Precedente do STF não altera jurisprudência da corte sobre taxatividade da lista de serviços.
O Imposto Sobre Serviços (ISS) é tributo cujas regras são objetivamente simples e de fácil compreensão. No entanto, os seus contribuintes se veem constantemente envoltos em controvérsias infindáveis que só agravam o já perturbador cenário de insegurança jurídica em que vivemos.
Nas últimas semanas, apesar de todo o transtorno causado pela pandemia e da consequente impossibilidade de os contribuintes fazerem a adequada demonstração dos direitos que lhes são constitucionalmente assegurados, o STF iniciou uma série de julgamentos de relevantes controvérsias tributárias, que, há muito, aguardavam uma posição do tribunal.
Algumas dessas questões foram relativas à incidência do tributo na atividade de franquia (RE 603.136) e na de apostas esportivas (RE 634.764). Foram julgados que envolveram, essencialmente, o conceito de “serviços”, tema que suscita grande preocupação, não só em razão do risco e das incertezas que gera para os contribuintes do imposto, mas também pela indevida amplitude que as respectivas administrações tributárias poderão pretender atribuir à competência tributária dos municípios, em razão da má compreensão do que foi dito nos votos neles proferidos.
O tribunal também julgou recentemente, em repercussão geral, o RE 784.439, que tratou da infindável discussão acerca da taxatividade da lista de serviços sujeitos ao imposto municipal.
Firmou-se, nesse julgamento, a seguinte tese:
“É taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o art. 156, III, da Constituição Federal, admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva.” (grifamos)
Como demonstraremos mais adiante, ao julgar esse caso, o tribunal nada mais fez do que simplesmente repetir a vetusta e consolidada jurisprudência firmada sobre a matéria.
Trouxe, contudo, perplexidade a forma como empregada a expressão “atividades inerentes dos serviços elencados em lei” na tese firmada com efeitos de repercussão geral, pois dela certamente surgirão dúvidas impertinentes quanto ao real conteúdo do julgado.
De fato, na forma como posta a tese, poder-se-ia, por exemplo, questionar se a expressão “atividades inerentes” permitiria concluir que teria sido ampliada a competência dos municípios para tornar tributáveis atividades outras – que não serviços – pelo simples fato de, entre as atividades que lhe são inerentes, constasse alguma que se confundisse com as expressamente elencadas na lista de serviços tributáveis -, ou, até mesmo, para tributar meras atividades-meio, quando a respectiva atividade-fim não fosse expressamente prevista como tributável – como ocorreria, por exemplo, com o serviço de provimento de acesso à internet, que não é tributável por ser categoria não expressamente prevista na lista, mas que passaria a estar sujeita à incidência do imposto, por envolver processamento de dados, que é atividade listada e inerente ao referido provimento.
No exame do teor do referido julgamento, verifica-se que nenhuma dessas conclusões é procedente, pois, como dito, a decisão proferida em nada altera a jurisprudência anterior do tribunal e não admite qualquer dos questionamentos acima referidos.
De fato, a discussão acerca do caráter taxativo ou exemplificativo da lista de serviços remonta à própria criação do tributo. A indagação sempre foi a mesma: seria a lista taxativa, definidora e limitadora da competência dos municípios para a instituição do ISS, ou meramente exemplificativa, servindo apenas de elemento norteador para a sua incidência?
Após longa evolução jurisprudencial, o STF acabou por fixar orientação no sentido de que a lista seria taxativa no que diz respeito às categorias que estão sujeitas à incidência do imposto e exemplificativa no que concerne à determinação das espécies abrangidas por cada uma dessas categorias. É o que se convencionou denominar “taxativa na vertical e exemplificativa na horizontal”.
Essa solução também foi adotada pelo STJ, que firmou orientação no sentido de que a lista é taxativa, mas comporta “interpretação extensiva, a fim de abarcar serviços correlatos àqueles previstos expressamente, uma vez que, se assim não fosse, ter-se-ia, pela simples mudança de nomenclatura de um serviço, a incidência ou não do ISS” (EREsp n. 916.785-MG, Rel. Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, julgado em 23.4.2008, DJe 12.5.2008).
