Corte altera entendimento e adota critérios definidos pelo Supremo para criminalização.
Empresários têm conseguido no Superior Tribunal de Justiça (STJ) trancar processos penais por não recolhimento de ICMS declarado. Os ministros mudaram de entendimento e passaram a levar em consideração os critérios estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em dezembro, para a criminalização da prática – frequência (contumácia) e intenção de deixar de pagar o tributo mesmo tendo condições financeiras (dolo de apropriação).
Até a decisão do Supremo, o entendimento do STJ, consolidado pela 3ª Seção desde agosto de 2018 (HC 399109), era de que deveria ser considerado crime qualquer inadimplemento de ICMS. Agora, mesmo o relator do caso julgado pela Seção, ministro Rogério Schietti Cruz, que já foi um ferrenho defensor da ampla criminalização, julga de forma diferente.
No início de agosto, ele e os demais ministros da 6ª Turma decidiram pelo trancamento do processo penal contra o sócio-administrador da Sasil Comercial e Industrial de Petroquímicos, Paulo Sérgio Costa Pinto Cavalcanti (Agrg no HC 97903).
O empresário foi denunciado pelo Ministério Público de Santa Catarina pelo fato de a Sasil ter deixado de recolher, em um mês, R$ 36 mil de ICMS. O valor foi parcelado em 60 vezes, mas, depois de alguns pagamentos, houve inadimplência.
Rogério Schietti Cruz entendeu que para a configuração do delito é necessário que a conduta seja dolosa. Segundo o ministro, “há uma diferença inquestionável entre aquele que não paga tributo por circunstâncias alheias à sua vontade de pagar (dificuldades financeiras, equívocos no preenchimento de guias etc) e quem, dolosamente, não recolhe o tributo motivado por interesses pessoais (possibilidade de reinvestimento com maior retorno, obtenção de maiores lucros etc)”.
De acordo com a advogada que atuou no caso, Paula Lima, sócia do Caputo, Bastos e Serra Advogados, embora a decisão do Supremo tenha sido muito criticada, ao estabelecer critérios tem permitido que contribuintes possam trancar ações penais.
“No nosso caso, o nosso cliente estava devendo apenas um mês, não daria para dizer que existe contumácia”, diz.
Muitas denúncias oferecidas pelo Ministério Público, afirma a advogada, são movidas sem que exista uma investigação prévia dos casos. “ O problema é que o processo criminal mancha a imagem do empresário. Até comprovar que não se tratou de crime, é um longo processo”, diz.
A decisão do STJ aplica de forma correta o que foi estabelecido pelo Supremo, segundo o tributarista que também atuou no caso, Gabriel Abujamra Nascimento, sócio do Mattos Engelberg Echenique Advogados. Para ele, o processo penal “deve punir quem de fato é sonegador e não coagir o empresário em dificuldade financeira a pagar tributo”.
O fato de responder um processo criminal, acrescenta, tira a credibilidade do empresário com fornecedores e clientes e agrava a situação da empresa em dificuldade financeira. “Se não usada da forma correta, a criminalização vai ser uma maneira de falir a empresa.”
Uma outra empresária, responsável por uma indústria de móveis em Santa Catarina, também conseguiu arquivar processo penal na 6ª Turma do STJ (REsp 1852129). Ela foi denunciada pelo Ministério Público por dever quatro meses de ICMS, no valor total de R$ 67 mil.
Em seu voto, o relator, ministro Sebastião Reis Junior, destaca que “a ausência do recolhimento do ICMS declarado consubstanciou um evento isolado na gestão da pessoa jurídica, pois perdurou por um pequeno período de tempo (quatro meses), inexistindo menção a nenhum processo administrativo fiscal iniciado para apurar apropriação subsequente a esse lapso temporal”.
O advogado Igor Mauler Santiago, do Mauler Advogados, que assessorou um cliente no julgamento do Pleno do STF, afirma que o entendimento melhorou o cenário até então desenhado pela Seção do STJ. “O Supremo mitigou um pouco o impacto devastador da definição do STJ. A situação era trágica, agora é ruim”.
Para ele, o STF estabeleceu duas importantes condicionantes para a criminalização, apesar de não ter um conceito definido sobre contumácia e dolo de apropriação. Se essas questões não forem tratadas na publicação do acórdão ou em embargos de declaração, acrescenta, “caberá à jurisprudência, ao longo dos anos, defini-las”.
Também há decisões monocráticas do STJ. Um dos casos foi analisado pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Ele determinou à segunda instância a reanálise de processo de contribuinte que deve 13 meses de ICMS, mas que alega dificuldade financeira, o que, segundo o ministro, não chegou a ser avaliado (REsp 1851000).
No STF, em junho, a ministra Cármen Lúcia também trancou ação penal contra contribuinte que declarou o ICMS, mas não pagou ao Estado de Santa Catarina por seis meses – entre junho e dezembro de 2013. Para a ministra, não foi caracterizado o não recolhimento contumaz e o dolo (RHC 165334).
Em São Paulo, advogados destacam precedentes de primeira instância. O juiz Saulo Mega Soares e Silva, da 1ª Vara Judicial de Agudos, absolveu o administrador de uma distribuidora de medicamentos que deve duas parcelas de ICMS no total de R$ 55 mil (processo nº 1002135-32.2016.8.26.0058).
Já a 5ª Vara Criminal de Guarulhos absolveu o sócio-administrador de uma indústria de bebidas que deixou de recolher, em janeiro de 2015, R$ 296 mil de ICMS. Para o juiz André Luiz da Silva da Cunha, não houve contumácia (processo nº 1001080-96.2017.8.26.0224).
Alguns contribuintes, porém, têm sido condenados. O ministro Rogério Schietti Cruz, em decisão monocrática, rejeitou recurso de um empresário que deve dez meses de ICMS, cerca de R$ 155 mil, ao Estado de Santa Catarina. A segunda instância havia estabelecido pena de três anos e seis meses de reclusão mais 11 dias-multa, no regime inicial semiaberto.
Na decisão, o ministro afirma que pode haver um estado de necessidade, mas a sonegação fiscal deve ser o último recurso usado pelo empresário e de forma pontual (REsp 1870469).
Segundo o advogado Vinicius Jucá Alves, sócio do TozziniFreire, os tribunais estão analisando caso a caso para absolver ou condenar. Nos precedentes favoráveis, a principal motivação tem sido o pequeno período de não pagamento. Ele entende, porém, que os tribunais devem estar atentos para absolver quem deixou de pagar ICMS pela crise gerada pela pandemia.
Em nota, o Ministério Público de Santa Catarina afirma que “na medida em que a compreensão da condição contumácia está sujeita a aspectos subjetivos, é preciso muito cuidado na sua invocação para fins penais”. De todo modo, acrescenta o órgão, “é recomendável aguardar-se a publicação da decisão do STF para maior aprofundamento da temática”. Procurado, o Ministério Público de São Paulo não retornou até o fechamento da edição.
Valor Econômico – Por Adriana Aguiar
4 de setembro de 2020