Do período de 17 de novembro, data de registro do primeiro caso de covid-19 na China, a 31 de maio, 4.211 decisões com referência ao termo “covid” ou “coronavírus” entraram no banco de sentenças do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). O volume expressivo indica, segundo especialistas, que o Judiciário ficará abarrotado nos próximos meses de processos, não apenas de recuperações judiciais.
O levantamento foi feito pelo escritório Veirano Advogados. “Por amostragem fizemos uma avaliação mais detalhada de 103 sentenças do foro central porque ali estão reunidas as ações acima de 500 salários mínimos”, explica Flávio Junqueira Volpe, advogado do Veirano. “Verificamos que a menção ao coronavírus aparece em casos que começaram antes da pandemia.”
Pela pesquisa, o setor mais atingido pela judicialização é o aéreo (55%) – as empresas foram as primeiras afetadas pela crise da covid-19. Os pedidos mais comuns estão relacionados a atrasos e cancelamento de voos, seguidos dos extravios de bagagens.
Outras áreas que aparecem no levantamento são a imobiliária (13%), a financeira (12%) e a de saúde (6%). No primeiro caso, estão discussões sobre compra e venda, locação de imóvel e corretagem. Os juízes, de forma geral, estão divididos. “Há casos de sensibilização, em que os magistrados consideram o atual cenário, enquanto outros só veem que danos devem ser reparados”, diz Volpe.
Em relação às companhias aéreas, segundo o advogado, o escritório vai reforçar a defesa para demonstrar a fragilidade financeira delas. “Elas têm uma função social e a capacidade econômica foi reduzida pela pandemia”, afirma.
Quanto ao setor financeiro, Volpe avalia que a melhor solução é buscar equilíbrio.
“Se um pequeno empresário tenta postergar pagamentos, é mais aconselhável fechar uma negociação razoável, de modo que funcione para as partes”, diz.
No escritório Demarest Advogados, hoje as clientes companhias aéreas também são as que mais demandam no Judiciário. “Em um caso que atuamos, o juiz afastou pedido de indenização por fato anterior à pandemia, considerando a atual dificuldade econômica da empresa”, afirma a advogada Maria Helena Bragaglia.
No processo, o juiz Heuder Lima de Assis, do 8º Juizado Especial Cível de Cuiabá, considerou que “o mundo tem sofrido com a pandemia de covid-19, o qual sabidamente gerou a queda nos voos da requerida, que consequentemente resulta na excepcionalidade do valor da compensação fixada nesta, visando não afetar o funcionamento da requerida” (processo nº 10134 27-03.2019.8.11.0001).
Além dos litígios com as aéreas, Maria Helena acredita que ainda haverá muitas discussões de direito do consumidor, civis-contratuais e imobiliárias no Judiciário no período pós-pandemia. Para ela, a tendência é que as empresas que participam do“consumidor.gov.br” – plataforma on-line do governo federal para incentivar acordos- obtenham soluções sem litígios.
“Mas como o governo também criou algumas normativas específicas, alguns fornecedores estão se apegando muito à norma”, diz Maria Helena. Para ela, eles se esquecem que as partes podem conversar e conseguir solução alternativa. No caso das aéreas, a Medida Provisória nº 925 permite que consumidor receba o dinheiro de volta após 12 meses ou use crédito em outra viagem. “Uma terceira solução seria, por exemplo, receber em 6 parcelas.”
No ramo imobiliário, Maria Helena destaca a inflexibilidade de espaços para coworking. “Mesmo com higienização e controle, esse tipo de ambiente é frequentado por muitos e, com o risco de contágio da covid-19, o locador não usa mais o espaço e pode querer suspender o contrato. Mas várias dessas empresas exigem receber o aluguel”, afirma.
Os efeitos da pandemia em demandas judiciais antigas são claros, por exemplo, nos pedidos de levantamento de depósitos judiciais, segundo Eduardo Arrieiro, sócio no Arrieiro, Dilly & Papini Advogados. “Essas ações foram propostas para preservar o caixa de empresas. No nosso caso, também atendemos demandas de busca por créditos tributários, para gerar maior economia fiscal”, diz.
Os reflexos da covid-19 também tendem a levar concessionárias de serviços públicos e governo ao Judiciário. Lucas Sant’Anna, sócio da área de contencioso do Machado Meyer Advogados, afirma que por lei o governo tem limitações para entrarem acordo com empresas e, às vezes, também tem receio dos órgãos de controle, o que acaba elevando a judicialização.
Por isso, para Sant’Anna, o Judiciário deverá estar preparado para as chamadas ações de reequilíbrio de concessões públicas. “Mesmo em litígio, os serviços públicos precisam obrigatoriamente ser mantidos”, diz o advogado.
Nesses casos, o que o Machado Meyer tem recomendado é a discussão via arbitragem. Segundo ele, contratos mais novos já trazem a arbitragem como possibilidade. Nos mais antigos, indicam fechar um primeiro acordo e incluir nele previsão de arbitragem, se ocorrer nova controvérsia.
Para Hugo Reis Dias, sócio HRD Advogados, um cenário de crise pressupõe uma fase de tensão, seguida de outra de caos, mas depois vem uma fase de prospecção – amparada inclusive em decisões judiciais. “No pós-pandemia, o Judiciário continuará a ser demandado, de todas as formas possíveis, para a preservação das empresas e empregos.”
Fonte: Valor Econômico – 17 de junho de 2020