Está no Supremo Tribunal Federal o debate acerca da inclusão na base de cálculo de PIS/Cofins do valor descontado (cobrado) por empresa administradora de cartão de crédito/débito em razão de venda/prestação de serviço efetuada pelo vendedor/prestador de serviço e cujo pagamento tenha ocorrido através de cartão de crédito/débito. A citada questão jurídica é objeto do Recurso Extraordinário 1.049.811, relatado pelo ministro Marco Aurélio, cuja repercussão geral foi reconhecida pela corte (Tema 1024).
Parece-nos inegável o caráter eminentemente constitucional do tema, como bem salientou o ministro relator, na medida em que alude ao conceito constitucional de receita/faturamento[1], materialidades tributárias escolhidas pelo legislador constituinte para a instituição das contribuições de PIS/Cofins.
O STF tem uma assentada jurisprudência no sentido de considerar como constitucional o debate acerca dos limites normativos de conceitos/termos utilizados pela Constituição Federal na definição de competências tributárias, notadamente quando aludem à base de cálculo tributária, que nada mais é do que a “perspectiva dimensível do aspecto material da hipótese de incidência”, na dicção de Geraldo Ataliba.
Apenas para ficar no âmbito de PIS/Cofins e sem extrapolar para outras incidências tributárias, é pertinente registrar que recentemente o STF considerou como tema constitucional o debate acerca da inclusão do ICMS na base de cálculo de PIS/Cofins ou, sob outro ângulo, a exclusão do ICMS do conceito de receita/faturamento enquanto base de cálculo de PIS/Cofins[2].Da mesma forma, o STF também já decidiu pelo seu Plenário a questão relativa à inclusão na base de cálculo de PIS/Cofins (logo, no conceito de receita) dos valores auferidos por empresa exportadora em razão da transferência a terceiros de créditos de ICMS[3].
O debate acerca da consideração da taxa de cartão de crédito/débito paga pela empresa vendedora como sua receita/faturamento constitui questão jurídica da mesma natureza daquela exaustivamente debatida pelo STF nos RE 574.706-PR e RE 606.107-RS, pois também exige a reflexão acerca dos limites do conceito constitucional de receita/faturamento para fins de incidência de PIS/Cofins.
No nosso entendimento, a questão jurídica relativa à incidência de PIS/Cofins sobre os valores pagos pela empresa vendedora à administradora do cartão deve se dar à luz do conceito jurídico-tributário de receita, e não diante das regras que regulam o aproveitamento de tal saída financeira como crédito fiscal na apuração da base de cálculo daquelas contribuições, na sistemática não cumulativa[4].
Os cartões de crédito e débito são manifestações contemporâneas do processo de desmaterialização da moeda, enquanto instrumento de troca das relações econômicas, conferindo confiança aos agentes econômicos. A moeda evoluiu de moedas-mercadorias (gado, sal, conchas, fumo, cacau, açúcar e outras), passando pelos metais (ouro e prata) e pelo papel-moeda, para assumir hodiernamente caráter imaterial ou simbólico (como os cartões), onde o fator fundamental reside na confiança que exprime. A rigor, os cartões substituem hodiernamente o papel-moeda na relação jurídica de compra e venda de mercadorias e prestação de serviços[5].
Os cartões de crédito e débito constituem meios de simplificação da liquidação de obrigações contraídas através de relações comerciais, resultado de uma rede de relações contratuais entre agente emissor, titular do cartão, fornecedor e outros agentes intermediários do sistema. No bojo destas relações contratuais, valores são cobrados e descontados dos diferentes agentes, segundo regras jurídicas previamente pactuadas.
Fran Martins doutrina que “é, assim, o cartão de crédito um meio para a realização fácil de transações comerciais, simplificando grandemente essas operações. Sua finalidade é justamente essa: tornar mais fácil as compras por parte do seu titular. Mas à emissão de cartões de crédito procede uma série de contratos que regulam as relações entre o emissor e o usuário: a sua fácil utilização é lastreada também por outros contratos que asseguram ao portador a aquisição de bens ou serviços, dando garantias igualmente ao fornecedor quanto ao recebimento do valor dos bens vendidos ou dos serviços prestados”[6].
De modo geral, os cartões de crédito e débito geram para o vendedor (fornecedor de bens e serviços) custos fixos (de adesão e permanência no sistema) e/ou variáveis (proporcionais às vendas) na medida em que são instrumentos facilitadores de vendas. Esses custos, via de regra, são deduzidos pelas empresas envolvidas no sistema de fornecimento e administração do cartão (instituição financeira e administradora do cartão de crédito) no momento da liquidação das operações perante o vendedor, de modo que este recebe, ao final da cadeia de relações contratuais, um valor líquido pela venda realizada. Assim, o valor da operação comercial, relação jurídica celebrada entre comprador e vendedor, não corresponde ao efetivo ingresso por ela gerado no patrimônio do vendedor na medida em que aquele valor é afetado pelos redutores decorrentes da utilização do meio de pagamento utilizado na relação jurídica comercial.
