RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO E CONSTITUCIONAL. TAXAS. REGISTRO DE PERMANÊNCIA DE ESTRANGEIROS NO PAÍS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 5º, CAPUT E INCISOS LXXVI E LXXVII, DA CRFB/88, C/C ART. 1º DA LEI FEDERAL 9.265 DE 1996. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece a natureza tributária dos emolumentos exigidos para atos de registro, no que as exações para registro de permanência de estrangeiros no país configuram-se como taxas. Nesse sentido: ADI 1378 MC, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 30/11/1995, DJ 30/05/1997 e ADC 5 MC, Rel. Min. Nelson Jobim, Tribunal Pleno, julgado em 17/11/1999, DJ 19/09/2003. 2. Acerca da condição do estrangeiro em território nacional, quando da propositura da demanda vigia em nosso ordenamento a Lei 6.815/80, conhecida como o “Estatuto do Estrangeiro”. Dita norma foi complemente revogada pela Lei 13.445/2017, atualmente conhecida como “Lei de Migração”. 3. A nova Lei de Migração brasileira contém, além de disposições outras, toda uma regulamentação da situação do estrangeiro em território nacional, incorporando preceitos da Constituição de 1.988, ausentes na disciplina anterior, editada em 1980. 4. A condição jurídica do estrangeiro deve ser analisada à luz de uma classificação que considera cinco categorias de direitos: i. o direito de entrada, estada e estabelecimento; ii. os direitos públicos; iii. os direitos privados; iv. os direitos econômicos e sociais; v. os direitos políticos. (in DOLINGER, Jacob e TIBÚRCIO, Carmen. Direito Internacional Privado, 15ª. Edição. Rio de Janeiro: Forense) 5. O preceito pelo qual os Estados devem garantir aos estrangeiros direitos mínimos, somente cedendo às situações que sejam exclusivas dos nacionais, é recorrente nas ordens jurídicas em geral. 6. A Convenção de Havana sobre Direitos dos Estrangeiros, de 1928, determina em seu art. 5° a obrigação dos Estados “concederem aos estrangeiros domiciliados ou de passagem em seu território todas as garantias individuais que concedem a seus próprios nacionais e o gozo dos direitos civis essenciais”. 7. A igualdade dos estrangeiros aos nacionais está prevista em outros diplomas internacionais, destacando-se o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovado em Nova York em 19 de dezembro de 1966, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, aprovado no mesmo local e data, ambos patrocinados pela Organização das Nações Unidas, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969. 8. A novel legislação nacional altera o paradigma pelo qual a ordem jurídica nacional enxerga a condição do estrangeiro. De um estatuto forjado sob o viés da segurança nacional, a ser resguardada em face da pessoa do imigrante, a atual Lei de Migração volta suas lentes para uma leitura da condição jurídica do estrangeiro a partir da disciplina humanitária contida na Constituição de 1.988 9. A fortiori, a Lei 13.445/2017 contempla o pedido versado nesta demanda de maneira expressa, ao pontificar em seus arts. 4º, XII, e 113, § 3º, o seguinte: Art. 4º Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados: (…) XII – isenção das taxas de que trata esta Lei, mediante declaração de hipossuficiência econômica, na forma de regulamento; Art. 113. As taxas e emolumentos consulares são fixados em conformidade com a tabela anexa a esta Lei. (…) § 3º Não serão cobrados taxas e emolumentos consulares pela concessão de vistos ou para a obtenção de documentos para regularização migratória aos integrantes de grupos vulneráveis e indivíduos em condição de hipossuficiência econômica. 10. Não obstante a matéria encontrar-se solucionada por meio da superveniência legislativa, não se pode olvidar das relações jurídicas pretéritas que devem ainda ser definidas no âmbito desta causa. 11. In casu, o ponto nodal resume-se a saber se mesmo antes do advento da Lei 13.445/2017 o ordenamento jurídico brasileiro já comportava leitura no sentido de que ao estrangeiro hipossuficiente deveria ser garantida a imunidade tributária no pagamento de taxas para o registro de sua condição. 12. A conjugação do disposto no art. 5º, caput, da CRFB com seus incisos LXXVI e LXXVII leva à conclusão de que o estrangeiro residente no Brasil encampa o aspecto subjetivo da imunidade ali preconizada. Verbis: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXXVI – são gratuitos para os reconhecidamente pobres, na forma da lei: a) o registro civil de nascimento;b) a certidão de óbito;LXXVII – são gratuitas as ações de “habeas-corpus” e “habeas-data”, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania. (grifamos) 13. O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de apreciar a possibilidade de concessão de benefício assistencial a estrangeiro residente no Brasil, consignando a necessidade de se garantir o tratamento isonômico entre brasileiros e estrangeiros residentes no país, no julgamento do RE 587.970, sob a sistemática da repercussão geral (Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 22/09/17). Naquele momento consignei em meu voto: Desde logo, adianto que seguirei o voto do relator, no sentido de que a CF não estabelece qualquer distinção entre cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes no país, para fins de acesso aos programas de assistência social. Pelo contrário, interpretação sistemática do artigo 203, inciso V, com o artigo 5º, caput, da CF, conduz à conclusão de que cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes no país gozam dos direitos fundamentais em condições de relativa igualdade. Portanto, a norma infralegal que restringiu o respectivo acesso apenas aos brasileiros (Decreto n. 6.214/2007) violou a CF, a Lei n. 