Esse entendimento, portanto, foi o que sempre prevaleceu, ainda que, ao admitir a interpretação extensiva (exemplificativa), na forma acima referida, estivessem os tribunais, na verdade, aplicando a analogia para viabilizar a incidência do tributo, o que é expressamente vedado pelo art. 108 do CTN.
Pois bem, no voto que proferiu no julgamento do RE 784.439, a ministra Rosa Weber aborda diferentes questões em aparente obiterdictum, traça um histórico jurisprudencial acerca da taxatividade da lista de serviços e conclui o seu voto com a citação do seguinte trecho da manifestação do Procurador-Geral da República (PRG), que sintetiza o seu pensamento:
“(…) há de se reconhecer que a lista de serviços sujeitos ao ISS é taxativa; todavia, quando as características da atividade que se pretende tributar não são estranhas às características das atividades próprias dos serviços listados em lei, mas inerentes à natureza desses serviços, ou seja, constituam mera variação do aspecto material da hipótese de incidência, há de se permitir a incidência do ISS sem que a Administração Tributária incorra, com isso, em tributação inconstitucional.”
O emprego do vocábulo “inerente” surge, portanto, no contexto da manifestação da PGR, com referência à circunstância de que determinados serviços não nominalmente listados podem ostentar características “inerentes” a outros serviços listados.
Nesse contexto, a palavra “inerente” é utilizada exclusivamente como medida de comparação entre duas espécies de serviços pertencentes a uma mesma categoria de serviço, na hipótese em que uma delas não tenha sido especificamente mencionada na lista. Dessa comparação, poderá resultar a incidência do imposto, exatamente por ser a lista “exemplificativa na horizontal”, conforme esclarecido acima.
Em outras palavras, a expressão “inerente” não tem por finalidade permitir a tributação de meras atividades meio (posto que “inerentes” à atividade principal), ou permitir a incidência do ISS sobre atividades que não configurem serviços na sua essência, mas apenas servir de parâmetro para aferição da relação de identidade entre dois serviços.
O parecer da PGR, que fundamentou a tese adotada no voto da ministra Rosa Weber, traça considerações filosóficas acerca do conceito de “inerência” e as aplica na seara tributária.
Ao sintetizar a proposição oferecida, afirma que “apesar do caráter taxativo, há de ser admitida a verificação dos elementos inerentes à atividade prestada, com o intuito de abranger serviços passíveis de inclusão no mesmo gênero já disciplinado em lei, por configurarem mera variação do aspecto material da hipótese de incidência”.
A inovação jurídica trazida no parecer da PGR (conceito de “inerência”) é desnecessária, visto que o efeito pragmático da solução proposta é rigorosamente idêntico ao da jurisprudência que prevalece há anos dos tribunais superiores, qual seja, o de entender a lista de serviços como taxativa na vertical e exemplificativa na horizontal.
Essa compreensão é confirmada a partir do seguinte trecho extraído do voto da ministra Rosa Weber: “(…) essa lista poderia, de forma constitucionalmente válida, receber interpretação extensiva ou ampliativa, na direção do repetitivo do Superior Tribunal de Justiça, que entendeu que ‘é taxativa a Lista de Serviços anexa ao Decreto-lei 406/68, para efeito de incidência de ISS, admitindo-se, aos já existentes apresentados com outra nomenclatura, o emprego da interpretação extensiva para serviços congêneres?’ Entendo que a resposta é afirmativa.”.
Em síntese, parece claro que o voto da ministra relatora, a partir do qual a tese firmada foi proposta, jamais pretendeu modificar a jurisprudência pacífica dos nossos tribunais superiores, consolidada há tantos anos.
O que é necessário evitar é que a redação atribuída ao tema – que produzirá efeitos em repercussão geral e utiliza o termo “inerente” de forma muito pouco clara – venha a promover novo e infindável conflito acerca da amplitude da lista, da possibilidade de tributação de meras atividades meio, ou daquelas que sequer configurem serviços na sua essência.
FONTE: JOTA – Por Gustavo Brigagão e Eduardo Barboza Muniz – 22 de julho de 2020