Para desembargadores, medida pode ser adotada em caso de execução fiscal frustrada.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) aceitou pedido de falência da Fazenda Nacional contra uma empresa – algo raro. As decisões sobre o assunto até agora, inclusive do Superior Tribunal de Justiça (STJ), eram contrárias. O entendimento predominante é o de que a medida não seria legítima porque o Fisco tem a execução fiscal ao seu dispor, uma via própria para a cobrança de dívidas tributárias.
Para a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP, no entanto, essa interpretação não pode ser aplicada em todos os casos. Dos cinco julgadores, quatro entenderam que se a Fazenda ajuizou ação fiscal, mas não houve pagamento por parte do devedor nem foram localizados bens suficientes para quitar a dívida, esgotando, portanto, os meios de cobrança que têm à disposição, ela pode pedir a falência.
“O caso envolve a União, mas abre precedente para que Estados e municípios façam o mesmo”, diz Odair de Moraes Júnior, sócio do escritório Moraes Jr. Advogados. “Essa decisão é perigosíssima. Um tiro de bazuca contra o empresário que está em dificuldade, ainda mais em um período de pandemia e forte crise econômica.”
Relator do caso na 1ª Câmara de Direito Empresarial, o desembargador Alexandre Lazzarini afirma, em seu voto, que a jurisprudência formada para impedir que o Fisco apresente pedido de falência contra empresas devedoras tem base no Decreto-Lei nº 7.661, de 1945, a antiga lei da concordata, substituída em 2005 pela Lei nº 11.101, que atualmente regula as falências e os processos de recuperação judicial.
A lei atual, no artigo 94, inciso II, frisa, permite que seja requerida a falência em caso de execução frustrada. Esse dispositivo não trata expressamente da Fazenda Pública. O desembargador interpretou a norma em conjunto com um outro artigo, o 97, que diz que “qualquer credor” pode apresentar pedido de falência.
“A atual cuidou de ampliar o rol de legitimados para o pedido de falência, diferentemente do que ocorria durante a vigência do decreto-lei”, afirma Lazzarini. “A Fazenda Pública não está sujeita ao concurso formal porque pode continuar coma execução fiscal, a fim de buscar a satisfação de seu crédito. Mas está ela sujeita ao concurso material, pois está sujeita à fila de pagamentos”, acrescenta.
Esse entendimento foi acompanhado pelos desembargadores Azuma Nishi, Pereira Calças e Cesar Ciampolini. Somente Fortes Barbosa votou contra a Fazenda Pública (processo nº 1001 975-61.2019.8.26.0491).
Essa decisão pegou o mercado de surpresa e assustou, especialmente, as empresas em recuperação judicial – que, na maioria das vezes, devem tributos. Há um projeto de lei na Câmara dos Deputados, o PL 10.220 – apensado ao PL 6.229 -, que prevê a reforma da lei de recuperação e falências e entre os pontos polêmicos está justamente a possibilidade de o Fisco poder ajuizar pedido de falência.
Advogados que atuam para as empresas em crise, em geral, não veem esse trecho com bons olhos. A falência seria a contrapartida para a criação de um parcelamento especial para as dívidas tributárias das empresas em recuperação – caso firmem o compromisso e não cumpram com os pagamentos.
“É ruim porque a Fazenda não se sujeita ao processo de recuperação judicial, não discute nem faz parte do plano de pagamento, como os demais credores, mas teria a mesma prerrogativa”, diz Julio Mandel, sócio do Mandel Advocacia, especialista na área.
Ele chama a atenção, no entanto, que a falência da empresa devedora pode não ser a melhor opção. “Porque a Fazenda não é a primeiro a receber e porque com a liquidação a empresa deixa de gerar emprego e de pagar os tributos correntes.”
A Fazenda Pública ocupa a quarta posição na ordem de pagamento. Fica atrás dos créditos extra concursais, trabalhistas e aqueles que têm garantias. Mas recebe antes dos quirografários (a classe sem garantias, onde estão os fornecedores das empresas, por exemplo).
Há preocupação do mercado, porém, de que a decisão do TJ-SP passe a ser utilizada como instrumento de coação. Maurício Faro, do escritório BMA, recorda de uma outra discussão, há alguns anos, envolvendo a possibilidade de a Fazenda Pública protestar Certidão de Dívida Ativa (CDA).
“Havia o argumento de que se estava constrangendo o contribuinte a pagar porque, com o protesto, se tolhia completamente o exercício da sua atividade”, lembra o advogado.
O Fisco venceu essa disputa. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 2016, pela constitucionalidade do protesto. Esse mecanismo é comumente usado hoje em dia pela União, Estados e municípios para fazer a cobrança extrajudicial dos valores devidos, acelerando a recuperação de créditos tributários.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) afirma que não há intenção de promover uma “caça às bruxas”. “Não significa que a partir dessa decisão do tribunal paulista nós iremos, em todos os casos, pedir a penhora e se não houver bens entrar com a falência. Longe disso. A nossa orientação interna é usar em raríssimos casos, só quando houver uma justificativa muito grande”, afirma o procurador Gabriel Teixeira Gonçalves, coordenador do núcleo de falências e recuperações judiciais em São Paulo.
O caso julgado pelo TJ-SP, detalha, envolve uma empresa que estava fraudando o pagamento de tributos. A companhia, localizada no município de Rancharia, interior do Estado, acumulava mais de R$ 20 milhões em dívidas desde o ano de 2002 e, segundo o procurador, nunca sequer apareceu para discutir as cobranças nos processos.
“Verificamos que usava o patrimônio dos sócios para garantir dívidas de credores privados ao mesmo tempo em que se esquivava de pagar os tributos devidos”, afirma.
Filipe Aguiar de Barros, procurador-chefe de Defesa da Fazenda Nacional na 5ª Região, fez parte da assessoria do Ministério da Economia e participou de estudos sobre a lei de recuperação e falências. Ele diz que a legislação foi construída atribuindo muitas prerrogativas à Fazenda, só que, de acordo com ele, o que está escrito não é exatamente o que ocorre na prática.
“A jurisprudência fechou as portas”, afirma. “Só que tem empresas que não pagam nada, nem mesmo os tributos correntes. São fraudes ambulantes. Praticam concorrência desleal. A Fazenda não pode fazer nada? Não pode ser por aí. A análise tem que ser casuística.”
O procurador compara a situação do Brasil com a dos Estados Unidos. O trecho da legislação americana que trata sobre os pedidos de falência também se refere a “qualquer credor” e lá, afirma, o Fisco não tem problemas. “Eles só entram em casos fraudulentos. Não saem ajuizando pedidos de falência contra todo e qualquer devedor”, diz.
Ele acrescenta que existe uma outra lei brasileira, a de nº 12.846, de 2013, que admite, no artigo 19, o ajuizamento de ação de dissolução compulsória de pessoa jurídica pela União, Estados e o Distrito Federal, municípios e Ministério Público.
FONTE: Valor Econômico – Por Joice Bacelo — De Brasília – 03/08/2020