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social) e a Lei n. 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro). 14. A gratuidade de taxas para registro do estrangeiro residente se coloca como questão prévia ao próprio requerimento de concessão do benefício assistencial, pois este último, assim como a fruição de uma série de direitos fundamentais e serviços públicos básicos, só pode ser requerido após a devida regularização migratória. Ubi eadem ratio ibi eadem dispositio (onde há a mesma razão de fato, deve haver o mesmo direito) 15. As imunidades tributárias representam o contraponto do exercício da competência tributária por parte dos entes federados. Situam-se na zona definida pelo constituinte como de vedação absoluta para o exercício do poder de tributar. 16. O fundamento para o estabelecimento das regras imunizantes é a proteção dos direitos fundamentais contra a incidência de tributos. (TORRES, Ricardo Lôbo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Renovar: Rio de Janeiro. 12ª Edição.) 17. O Texto Constitucional trouxe, de maneira farta, uma série de situações em que o exercício da competência tributária foi limitado. Para além das imunidades dos impostos, que estão previstas sistematizadamente no art. 150 da CRFB, há uma série de outras limitações estabelecidas pelo Constituinte, inclusive para outras espécies tributárias. Assim é, v. g., para as contribuições especiais (art. 149, § 2º, I, art. 195, § 7º). 18. No caso das taxas, a situação não é diferente. Para além da regra de imunidade objeto da presente demanda (art. 5º, LXXVI e LXXVII), pode-se apontar também a imunidade no pagamento de custas judiciais para a propositura da ação popular (art. 5º, LXXIII), ou mesmo para a realização do matrimônio (art. 226, § 1º). 19. Esta Corte já se pronunciou em relação à natureza da desoneração tributária para o registro geral ou para a expedição da primeira via da cédula de identidade para os cidadãos nascidos no Brasil e para os nascidos no exterior, que sejam filhos de brasileiros, ao julgar a ADI nº 4825 (Pleno, Rel. Min. Edson Fachin, DJ de 09/02/17), com fundamento no inciso LXXVII, do art. 5º, da Constituição Federal, conjugado com o art. 1º da Lei Federal nº 9.265/96, assentando tratar-se de verdadeira imunidade constitucional. 20. Examinadas as regras de imunidade do art. 5º, LXXVI e LXXVII, com olhos voltados para seu fundamento, pode-se concluir que a regra se insere nos desdobramentos do exercício da própria cidadania. 21. O estrangeiro residente no país ostenta condição subjetiva para fruição da imunidade constitucional, no que se mostram destoantes do Texto Constitucional exigências legais e infralegais que não assegurem tal condição. 22. No tocante à aplicação da capacidade contributiva a todas as espécies tributárias, o STF já teve a oportunidade de se manifestar em diversas ocasiões, a exemplo do RE 406.955-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 20/10/11; através do Plenário no RE 598.572, Rel. Min, Edson Fachin, DJ de 09/08/16. 23. Em matéria de taxas, a incidência do princípio da capacidade contributiva, como corolário da justiça fiscal, não pode ser lido da mesma maneira a que se faz quanto aos impostos. 24. A pessoalidade, representada pela capacidade econômica do contribuinte, ou seja, o sentido positivo da capacidade contributiva, não permite o exame da tributação no que se refere às taxas. Ao contrário, os elementos que vão calibrar a proporcionalidade da exação são o custo do serviço ou do exercício do poder de polícia e o valor efetivamente cobrado, independentemente da situação econômica do sujeito passivo. 25. Não se quer dizer, entretanto, que inexista espaço para a verificação da capacidade econômica do sujeito passivo em matéria de taxas. Este exame resta reservado ao sentido negativo do princípio, quando o primado da Justiça Fiscal não permite que se avance sobre o patrimônio do sujeito passivo comprovadamente hipossuficiente. 26. Sob a ótica da capacidade contributiva em seu sentido negativo não se mostra condizente com o Texto Constitucional a exigência da exação em face de sujeito passivo evidentemente hipossuficiente. 27. Recurso Extraordinário provido, para reconhecer o direito à expedição dos documentos de registro de estrangeiro sem o pagamento da “taxa de pedido de permanência”, da “taxa de registro de estrangeiro” e da “taxa de carteira de estrangeiro primeira via” pelo recorrente. 28. Tese de Repercussão Geral: É imune ao pagamento de taxas para registro da regularização migratória o estrangeiro que demonstre sua condição de hipossuficiente, nos termos da legislação de regência. RE 1018911, DJ 02-12-2021.