É sabido que a Constituição Federal autoriza a tributação das materialidades receita ou faturamento (artigo 195, I, b), competência constitucional que foi exercida através da legislação de PIS/Cofins. Diante da inexistência de uma definição normativa estipulativa no plano constitucional dos conceitos de faturamento e receita, a doutrina e a jurisprudência, notadamente do STF, vem historicamente construindo e assentando tais conceitos no Direito Tributário brasileiro.
Acerca do conceito constitucional de faturamento, a jurisprudência do STF, ante a redação do artigo 195 da carta federal anterior à Emenda Constitucional 20/98, consolidou-se no sentido de tomar as expressões receita bruta e faturamento como sinônimas, limitando-as à venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços. Assim, julgou-se inconstitucional o parágrafo 1º do artigo 3º da Lei 9.718/98, no que ampliou o conceito de receita bruta para envolver a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvida e da classificação contábil adotada[7].
Posteriormente à EC 20/98, que operou a inclusão da materialidade “receita” no texto constitucional, o STF, no exame do RE 574.706 (relatoria ministra Cármen Lúcia), firmou o entendimento de que o ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência de PIS/Cofins, isto é, não configura faturamento, a fortiori receita, porquanto esse tributo estadual ingressa apenas provisoriamente no patrimônio do contribuinte para ser repassado, por dever legal, ao estado.
A exigência de PIS/Cofins sobre os valores descontados da operação de venda/prestação de serviço realizada mediante cartão de crédito/débito guarda inegável analogia com o decidido pelo STF no RE 574.706 na medida em que também nesta hipótese o que se debate é a impossibilidade de se considerar como faturamento/receita um ingresso financeiro que, no caso, sequer ocorreu no patrimônio do contribuinte. Se o ICMS incidente em uma operação de venda não pode ser considerado faturamento/receita do vendedor porque ingressa apenas provisoriamente no seu patrimônio para em seguida ser repassado ao estado a quem é devido aquele tributo estadual, o que dizer da taxa cobrada pela utilização de cartão de crédito/débito que sequer ingressa no patrimônio do vendedor/prestador de serviço que recebe o valor líquido da venda/prestação de serviço realizada e liquidada com a utilização de cartão de crédito/débito?
Com efeito, a análise do tema requer que se assente a premissa segundo a qual um mesmo ingresso financeiro, fruto da relação contratual que envolve a utilização do cartão de crédito/débito, não pode juridicamente ser tributado em dois contribuintes, sob pena de bis in idem e de manifesta agressão ao princípio da capacidade contributiva. Vale dizer, se determinado ingresso financeiro é receita tributável para a pessoa jurídica A, por óbvio não pode simultaneamente configurar receita tributável para a pessoa jurídica B, contraparte na mesma relação jurídica.
Em outro dizer, a expressão econômica representada pela taxa devida na operação comercial liquidada por meio de cartão de crédito/débito não pode ser considerada receita do vendedor/prestador de serviço que a paga e, simultaneamente, receita da pessoa jurídica administradora de cartão de crédito/débito que a recebe. Do contrário, o princípio da capacidade contributiva e da racionalidade tributária, além do conceito constitucional de faturamento/receita, seriam violados.
Conforme já tivemos oportunidade de demonstrar em outra oportunidade[8], receita é fruto direto de uma atividade com conteúdo econômico ou de negócios jurídicos com prestações avaliadas economicamente, fruto este que deve representar um ingresso positivo, efetivo, definitivo e real ao patrimônio. Vale dizer, auferir receita significa aumentar de forma permanente o patrimônio através do produto de atividades/negócios avaliados economicamente. O ingresso patrimonial definitivo pertence à natureza do conceito de receita sem a qual ela não pode existir nem ser entendida[9].
A necessidade de efetivo e definitivo ingresso de recursos financeiros como elemento necessário para a caracterização do conceito jurídico de receita, para fins tributários, é realçada por José Antonio Minatel, para quem qualifica-se como receita o “ingresso de recursos financeiros no patrimônio da pessoa jurídica, em caráter definitivo, proveniente dos negócios jurídicos que envolvam o exercício da atividade empresarial, que corresponda à contraprestação pela venda de mercadorias, pela prestação de serviços, assim como pela remuneração de investimentos ou pela cessão onerosa e temporária de bens e direitos a terceiros, aferido instantaneamente pela contrapartida que remunera cada um desses eventos”[10].
