Fundamentação de voto da relatora é favorável ao contribuinte.
O Supremo Tribunal Federal (STF) está a um voto de decidir sobre a aplicação da chamada “norma antielisão”. Prevista no Código Tributário Nacional (CTN), é muito usada pela fiscalização para desconstituir operações realizadas pelas empresas que reduzem a carga fiscal – os chamados planejamentos tributários.
Cinco ministros votaram até agora e todos eles reconheceram a constitucionalidade da norma, estabelecida pelo parágrafo único do artigo 116 do CTN. Só falta mais um voto para que se tenha a maioria. O julgamento, que estava no plenário virtual da Corte, foi suspenso por um pedido de vista do ministro Ricardo Lewandowski e não tem ainda uma nova data definida para ser retomado.
Mas já vem chamando a atenção de especialistas. Se confirmar o placar, segundo eles, a decisão retratará uma situação rara: os ministros terão se posicionado contra o pedido do contribuinte, mas a fundamentação adotada será favorável.
A explicação para essa situação inusitada está no voto da relatora, a ministra Cármen Lúcia. Ela afirma que a norma não proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas, a economia fiscal, “realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada”.
De acordo com advogados da área tributária, operações com vistas a unicamente reduzir tributos são amplamente rechaçadas pelo Fisco. Os contribuintes costumam ser autuados quando não conseguem demonstrar que existia um propósito negocial para justificar tais atos. Essas cobranças são geralmente mantidas no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
As autuações estão geralmente fundamentadas no artigo 116 do CTN. O parágrafo único do dispositivo estabelece que a fiscalização pode desconstituir atos ou negócios feitos com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador.
“Se criou uma teoria em cima desse artigo. O Fisco exige um propósito negocial e esse propósito não pode ser a economia de tributos”, diz a advogada Valdirene Lopes Franhani, sócia do escritório Lopes Franhani.
A ministra Cármen Lúcia faz uma análise aprofundada do dispositivo em seu voto. Ela considera, inclusive, que a denominação “norma antielisão” não é apropriada. O parágrafo único do artigo 116, afirma, trata de norma de combate à evasão fiscal.
“Enquanto na primeira há diminuição lícita dos valores tributários devidos pois o contribuinte evita relação jurídica que faria nascer obrigação tributária, na segunda, o contribuinte atua de forma a ocultar fato gerador materializado para omitir-se ao pagamento da obrigação tributária devida”, diz em seu voto.
Os ministros analisam o tema por meio de ação direta de inconstitucionalidade apresentada pela Confederação Nacional do Comércio (CNC) – ADI 2446. Acompanharam, até agora, o voto de Cármen Lúcia os ministros Marco Aurélio, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes.
Se prevalecer esse entendimento, interpreta o advogado Tiago Conde, sócio do escritório Sacha Calmon, o Fisco só poderá desconsiderar as operações realizadas pelas empresas se demonstrar que houve fraude ou simulação. “Muda completamente de valor. Porque hoje o Fisco joga e o contribuinte tem que correr atrás. Agora, pelo voto da relatora e já acompanhado por quatro ministros, estamos entendendo que o Fisco terá que comprovar que há ilícito”, diz.
Para a advogada Valdirene Franhani, o posicionamento, se mantido, vai fortalecer as discussões sobre planejamento tributário no Judiciário. “Encerra muitos dos casos que os contribuintes perdem no Carf”, afirma.
A advogada cita como exemplo as autuações direcionadas a aproveitamento de crédito por grupos econômicos, planejamento com incorporação de ações e o chamado ágio interno – gerado a partir de operações intragrupo. “Se não provar que houve fraude, essas discussões serão canceladas.”
O procurador Paulo Mendes, que coordena a atuação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) no STF, afirma, no entanto, que não é exatamente dessa forma que as coisas acontecem. Segundo o procurador, o planejamento tributário abusivo não se caracteriza pelo “simples fato de haver redução de carga tributária”, mas por a operação realizada ter servido para “escamotear os verdadeiros fatos jurídicos”.
“Existe um ponto de contato entre as teses do contribuinte e da Fazenda. Defendemos que o planejamento tributário lícito é possível”, diz. O procurador afirma ainda concordar com a ministra Cármen Lúcia sobre ter caráter antievasivo e não antielisivo. “O objetivo da norma é evitar planejamentos fraudulentos.”
O parágrafo único do artigo 116 é “desde sempre” discutido, observa o advogado Leandro Cabral, do escritório Velloza. O texto foi incluído no Código Tributário Nacional pela Lei Complementar nº 104, de 2001. Esse foi o mesmo ano em que a CNC propôs a ação de inconstitucionalidade – que depois de quase duas décadas ainda não tem desfecho no STF.
Houve, nesse período, duas tentativas de regulamentação da norma. Uma em 2002, por meio da Medida Provisória nº 66, e outra em 2015, por meio de outra MP, a nº 685. Nenhuma das duas foi mantida pela Congresso.
O que se esperava com essa recusa, diz o advogado, era que o Fisco não praticasse atos de desconsideração. “Mas não foi isso o que aconteceu. Há outros dispositivos que, na visão da Receita, dão respaldo”, afirma. Por isso, para Leandro Cabral, a decisão do STF, se confirmada, será positiva, mas não resolverá a questão.
“Se continuarmos com a lente de deixar como está, sem regulamentação, será ruim para o contribuinte e será ruim para o Fisco. Se fosse regulamentada, com discussões no Congresso e a participação da sociedade, haveria segurança para ambos os lados porque existiriam parâmetros”, conclui o advogado.
FONTE: Valor Econômico – Por Joice Bacelo — De Brasília – 29 de junho de 2020