A expressão “fiel” da balança nos remete ao início do século XX, quando os alimentos, entre outros produtos, eram comprados em pequenos armazéns onde tudo era pesado em balanças mecânicas e o método a ser empregado era a comparação: de um lado, colocava-se um peso-padrão e, do outro, o produto a ser adquirido. Quando a balança indicava o equilíbrio entre uma bandeja e outra era sinal de que a quantidade do produto vendido equivalia ao peso-padrão. O ponteiro que indicava o ponto de equilíbrio entre o peso dos dois pratos era chamado de o “fiel” da balança.
Com o tempo, a balança mecânica foi substituída pelos modelos automáticos, mas a expressão “fiel” da balança continua sendo usada até hoje, para indicar o equilíbrio entre dois lados ou mesmo para se referir a um mediador confiável, às pessoas com o poder de influenciar de forma decisiva o resultado de uma disputa e, em muitas ocasiões, ao poder judiciário, cuja máxima instância é o Supremo Tribunal Federal.
Simbologias à parte, é fato que nunca estivemos tão necessitados de que o Supremo Tribunal Federal atue como o “fiel” da balança, leia-se, o ponto de equilíbrio. A pauta de julgamentos para o primeiro semestre de 2020, que tem início no dia de 3 de fevereiro, anunciada pelo presidente, ministro Dias Toffoli, nos traz alguma esperança de que isso possa ocorrer com a solução de temas de enorme relevância ao país e à sociedade.
A pauta contempla assuntos tributários que se encontram pendentes há anos, quiçá há décadas. Os detratores dirão que o fato dessas matérias ainda estarem inconclusas confirma a má funcionalidade do Judiciário, fator que, dentre muitos malefícios, acarreta a demora no julgamento dos processos, beneficiando aqueles que têm interesse e meios de procrastiná-los.
Outros, entretanto, verão nesse recente movimento a intenção e o empenho de “desengavetar” assuntos, muitos dos quais afetam a vida de cada um de nós e são importante elemento na manutenção do Estado de Direito. Me encontro entre os otimistas, até prova em contrário.
Nos últimos anos o STF vem dando prioridade a uma pauta política e criminal, que catalisa as atenções da população justamente porque envolve temas e pessoas presentes em nosso dia a dia. Do mensalão à “lava jato”, os termos técnicos, os jargões jurídicos e os rostos dos ministros que compõem o STF ocuparam a mente e o coração do homem comum.
Natural que o STF se dedicasse a esses temas, além de outros bastante polêmicos, como a demarcação de terras indígenas, a não criminalização do aborto de anencéfalos, a pesquisa com células-tronco embrionárias e, mais recentemente, a prisão em segunda instância antes da condenação definitiva do réu. Mas também é fato, embora não tão evidente, que os temas tributários igualmente afetam e muito a vida de cada um de nós.
O primeiro assunto em pauta, com julgamento marcado para 2 de abril, envolve a constitucionalidade da inclusão do salário maternidade na base de cálculo da contribuição previdenciária incidente sobre remuneração (RE 576.967). A questão aqui é saber se esse benefício tem natureza indenizatória, o que afastaria a hipótese de tributação, ou se, diferentemente, teria natureza remuneratória, ficando sujeito à incidência dos encargos previdenciários assim como toda e qualquer outra verba compreendida como remuneração.
Como não poderia deixar de ser, a iminência do julgamento reacendeu discussões antigas, não somente sob a perspectiva tributária, mas também envolvendo a desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Uma coisa é certa: o julgamento de 5 de fevereiro, se realmente vier a encerrar a controvérsia, terá impacto relevantíssimo na vida de mulheres e homens de todo o Brasil.
Já em 1º de abril, teremos o julgamento da discussão em torno da possibilidade de tratado de bitributação — no caso específico, entre o Brasil e a Suécia — vir a estender ao residente no exterior a isenção prevista ao residente no país e, nesse contexto, se haveria hierarquia entre normas internas infraconstitucionais e tratados internacionais em matéria tributária.
Não há dúvida que tal decisão será importante paradigma, inclusive para nortear a coexistência da legislação tributária nacional com normas internacionais, como os tratados de bitributação o são. Considerando os enormes esforços empregados pelo Brasil para ingressar na OCDE – e o fato do país nunca ter estado tão próximo desse objetivo -, não há dúvida que a repercussão será grande e terá consequências, não importa qual seja o resultado.
