre outros. Nesse contexto, a “demurrage” é instituto inerente ao Direito Marítimo, estando ínsito em qualquer contrato desta natureza em razão dos usos e costumes do mar vivenciados ao longo dos anos. Impende registrar, ainda, que a mencionada cobrança pelo uso além do tempo pactuado (ou sobre-estadia) é justificada ainda que não prevista contratualmente. Confira-se, a respeito da ausência de previsão contratual, o decidido na Apelação 1012147-19.2014.8.26.0562, do Tribunal de Justiça de São Paulo. É importante destacar que a relação havida no contrato de transporte marítimo e suas relações satélites estão sujeitas ao microssistema da liberdade econômica, introduzido no Código Civil pelos Artigos 421 e 421-A, pautando-se na intervenção mínima do Estado, respeito ao ajuste dos contratantes e assunção dos riscos do negócio empresarial. Portanto, como regra, não se cogita da incidência do Código de Defesa do Consumidor, valendo o destaque, sobre o ponto, da Apelação 1001436-81.2016.8.26.0562, do Tribunal de Justiça de São Paulo. O período gratuito ou “free time” exige que os contêineres sejam entregues com as mesmas condições de quando recebidos, devendo ser compreendido como sendo todo o período em que o contêiner fica à disposição do usuário. Não há relação entre o valor da obrigação e o valor da sobre-estadia, muito menos cogita-se da sua redução equitativa, tendo em vista a sua natureza indenizatória. Nesse sentido: “TRANSPORTE MARÍTIMO – TAXA DE SOBRESTADIA DE CONTAINERES – DEMURRAGE-NATUREZA JURÍDICA – Reconhecido que a demurrage não é cláusula penal, mas sim indenização por descumprimento contratual, a fim de compensar o proprietário dos containeres por eventuais prejuízos sofridos em razão da retenção indevida destes pelo devedor, por prazo superior ao contratado, independentemente da culpa do devedor no atraso, bastando sua ocorrência Apelo provido” (Apelação Com Revisão 7086181500, Rel Salles Vieira, 24a Câmara de Direito Privado, dj 08/03/2007, TJSP). Grifei. Ainda sobre o tema da natureza jurídica da sobre-estadia, confira-se o decidido na Apelação 1011118-26.2017.8.26.0562, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Convém também destacar que eventuais atrasos causados pela burocracia dos portos nacionais, não constituem causa de exclusão da responsabilidade pelo pagamento da sobre-estadia, porquanto, estando dentro do regime de previsibilidade, constituem fortuito interno. Confira-se, a respeito, o decidido na Apelação 0021433-43.2011.8.26.0562, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Analiso o pacto em moeda estrangeira. Não há qualquer nulidade na celebração de contrato vinculado a moeda estrangeira, notadamente quando se trata de obrigação de natureza internacional. O direito deve acompanhar a evolução do comércio mundial para afastar antigas restrições prejudiciais ao livre trânsito de cargas pelo mundo. Apenas há que se ressalvar que, para contratos cujo cumprimento se escolha o território nacional, é indispensável que o pagamento seja feito em moeda corrente, buscando-se socorro, para tanto, no instituto da conversão. Analiso a conversão da moeda estrangeira. A conversão haverá de ser efetivada levando-se em conta o câmbio do dia do efetivo pagamento, além da incidência de correção monetária a partir do ajuizamento da ação e de juros de mora simples de 01% ao mês desde a citação, conforme precedente do STJ no julgamentos do AgRg no AREsp 188026 e do TJSP nas Apelações Cíveis 1011409-50.2022.8.26.0562, 1001706-32.2021.8.26.0562, 1014697-74.2020.8.26.0562 e 0000539-80.2010.8.26.0562. Pelo exposto, com fundamento no artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil, JULGO IMPROCEDENTE o pedido principal e JULGO PROCEDENTE o pedido da Reconvenção para condenar a parte requerida ao pagamento dos valores devidos a título de sobre-estadia, segundo relatório de devolução constante da inicial, convertendo-se a moeda estrangeira em nacional levando-se em conta o câmbio do dia do efetivo pagamento, além da incidência de correção monetária a partir do ajuizamento da ação e de juros de mora simples de 01% ao mês desde a citação. A parte autora, sucumbente nas duas ações, arcará com as despesas do processo e com honorários advocatícios que arbitro em 15% sobre o valor atualizado da causa na ação principal (improcedente) e 15% sobre o valor total da condenação na reconvenção (procedente), não havendo excesso em relação a limitação do Artigo 85, do CPC, por se tratar de demandas diversas, ainda que dentro do mesmo processo. PROVIDENCIE a Parte Ré a comunicação do pronunciamento da sentença de 1o Grau nos autos do recurso de Agravo de Instrumento. P.I.