HABEAS CORPUS Nº 968598 – SP (2024/0476938-3)
DECISÃO
Trata-se de habeas corpus impetrado contra acórdão assim ementado:
PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. SONEGAÇÃO DE IRPJ, CSLL, PIS E COFINS. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. PRELIMINARES REJEITADAS. SÚMULA VINCULANTE Nº 24. MATERIALIDADE PARCIALMENTE COMPROVADA. AUTORIA E DOLO GENÉRICO. DEMONSTRAÇÃO. DOSIMETRIA. PENA REDUZIDA DE OFÍCIO. PENA PECUNIÁRIA MANTIDA. APELO DEFENSIVO DESPROVIDO.
1 – Ação penal que preenche a condição inserta na Súmula Vinculante nº 24, segundo a qual “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.”
2 – O acordo de não persecução penal é medida consensual de solução abreviada da lide penal, sujeita a requisitos e critérios previamente estabelecidos em lei. O ANPP não é direito público subjetivo do investigado.
3 – Na fase inicial da ação penal, vigora o princípio in dubio pro societate, sendo suficiente para recebimento da denúncia a existência de indícios de autoria. A narrativa contida na exordial acusatória evidencia a ocorrência de fato típico e a acusação encontra suporte probatório no procedimento administrativo fiscal acostado aos autos, no mais, a implicação do acusado nos fatos é clara, pois a ele são atribuídos os poderes de gestão da empresa contribuinte e, nessa condição, a prática do crime de sonegação descrito na denúncia.
4 – Materialidade delitiva demonstrada apenas parcialmente.
Absolvição do réu, de ofício, quanto ao período para o qual foi pronunciada a decadência tributária e com relação aos tributos lançados a partir de receitas efetivamente declaradas. Art. 386, III, do CPP.
5 – A sonegação de vultosa quantia não é ínsita à tipificação penal contida no art. 1º, I, da Lei nº 8.137/90, e tem aptidão para causar enorme dano à coletividade, o que atrai a incidência da causa de aumento especial prevista no art. 12, I, do mesmo Diploma Legal.
Sobre o tema, o C. Superior Tribunal de Justiça definiu que “o dano tributário é valorado considerando seu valor atual e integral, incluindo os acréscimos legais de juros e multa” e que “a majorante do grave dano à coletividade, prevista pelo art. 12, I, da Lei 8.137/90, restringe-se a situações de especialmente relevante dano, valendo, analogamente, adotar-se para tributos federais o critério já administrativamente aceito na definição de créditos prioritários, fixado em R$1.000.000,00 (um milhão de reais), do art. 14, caput, da Portaria 320/PGFN.” (R Esp n. 1.849.120/SC, relator Ministro NEFI CORDEIRO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 11/3/2020, D Je 25/3/2020).
6 – Autoria demonstrada. Dolo genérico comprovado. Eventuais fracassos nos empreendimentos do acusado e dificuldades financeiras deles advindas poderiam explicar o inadimplemento de tributos, mas não justificam, em nenhuma medida, a prestação de declarações falsas à Receita Federal.
7 – O mero fato de o administrador empregar terceiros para o cumprimento de obrigações tributárias acessórias não afasta, de plano, sua responsabilidade sobre ilícitos que resultem da decisão referente ao recolhimento ou não de tributos ou das informações declaradas e lançadas nas declarações tributárias, uma vez que, tendo o dever de assegurar a atuação da pessoa jurídica em conformidade com a lei, poderá praticar o crime por ação direta ou por omissão imprópria, nos termos do art. 13, § 2º, do Código Penal.
8 – Penas de reclusão e de multa reduzidas de ofício.
9 – A pena pecuniária substitutiva da pena privativa de liberdade deve ser fixada de maneira a garantir a proporcionalidade entre a reprimenda substituída e as condições econômicas do condenado, além do dano a ser reparado. 10 – Apelo defensivo desprovido.