Nesse mesmo dia (1/4), o STF também pretende encerrar formalmente uma das maiores discussões tributárias que já enfrentou, a qual, nas insistentes manifestações da Fazenda Nacional, pode envolver cerca de R$ 250 bilhões: a exclusão do ICMS da base de cálculo da Contribuição ao PIS e da Cofins (RE 574.706). Esse julgamento será um grande teste em relação à segurança jurídica, já que muitos processos já se encerraram, com êxito aos contribuintes, as empresas já reconheceram os ganhos, já tributaram essas receitas e não se espera uma reviravolta, sem base jurídica e por casuísmo da Fazenda Nacional.
Como dito e redito várias vezes, não há qualquer fundamento jurídico a autorizar o STF a modular os efeitos da decisão pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da Contribuição ao PIS e da Cofins, nem tampouco há como se justificar que o valor do imposto a ser excluído seria o valor efetivamente recolhido pelo contribuinte, e não o valor apurado/destacado de ICMS, justamente o que foi incluído nas respectivas bases, pontos trazidos pela União em seus embargos de declaração, mas que certamente serão refutados.
Ainda sobre o tema segurança jurídica, teremos em 30 de abril o julgamento de discussão que trata do limite da coisa julgada em âmbito tributário (RE 949.292), mais especificamente nas hipóteses em que o contribuinte possui decisão judicial transitada em julgado que declare a inexistência de relação jurídico-tributária, ao fundamento de inconstitucionalidade incidental de tributo (via controle difuso de constitucionalidade), o qual vem a ser declarado constitucional, em momento posterior, na via do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade exercido pelo STF. Mais uma vez a segurança jurídica será posta à prova e espera-se que a posição do STF não seja qualquer outra senão manter a coisa julgada formada.
Já em 27 de maio, teremos o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.395, que tem por objeto a cobrança da contribuição previdenciária ao Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural) sobre a receita bruta aferida na comercialização da produção rural de empregadores pessoas físicas. Trata-se aqui de uma das maiores discussões envolvendo o setor agrário, que reivindica a isonomia constitucional garantida a todos os produtores rurais, na condição de empregadores, os quais merecem equiparação aos empregadores urbanos, já que não existe mais uma seguridade rural e uma seguridade urbana.
Em tempos de profundas discussões em torno da reforma tributária, ao mesmo tempo em que o governo divulga sua intenção de arrecadar R$ 8 bilhões a mais de tributos no ano de 2020, vemos relevantes temas tributários sob os holofotes, entre os citados acima, além de muitos outros, como a incidência do ISS sobre o licenciamento ou cessão de softwares personalizados (RE 688.223), a aplicabilidade da não cumulatividade à Cofins (RE 570.122), a tributação de serviços bancários pelo ISS (RE 784.439) e, até mesmo, a constitucionalidade da exigência da taxa de licença, localização e funcionamento no maior município do país, São Paulo (ARE 906.203). Todos os temas, sem qualquer exceção, com maior ou menor impacto na vida do cidadão comum e no dia a dia das empresas.
Temos motivos para ficar esperançosos com a pauta prometida. É verdade que os assuntos são muitos se comparados aos dias de sessão e à complexidade dos temas. Mas quanto mais o STF se mostrar consciente da importância que a solução dos grandes temas tributários tem para o país, mais próximos estaremos de enxergar a Corte como o verdadeiro “fiel” da balança, para voltar ao símbolo de que falamos no início do texto.
Sabemos que a Constituição de 1988 foi generosa na atribuição de direitos e garantias ao contribuinte, tanto que possui uma seção denominada Das limitações do Poder de Tributar (artigos 150 a 152). Entretanto, o esforço do constituinte originário não foi suficiente para inibir a edição de inúmeras medidas ilegais e inconstitucionais, como vimos ocorrer nas últimas décadas, tornando o contencioso tributário brasileiro o maior do mundo. A pauta do STF para o primeiro semestre de 2020 é um claro exemplo disso.
Cabe ao STF fazer valer a Constituição, exercer o papel que lhe foi atribuído e ofertar à sociedade e ao país aquilo que mais necessitamos: a confiança no Judiciário e a segurança jurídica. Sem isso, estabilidade econômica, crescimento do PIB, baixos índices de inflação e equalização das contas públicas continuarão sendo importantes, mas não serão suficientes para levar o país a um outro patamar. A missão do STF é complexa e desafiadora, mas não é impossível.
Por Glaucia Lauletta Frascino
Glaucia Lauletta Frascino é sócia do escritório Mattos Filho.
Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2020.
https://www.conjur.com.br/2020-fev-03/glaucia-lauletta-stf-pauta-2020-fiel-balanca