Como se não bastassem todas as preocupações que a pandemia trouxe, surge mais um ponto de grande atenção e apreensão a partir de agora.
A União peticionou em maio nos autos do RE 574.706 requerendo a suspensão das ações que tramitam sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins até o julgamento dos embargos de declaração opostos em 2017. Além disso, aproveita o ensejo para reiterar o defendido em seus embargos de que o ICMS a ser excluído é aquele a recolher.
A petição, no fundo, apenas perpetua a posição sempre adotada pela União de retardar e mitigar ao máximo o direito dos contribuintes em ver de volta os valores pagos a maior sobre o tema. E vem na pior hora. Os efeitos da pandemia derrubaram os caixas das empresas que já vinham em sérias dificuldades financeiras por força das sucessivas crises que o país tem passado nos últimos anos. Esse terrível vírus, além de vidas humanas, está aniquilando também as pessoas jurídicas em proporção avassaladora. A inadimplência já reina e nos próximos meses espera-se uma enxurrada nunca antes vista de falências e pedidos de recuperação judicial. E, claro, suas consequências inevitáveis como desemprego, fome e um esfriamento ainda mais acentuado da economia.
Em vez de continuar lutando contra os contribuintes, seria prudente para a segurança jurídica do país que a União aceitasse a derrota e ajudasse o contribuinte a sobreviver. Para isso, precisaria apenas reconhecer o direito do contribuinte ao que o Supremo Tribunal Federal já estabeleceu em maioria de votos em 2006, no julgamento do RE 240.785, julgado definitivamente pelo Plenário da Corte em 2014 e novamente reconhecido em 2017 no julgamento do RE 574.706, a saber: que o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins.
Embora a posição da maioria do STF tenha sido firmada em 2006, a União nunca deixou de cobrar integral e inconstitucionalmente as contribuições sociais contendo valores que não são receitas próprias das empresas, mas dos Estados. E nem mesmo tomou qualquer outra medida para adequar sua tributação. Nas diversas alterações que a dinâmica e confusa legislação do PIS e Cofins sofreu, sempre foi mantida a base de cálculo expandida, abraçando o que era receita da empresa e o que não era.
Desperdiçaram todas as chances de adequar a tributação à Constituição e o pior, agora querem usar isso a seu favor, defendendo que, como passaram muito tempo sem tomar uma medida corretiva e continuaram exercendo a lucrativa e inconstitucional cobrança normalmente anos a fio, o valor ficou alto para devolver.
O contribuinte não merece e não pode ver o pleito da União ser acatado. Entre outras razões, a suspensão de decisão já tomada há tantos anos só serviria para a União continuar mês a mês cobrando inconstitucionalmente. Da mesma forma que nunca houve, não há intenção de mudar isso nesse momento. Se em épocas normais isso seria de todo lamentável, agora seria algo indescritível, absolutamente imoral. Também estabeleceria uma concorrência entre os que tiverem seus processos suspensos e todos os milhares de contribuintes que tiveram o trânsito em julgado em suas ações e que já aproveitaram, inclusive, a totalidade de seus créditos.
Com relação ao argumento de fundo, segundo o qual o ICMS deve ser excluído, o pleito também não merece melhor sorte. O comando da decisão embargada é claro: o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins. Não parte ou fração. Mas o único ICMS que se encontra na base. Isso é bastante óbvio e foi bem explicado no voto da ministra relatora.
O ICMS “a recolher” não faz parte da receita da empresa. Simplesmente ele não existe na base de cálculo. O ICMS a recolher representa uma despesa (portanto bem distante da receita bruta) que a empresa terá e é fruto nada mais nada menos que o ICMS das operações de venda menos os créditos que a empresa adquiriu junto com as mercadorias gravadas com esse imposto. O crédito do ICMS não ocorre como uma mágica da não cumulatividade do imposto estadual, ele é pago, adquirido. E passa a ser uma moeda que servirá na operação de saída, para matar total ou parcialmente o débito de ICMS. E inclusive poderá ser transferido de forma onerosa ou mesmo servir para a compra de ativos.
Entender de forma diferente é ignorar o conceito de receita ou faturamento, bem como da sistemática de tributação do ICMS. A adoção do defendido pela União estabeleceria tratamento no mínimo injusto para aqueles com pouca margem de lucro, os que fizeram investimentos de relevo em suas empresas e por isso possuem saldo credor de ICMS, ou mesmos os acumuladores de créditos, como, por exemplo, empresas que vendem no mercado interno e também exportam, e que por isso, por diversos meses, acabam não tendo ICMS a recolher em suas operações, embora paguem PIS e Cofins sobre suas receitas de vendas no mercado interno sempre inchadas com o imposto estadual. A adoção do pleito da União puniria fiscalmente os exportadores de forma totalmente inexplicável.
Nem se diga também que a sistemática de créditos de PIS e Cofins afetaria o cálculo de exclusão do ICMS da base de cálculo das contribuições. O objeto da ação é a adequação da presença do ICMS no conceito constitucional de receita. Nela não se discute o peculiar tipo de creditamento que ficou ao encargo da lei e que em nada se assemelha a não cumulatividade típica, utilizada pela legislação do ICMS e do IPI.
Apenas para ilustrar, na questão das contribuições, a legislação, em vez de criar um autêntico sistema de não cumulatividade e relacionar as operações das diferentes fases da cadeia, permitindo o crédito na medida do recolhimento feito no elo imediatamente anterior, ou seja, confrontar “imposto contra imposto”, estabeleceu um método subtrativo indireto, pinçando no universo de despesas que a empresa necessita para alcançar sua receita, algumas das despesas pagas a pessoas jurídicas, dando o direito ao contribuinte de sobre elas aplicarem alíquota fixa sobre o valor da operação, totalmente independente da tributação que estes itens ou serviços tiveram de PIS, Cofins ou qualquer outro tributo na operação anterior. Ou seja, o crédito não se vincula em nada com o valor ou ao quantum pago anteriormente.
Portanto, é certo que tanto a suspensão como qualquer efeito modulatório ansiado pela União que retarde ainda mais ou mitigue os direitos já garantidos às empresas, trariam graves consequências ao Brasil e aos contribuintes, afetando frontalmente a segurança jurídica como jamais visto anteriormente, colocando ainda mais em risco os já fragilizados contribuintes que poderiam passar da condição de credores para a desesperadora condição de devedores de tributo inconstitucional em um estalar de dedos, prenunciando a decretação em massa do final de suas atividades.
A União possui mecanismos previstos na legislação para resolver seus problemas fiscais. Poderia ter adotado uma série deles nos últimos 14 anos, desde que nossa mais alta corte deu evidente sinal, por sua maioria, da inadequação de incluir elemento estranho como receita da empresa. Não o fez. Ao contrário, optou em continuar cobrando de forma inconstitucional. Embora por força da prescrição e do desconhecimento de muitos contribuintes com relação aos seus direitos, a União nunca vá devolver tudo o que amealhou com a prática (provando a máxima da conveniência de se tributar errado), não pode agora ser premiada e ver aniquilado o direito dos milhares de contribuintes que acreditaram no Judiciário e nele tiveram seu direito reconhecido.
FONTE: Conjur – Por Ricardo da Costa Rui e Luis Alexandre Castelo – 23/07/2020