Longo é o caminho do intérprete do direito positivo até a constituição da obrigação tributária. Interessante observar que a norma tributária possui em si um controle de legalidade em cada um dos critérios do antecedente e do consequente.
No antecedente, há a necessidade de o critério material corresponder a um verbo somado a um complemento previamente fixado pela Constituição. O critério espacial e temporal tem que refletir a realização do critério material em determinado espaço-tempo. No consequente, o critério pessoal deve eleger sujeitos ligados ao verbo presente no critério material, seja praticando o verbo ou vinculado ao verbo previsto no antecedente. Por fim, o critério quantitativo deve representar manifestação de riqueza derivada da prática do verbo.
Ainda que cada critério da norma geral e abstrata esteja devidamente preenchido no texto da lei, a constituição da obrigação tributária só ocorrerá com a subsunção do fato à norma, vertido em linguagem competente.
Nas palavras de Paulo de Barros:
São três condições necessárias para o estabelecimento de vínculo tributário válido: sem lei anterior que descreva o evento, obrigação tributária não nasce (princípio da legalidade); sem subsunção do fato à hipótese normativa, também não (princípio da tipicidade); havendo previsão legal e a correspondente subsunção do fato à norma e, após a devida transformação na linguagem competente, os elementos do liame jurídico irradiado devem equivaler àqueles prescritos na lei. O desrespeito a esses cânones fulminará, decisivamente, qualquer pretensão de cunho tributário.[1]
Nesse ponto, especialmente quanto aos impostos, aqui adotando a teoria quinária[2] das espécies tributárias, há de se observar que o fenômeno da incidência requer, em sua maioria, a transposição por duas normas de estrutura e uma norma de conduta.
Sobre o conceito de normas ou regras de estrutura e conduta:
Numa análise mais fina das estruturas normativas, vamos encontrar unidades que têm como objetivo final ferir de modo decisivo os comportamentos interpessoais, modalizando-os deonticamente como obrigatórios (O), proibidos (V) e permitidos (P), com o que exaurem seus propósitos regulativos[3].
Essas regras que regem de forma decisiva os comportamentos interpessoais são denominadas “regras de conduta”.
Porém, há normas que visam regrar a forma de produção de outras normas. Essas normas instituem condições, determinam limites ou estabelecem outra conduta que servirá de meio para a construção de regras do primeiro tipo[4] (norma de conduta). São as denominadas “regras de estrutura”.
A ordem jurídica brasileira é um sistema de normas, algumas de comportamento, outras de estrutura, concebido pelo homem para motivar e alterar a conduta no seio da sociedade[5]. Considerando o sistema federativo e a preocupação de uniformidade das normas tributárias, a Constituição de 1988 concedeu à Lei Complementar Nacional papel fundamental de regra estruturante das normas de incidência dos impostos.
Aqui se inicia o exame da regra-matriz do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Inicialmente, encontramos na Constituição regra de estrutura relativa ao sujeito competente para instituir o imposto, o elemento do critério material e princípios de aplicação da norma de incidência, como a necessidade de se respeitar a não-cumulatividade e necessidade de alíquotas seletivas, em razão da essencialidade.
Com esses elementos, o constituinte fixou a abrangência da competência da União para instituir o IPI.
No plano infraconstitucional, o Código Tributário Nacional fixou regras complementares à instituição do IPI, porém, insuficientes à constituição da obrigação tributária. As regras fixadas pelo CTN desenham boa parte da regra-matriz de incidência dos impostos, no entanto, a regra de conduta só será criada por lei ordinária da União, Ente Federado competente.
Continuando com o exemplo do IPI, a norma que institui o referido imposto não é o CTN, mas a Lei 4.502/1964. Portanto, esta é a norma de conduta do IPI.
O exemplo do IPI se aplica tanto ao ICMS como ao ISS.
Em geral, os impostos, espécie do gênero “tributo”, possuem uma regra-matriz de estrutura e uma regra-matriz de conduta, sendo esta a norma que fixará a obrigação tributária.
Eis as razões de nossa crítica à decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no EREsp 1.403.532/SC, recurso repetitivo que examinou a incidência do IPI na revenda de importados.
Voltando-se para a Lei 4.502/1964, o artigo 2º distingue expressamente a hipótese de incidência do IPI quando o produto é de procedência estrangeira e quando o bem é de produção nacional. Diz o artigo:
Art. 2º Constitui fato gerador do imposto:
I – quanto aos produtos de procedência estrangeira o respectivo desembaraço aduaneiro;
II – quanto aos de produção nacional, a saída do respectivo estabelecimento produtor.