Paciente foi condenado à pena de 03 anos de reclusão, em regime inicial aberto, e ao pagamento de 15 dias-multa, pela prática do crime de supressão ou redução de tributo (art. 1º, inc., I, da Lei nº 8.137/90), pois, na qualidade de sócio e administrador da “EMPRESA BRASILEIRA DE SEGURANÇA E VIGILÂNCIA Ltda.”, suprimiu IRPJ, PIS, COFINS e CSLL, devido pela pessoa jurídica no ano de 2009, mediante a omissão de operações em documento ou livro exigido pela lei fiscal e prestando de declaração falsa à autoridade tributária, chegando ao montante de R$ 1.371.384,38 (e-STJ fls. 23-25 e 56).
A defesa alega, em síntese a condenação por crime tributário que, exclusivamente, se fundou no equivocado emprego da teoria do domínio organizacional do fato, suprindo-se, mediante tal agir, lacunas causais e omissões descritivas da acusação que inaugurou os autos de origem, em violação direta ao artigo 13 do Código Penal e ao artigo 41 do Código de Processo Penal.
Ao final, requer a concessão da ordem para absolvê-lo da prática do crime previsto no artigo 1º, inciso II, da Lei n° 8.137/1990, nos termos do artigo 386, V, do Código de Processo Penal.
É o relatório.
Decido.
A Terceira Seção desta Corte, seguindo entendimento firmado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sedimentou orientação no sentido de não admitir habeas corpus em substituição a recurso próprio ou a revisão criminal, situação que impede o conhecimento da impetração, ressalvados casos excepcionais em que se verifica flagrante ilegalidade apta a gerar constrangimento ilegal.
Veja-se:
“O habeas corpus não pode ser utilizado como substitutivo de recurso próprio, a fim de que não se desvirtue a finalidade dessa garantia constitucional, com a exceção de quando a ilegalidade apontada é flagrante, hipótese em que se concede a ordem de ofício” (AgRg no HC n. 895.777/PR, Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 2/4/2024, DJe de 8/4/2024).
“De acordo com a jurisprudência do STJ, não é cabível o uso de habeas corpus como sucedâneo de revisão criminal, notadamente quando não há indicação de incidência de alguma das hipóteses previstas no art. 621 do CPP. Precedentes” (AgRg no HC n. 864.465/SC, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 18/3/2024, DJe de 20/3/2024).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no mesmo sentido:
“Do ponto de vista processual, o caso é de habeas corpus substitutivo de agravo regimental (cabível na origem). Nessas condições, tendo em vista a jurisprudência da Primeira Turma desta Corte, entendo que o processo deve ser extinto sem resolução de mérito, por inadequação da via eleita (HC 115.659, Rel. Min. Luiz Fux) (…) A orientação jurisprudencial deste Tribunal é no sentido de que o “habeas corpus não se revela instrumento idôneo para impugnar decreto condenatório transitado em julgado” (HC 118.292-AgR, Rel. Min. Luiz Fux). 4. O caso atrai o entendimento desta Corte no sentido de que não cabe habeas corpus para reexaminar os pressupostos de admissibilidade de recurso interposto perante outros Tribunais (HC 146.113-AgR, Rel. Min. Luiz Fux; e HC 110.420, Rel. Min. Luiz Fux). (…)
(HC 225896 AgR, Relator Ministro Luís Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 15/5/2023, DJe de 17/5/2023).
O entendimento é de elevada importância, devendo ser utilizado para preservar a real utilidade e eficácia da ação constitucional, qual seja, a proteção da liberdade da pessoa, quando ameaçada por ato ilegal ou abuso de poder, garantindo a necessária celeridade no seu julgamento.
A concessão de ofício da ordem, nos termos dos arts. 647-A e 654, § 2º, do Código de Processo Penal, depende da existência de flagrante ilegalidade.
Analisando-se o conteúdo da documentação colacionada aos autos verifico flagrante ilegalidade capaz de fundamentar a concessão da ordem de ofício.
Para que um indivíduo possa ser condenado pela prática do crime de natureza tributária, não se pode abrir mão da regra básica do direito penal do fato, positivada no art. 13 do CP, que diz: “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.
