O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) permitiu a uma empresa em recuperação judicial usar créditos acumulados de ICMS para a aquisição de matéria-prima e outros insumos de forma livre – mesmo que tenha dívidas com o Estado. A decisão, da 2ª Câmara de Direito Empresarial, beneficia a Vitapelli, uma das maiores do mundo do setor de curtume.
O entendimento é importante para as companhias do agronegócio, segundo advogados, porque a Fazenda impõe que 50% dos créditos acumulados sejam direcionados ao pagamento de débitos fiscais. Somente o remanescente, então, é que poderia ser usado para outros fins.
Em recuperação judicial desde 2010, a Vitapelli obteve, com a decisão, a liberação de créditos de ICMS gerados entre maio de 2010 e dezembro de 2011 e também de janeiro a outubro de 2012.
Um dos argumentos do Fisco para impedir a liberação era a de que tratava-se de uma devedora contumaz e que se valia do processo de recuperação para não pagar seus débitos. A companhia, segundo afirma no processo, acumula cerca de R$ 300 milhões em dívidas decorrentes de autos de infração e aplicação de multas.
Alegava ainda que mesmo se pudesse utilizar tais créditos, não poderia ser em sua totalidade. Isso por força do Decreto nº 61.907, do ano de 2016, que obriga os setores de carnes e derivados e de couros a destinar 50% para o pagamento de débitos fiscais. Ou seja, somente a metade é que poderia ser usada para a aquisição de matéria-prima e outros bens.
Os desembargadores que julgaram o caso entenderam, no entanto, que a Fazenda não conseguiu provar qualquer tipo de fraude por parte do contribuinte que justificasse o bloqueio dos créditos e ponderaram que o Estado não tem a faculdade de impedir a companhia de usá-los. Especialmente em um processo de recuperação judicial, cuja a utilização de tais créditos interessa não somente à companhia, mas a todos os seus credores.
Sobre a limitação do 50%, eles observaram que não atingiria “as situações de aproveitamento e creditamentos anteriores à sua promulgação”, como tratava o caso em análise. “Deve prevalecer, no princípio da irretroatividade da norma tributária, a regra então vigente, salvo se a mais recente for a mais benéfica ao contribuinte, o que não é o caso dos autos”, afirmou o relator, desembargador Ricardo Negrão, no voto (agravo de instrumento nº 2010460-22.2017.8. 26.0000).
A companhia já havia obtido decisão favorável na primeira instância. Quando analisou o caso, o juiz Silas Silva Santos, da 2ª Vara Cível de Presidente Prudente, foi bastante combativo à postura que vinha sendo adotada pelo Fisco – por tratar a recuperação, na visão do magistrado, como um plano para não pagar tributos e por questionar o aumento dos créditos acumulados no período.
“A recuperação foi feita para quê? Para recuperar ou para gerar a quebra? Verifico que, na lógica da FESP [Fazenda do Estado de São Paulo], toda recuperação que der certo constitui sinal de fraude”, disse na ocasião.
Para Leo Lopes, sócio do contencioso tributário do FAS Advogados, esse caso é uma demonstração do embate cada vez mais frequente entre Fisco e empresas em recuperação judicial. “Há uma postura litigiosa por parte da Fazenda. Ela não participa do processo de recuperação, não oferece descontos nem qualquer dilação de prazo para o pagamento, mas quer que os seus créditos sejam priorizados”, observa.
A Vitapelli acumula um volume grande de créditos de ICMS por causa das operações de exportação. Quando a venda é interna, há incidência de tributos no momento da compra da matéria-prima (o que gera crédito) e na venda da mercadoria (o que gera débito). Nas operações de exportação, no entanto, existe a tributação quando a empresa compra do fornecedor, mas não quando vende para o exterior. Trata-se de uma garantia constitucional e, por esse motivo, existe o acúmulo.
A permissão para que as empresas utilizem tais créditos para a compra de matéria-prima e outros bens está prevista na Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/96) e na legislação de São Paulo de nº 6.374, também do ano de 1996.
“É salutar para a balança comercial. Precisamos disso porque a nossa carga tributária é tão elevada que impede as empresas de serem competitivas no exterior”, diz o advogado José Francisco Galindo Medina, que representou a empresa no caso. “Impor obstáculos ao acesso desses créditos faz com que as empresas precisem todos os meses se descapitalizar para fazer frente à carga tributária”, acrescenta. O impacto, no caso da Vitapelli, segundo o advogado, é de cerca de R$ 1,5 milhão por mês.
Apesar de a decisão do TJ-SP tratar especificamente de uma empresa em processo de recuperação judicial e específica do setor de agronegócio, os advogados Luís Alexandre Barbosa e Denis Araki, do escritório LBMF, chamam a atenção que tem importância também aos contribuintes que não estão nessa situação.
“Os desembargadores estão dizendo que o contribuinte não pode ser surpreendido por uma nova regra. Permitir a aplicação de um decreto que restringe direitos a um período anterior a sua publicação violaria qualquer segurança jurídica”, diz Barbosa.
A Procuradoria de Assuntos Tributários do Estado de São Paulo tratou a disputa contra a Vitapelli, no entanto, como “pontual, baseada em fatos bastante circunscritos”, e afirmou, por meio de nota, que “não há repercussão fora do próprio caso”.
“As normas sobre utilização de crédito acumulado foram alteradas em 2016 e a decisão, no final das contas, envolve questões intertemporais, para determinar a regra aplicável a créditos acumulados antigos do contribuinte”, acrescentou no texto.
Considerou ainda que não há uma litigiosidade exagerada sobre essa questão. “É normal para caso antigo de devedor contumaz e em recuperação judicial”, finalizou.
Por Joice Bacelo | De São Paulo
Fonte : Valor – 25/09/2018