Nota-se claramente que a norma de conduta, ao instituir o IPI, vincula a incidência do imposto ao local de produção, sendo que apenas os produtos de produção nacional tem como fato gerador a saída do estabelecimento produtor.
No entanto, ao enfrentar o referido artigo, o relator para o acórdão ministro Mauro Campbell Marques defendeu que:
A linha de argumentação que impedia a nova incidência para produtos provenientes do exterior somente fazia sentido durante a vigência da Lei 4.502/64, que vinculava a hipótese de incidência ao local de produção do bem. Essa argumentação foi, portanto, superada pelo advento do CTN e pela legislação posterior[6].
Ora, afirmar que a Lei 4.502/1964 não atende aos preceitos do CTN é o mesmo que apontar sua ilegalidade e, portanto, uma vez retirada do ordenamento jurídico, sequer haverá tributo a ser exigido, pois a norma de conduta que o instituiu está “superada/revogada”. Agora, se reconhecido que o CTN não revogou a Lei 4.502/1964, o que de fato não o fez, então não há que se falar em norma “superada”, de modo que permanece no sistema a vinculação da hipótese de incidência do IPI ao local de produção do bem.
Exemplo pragmático que corrobora a necessidade de uma “regra-matriz de conduta” para criação dos impostos é o IPI na arrematação. Apesar de existir a norma de estrutura dessa hipótese de incidência no artigo 46, III, do CTN, a União não exerceu sua competência tributária para, por meio de uma norma de conduta (lei ordinária), instituir esse evento como fato jurídico tributável.
Logo, diferente da posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, é a regra-matriz de conduta a norma essencial à instituição dos impostos.
Nesse sentido é o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal no Agravo Regimental em Agravo de Instrumento 167.777/SP, que afastou a necessidade da norma da estrutura prevista no artigo 146, III, ‘a’ da CF para, só então, os Estados exercerem a competência tributária para instituir por meio de lei ordinária (norma de conduta) o IPVA.
Conforme apontado pelo relator ministro Marco Aurélio, “deixando a União de editar normas gerais, exerce a unidade da federação a competência legislativa plena – § 3º do artigo 24, do corpo permanente da Carta de 1988”[7]. Essa também é a leitura do artigo 34, §3º, do ADTC: “Promulgada a Constituição, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão editar as leis necessárias à aplicação do sistema tributário nacional nela previsto”. Não por outra razão o artigo 6º do CTN destaca: “A atribuição constitucional de competência tributária compreende a competência legislativa plena”.
Resta claro, portanto, que a criação de impostos deriva da regra de conduta e não da regra de estrutura.
Assim, o estudo da regra-matriz dos impostos reclama atenção especial à regra-matriz de conduta, instituída pelo Ente Federado competente por meio de lei ordinária (com exceção ao Imposto sobre Grandes Fortunas, que deverá ser instituído por lei complementar). Em relação ao IPI, se o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que a Lei 4.502/1964 vincula a hipótese de incidência ao local de produção do bem, inegável que não há que se falar em sua superação, por inexistir norma de conduta da União em sentido diverso.
Pelo exposto, mostra-se equivocada a interpretação adotada pelo Superior Tribunal de Justiça no recurso repetitivo EREsp 1.403.532/SC, devendo permanecer a regra prevista no artigo 2º da Lei 4.502/1964 (norma de conduta), a qual expressamente determina que aos produtos de procedência estrangeira o fato gerador do IPI é tão somente o desembaraço aduaneiro, sendo que apenas os bens de produção nacional têm como fato gerador a saída o estabelecimento produtor ou equiparado.
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[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Linguagem e Método. 6ª ed. São Paulo: Noeses, 2015. p. 246.
[2] A partir do julgamento do RE 177.137/RS o Supremo Tribunal Federal passou a adotar a teoria quinária da classificação dos tributos, de modo que para o Supremo há cinco espécies de tributos: impostos, taxas, contribuições de melhoria, contribuições especiais e empréstimos compulsórios.
[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Fundamentos Jurídicos da Incidência. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 66.
[4] Op. Cit. p. 66.
[5] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 158.
[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.403.532/SC. Relator para o acórdão Min. Mauro Campbell Marques. Primeira Seção. Diário da Justiça Eletrônico 18/12/2015
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 167.777/SP. Relator Min. Marco Aurélio. Segunda Turma. Diário da Justiça 09/05/1997.
Por Maurício Pereira Cabral.
Maurício Pereira Cabral é sócio do Blasi & Valduga Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Membro da Comissão de Direito Portuário e Marítimo da OAB/SC (2014/2015).
Revista Consultor Jurídico, 7 de dezembro de 2017.