Analisando o conceito constitucional de receita para fins da incidência prevista no artigo 195, I da carta política, o STF já teve oportunidade de assentar, através do brilhante voto da ministra Rosa Weber, que “a receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições, na esteira da clássica definição que Aliomar Baleeiro cunhou acerca do conceito de receita pública: receita pública é a entrada que, integrando-se no patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondências no passivo, vem acrescer o seu vulto, como elemento novo e positivo”[11].
É sabido que a configuração jurídica do conceito de “receita auferida” independe da realização financeira da entrada correspondente[12], mas não dispensa a incorporação jurídica definitiva e incondicional desta no patrimônio do contribuinte.
No caso da venda/prestação de serviço liquidada mediante cartão de crédito/débito, o preço da mercadoria/serviço, objeto da relação jurídica de troca, já nasce reduzido pela taxa de intercâmbio da operação cobrada pelo terceiro (administradora de cartão de crédito). O preço, base de cálculo da operação tributável, que vai constituir o ingresso no patrimônio do vendedor/prestador de serviço, será o resultado líquido da operação liquidada com a moeda simbólica. Não há dois momentos, apenas um: uma relação comercial liquidada com moeda simbólica que embute um custo de intermediação a ser suportado pelo contribuinte que aufere o ingresso líquido deste custo.
Registre-se que o custo de intermediação representado pela taxa de cartão de crédito/débito assume caráter essencial à relação jurídica subjacente à incidência tributária na medida em que alude à forma de liquidação da obrigação correspondente (pagamento do preço) e não a qualquer outro elemento acidental ou externo à própria configuração do fato imponível “auferir receita”. O custo de intermediação representado pela taxa de cartão de crédito/débito é inerente ao negócio jurídico gerador do ingresso pois decorre do poder liberatório do instrumento utilizado para liquidar a obrigação assumida pelo comprador/tomador do serviço. A rigor, este custo é resultado do processo do processo de desmaterialização da moeda ou da substituição do papel-moeda pela moeda simbólica.
Portanto, o custo de intermediação representado pela taxa de cartão de crédito/débito nas operações comerciais liquidadas através deste instrumento liberatório não constitui receita tributável pelo PIS/Cofins do vendedor/prestador de serviço, na medida em que não constituem ingressos efetivos e incondicionais ao seu patrimônio. Tal valor representa receita auferida pelo contribuinte que o recebe (administradora de cartão de crédito) e por ele deve ser oferecido à tributação de PIS/Cofins.
[1] Não analisaremos as peculiaridades conceituais de receita e faturamento porque fogem ao objetivo deste artigo.
[2] RE 574.706 – PR.
[3] RE 606.107 – RS.
[4] A propósito da análise da mesma questão jurídica sob a perspectiva do direito de crédito no âmbito da não cumulatividade de PIS/Cofins, ver o artigo de Fábio Pellarettti Calcini, Taxa por uso de cartão de crédito tem natureza de insumo para PIS e Cofins, publicado na ConJur em 7 de maio de 2018.
[5] As principais funções da moeda são servir de medida de valor (unidade abstrata de conta), instrumento de troca (agente da circulação) e reserva de valor (instrumento de poupança). Cf. Affonso Insuela Pereira, O direito econômico na ordem jurídica. 2ª. ed. José Bushatsky, SP, 1978, p. 211-212.
[6] Contratos e obrigações comerciais. 14ª ed. Forense, Rio de Janeiro, 1996, p. 507-508.
[7] RE 346.084 – PR.
[8] A incidência de PIS/Cofins sobre a variação cambial gerada nas operações de exportação de mercadorias. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 104, p. 107.
[9] Para Baruch de Espinoza (Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem estar, 2ª parte, prefácio), “pertence à natureza de uma coisa aquilo sem o qual a coisa não pode existir nem ser entendida”.
[10] Conteúdo do conceito de receita e regime jurídico para sua tributação. APET/MP editora, 2005, p. 124.
[11] RE 606.107 – RS.
[12] A propósito, o artigo 187, parágrafo 1º, letra “a” da Lei 6.404/64, estabelece que na determinação do resultado do exercício serão computados as receitas e os rendimentos ganhos no período, independentemente da sua realização em moeda.
Por Helenilson Cunha Pontes
Helenilson Cunha Pontes é advogado parecerista, livre-docente em Legislação Tributária pela USP e doutor em Direito Econômico e Financeiro pela mesma instituição.
Revista Consultor Jurídico, 20 de fevereiro de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-fev-20/consultor-tributario-taxa-cartao-credito-debito-nao-constitui-receita-vendedor