O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), o maior do país em número de processos e de servidores, vai implantar neste ano duas varas especializadas nos crimes contra a ordem tributária e a lei de licitações, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Há uma estimativa de que absorvam, somente com a redistribuição do que tramita hoje nas varas comuns da capital, cerca de 1,8 mil ações penais e mais de 6 mil inquéritos ou procedimentos cautelares.
Iniciativas como a do tribunal paulista já existem em outros Estados. O da Bahia, por exemplo, criou a sua primeira vara especializada em organizações criminosas há quase três anos, enquanto o do Ceará inaugurou uma específica aos crimes tributários em dezembro do ano passado.
A criação dessas varas, afirmam especialistas, tem dois motivos principais: a evolução das leis e também o cerco internacional que se formou contra esses crimes. O governo brasileiro, desde 2015, vem firmando acordos de troca de informações com autoridades de outros países.
Antes disso, em 2012, a legislação que trata sobre lavagem de dinheiro havia sido ampliada e, em 2013, foi editada a lei das organizações criminosas. Essa última, por exemplo, regulamentou a colaboração premiada e outras possibilidades de obtenção de provas às autoridades.
“A chave vem virando já há algum tempo. A responsabilização dos bancos mudou. Até 2012, antes da mudança na lei da lavagem de dinheiro, por exemplo, a multa administrativa imposta para aqueles que não comunicassem as operações suspeitas era de R$ 200 mil. Depois passou a ser de R$ 20 milhões”, contextualiza o advogado Antenor Madruga, sócio do escritório Feldens Madruga.
As instituições financeiras hoje, complementa, podem ser responsabilizadas inclusive pelos prejuízos causados em razão da falha de observância da prevenção de lavagem de dinheiro.
A maioria dos processos que será distribuída às duas varas especializadas de São Paulo está relacionada aos crimes tributários. São 1.545 ações penais e 6.193 inquéritos em andamento. O restante, em menor quantidade, divide-se entre casos que envolvem licitações (77 ações e 154 inquéritos), lavagem de dinheiro (87 ações e 530 inquéritos) e organizações criminosas (153 processos).
Tudo isso, atualmente, está nas mãos dos juízes das 32 varas do Fórum Criminal da Barra Funda, na capital, que precisam, ao mesmo tempo, analisar crimes como os de furto, roubo, tráfico de drogas, estelionato, entre outros.
O presidente do TJ-SP, desembargador Pereira Calças, entende que há um grau de complexidade diferenciado com relação a essas demandas. Os casos que envolvem organizações criminosas, exemplifica, envolvem com frequência interceptações telefônicas, buscas e apreensões e mesmo o instituto da colaboração premiada. Além disso, destaca, costumam ter, em média, número de réus superior ao de outros casos criminais.
Há de se levar em conta ainda, segundo Luiz Henrique Cardoso Dal Poz, da Promotoria de Repressão aos Crimes de Sonegação Fiscal do Estado de São Paulo, os casos de sonegação. “Se para nós, que só ficamos nesse assunto, já é difícil ter a conexão com o direito tributário, entender como o imposto é cobrado, imagine para o magistrado que não tem nem 1% da sua demanda nessa área e tem 99% de crimes com violência, roubo, tráfico”, afirma.
No modelo atual, sem as varas especializadas, complementa, há dificuldade de, por exemplo, comparecer às audiências. A promotoria conta com cinco promotores especializados em repressão à sonegação fiscal e eles distribuem as manifestações a 64 juízes das 32 varas gerais que existem hoje. “Às vezes temos sete audiências no mesmo horário.”
As duas varas especializadas atenderão, em um primeiro momento, somente os processos da capital paulista. Há projeto, no entanto, para que no futuro se estenda à toda a 1ª Região, o que inclui cidades da Grande São Paulo, como Guarulhos e Osasco.
“O combate à corrupção é uma bandeira internacional”, afirma o presidente do TJ-SP. Esse estudo de criação das varas especializadas, acrescenta, se iniciou há cerca de dois anos, quando ocupava o cargo de corregedor-geral. Pereira Calças é um dos entusiastas das especializações. Ele já inaugurou, como presidente, duas varas empresariais e uma terceira para cuidar de casos de falência.
O modelo da varas criminais, ele diz, será, inclusive, semelhante ao das empresariais. “Haverá um só cartório para as duas varas. Estamos apostando em racionalidade e economia.”
No Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, o modelo que havia antes da implantação da vara especializada aos crimes contra a ordem tributária era diferente do de São Paulo. A demanda disputava espaço nas varas cíveis de execução fiscal. Em 2018, foram julgados cerca de 12 mil processos de um acervo de 91 mil. E do total julgado, 251 somente eram crimes contra a ordem tributária.
“Para ver como estavam parados”, afirma o desembargador Francisco Carneiro Lima, que sugeriu a criação da vara especializada no Estado. Essa situação, acrescenta, “estava levando à prescrição e impunidade”. A nova vara, criada no mês de dezembro, já recebeu 2.652 processos.
O advogado Pedro Ivo Velloso, que faz parte do Instituto das Garantias Penais (IGP), entende que as varas especializadas funcionam porque permitem ao Judiciário “decodificar e entender melhor esse tipo de ocorrência”, mas acredita, por outro lado, que deve-se ter cuidado com a abrangência.
Ele diz isso com base na experiência que se tem na Justiça Federal. “Essas varas passaram a ter a competência de tudo, tornaram-se centrais”, afirma o advogado. “Então, no Brasil, são poucos juízes e com um poder enorme. Não deveria ser assim”, acrescenta.
Diferentemente da Justiça Estadual, em que o processo de implantação das varas é recente, na esfera federal existe desde o começo dos anos 2000. “Depois do 11 de setembro, Estados Unidos e outros países, por meio de organizações internacionais, passaram a estimular que fosse feito um controle financeiro. Esse foi o paradigma do combate forte à lavagem de dinheiro”, contextualiza.
Por Joice Bacelo e Beatriz Olivon | De São Paulo e Brasília
Fonte : Valor – 28/01/2019