De acordo com esse dispositivo, é preciso que o indivíduo pratique uma conduta humana qualificada como uma comissão ou como uma omissão para ser responsabilizado penalmente. Em caso de omissão, ainda é preciso que se verifique o dever e a possibilidade de agir, dispostas no art. 13, §2º do CP. Sendo assim, a responsabilidade penal não pode decorrer de um estado ou de uma qualidade do indivíduo, como ser sócio ou diretor de uma empresa.
Portanto, juntando a exigência do Direito Penal do fato com os crimes tributários, a responsabilidade penal somente surgirá caso se identifique uma conduta praticada por um indivíduo que se amolde a um dos incisos do art. 1º da Lei nº 8.137/90 e da qual decorra a supressão ou redução de tributo (comissão) ou que esse indivíduo deixe de intervir em um curso causal fraudulento iniciado por terceiro, quando deveria e poderia fazê-lo, de modo que ocorra o resultado de supressão ou redução de tributo (omissão imprópria).
Dado esse quadro teórico de atribuição de responsabilidade, é absolutamente deslegitima a prática judicial que utiliza a elementos de responsabilidade por omissão imprópria e elementos da teoria do domínio do fato para suprir lacunas probatórias.
De forma simples, o raciocínio utilizado é o seguinte: um indivíduo ocupa um alto cargo em uma empresa (sócio, diretor, etc.). A partir dessa informação, faz-se uma afirmação de que ele teria “domínio do fato” e, por consequência, ao ter esse domínio, afirma que o sujeito é o responsável por todas as fraudes que ocorreram internamente na empresa e que geraram supressão ou redução de valores de tributos ou, no mínimo, não impediu que elas acontecessem.
Esse raciocínio está equivocado porque a teoria do domínio do fato é uma teoria que atribui a qualidade de autor a determinados intervenientes em fatos criminosos comuns, dolosos e comissivos, mas ela não abre mão de que se demonstre uma conduta praticada pelo indivíduo. Portanto, o domínio do fato advém da prática de uma conduta concreta e não de uma posição e, principalmente, caso se pretenda argumentar que se trata de uma responsabilidade por omissão, o domínio do fato já não é mais o critério a ser utilizado para fins de definição de autoria do crime.
Feitos esses esclarecimentos iniciais, é possível passar ao exame do caso.
Ao confirmar a condenação do paciente pela prática do crime tributário, o v. acórdão fundamentou sua responsabilidade penal da seguinte forma:
[…]. Não se pode admitir, como sustentou o acusado em seu interrogatório judicial, que a responsabilidade pelos fatos descritos na denúncia seja atribuída a terceiros por ele contratados para a administração diária da empresa e, mais precisamente, para a prestação de declarações à Receita Federal. Isso porque mesmo os indivíduos mais inexperientes têm conhecimento de que a receita obtida no exercício da empresa deve ser declarada à Receita Federal, não sendo crível que o acusado tenha laborado em equívoco e desconhecesse que as declarações apresentadas para o ano de 2009 informavam receita anual inverídica. Afinal, ainda que o preenchimento da declaração estivesse a cargo de contadores da empresa, é absolutamente inverossímil que o réu, na qualidade de único sócio que efetivamente geria a pessoa jurídica, desconhecesse o volume da movimentação de sua empresa e julgasse correta a receita informada às autoridades fazendárias na DIPJ 2010. Além disso, não é crível que um contador contratado pela sociedade empresária tivesse, “sponte propria”, omitido receita milionária na declaração do ano-calendário 2009, implicando até criminalmente os administradores da pessoa jurídica e sem auferir disso qualquer vantagem. No caso de delitos perpetrados no âmbito da pessoa jurídica, importa perquirir quem administra efetivamente a entidade, sendo irrelevante se a administração de fato coincide ou não com a previsão do contrato social. Além disso, consoante já assinalado neste voto, o mero fato de o administrador empregar terceiros para o cumprimento de obrigações tributárias acessórias não afasta, de plano, sua responsabilidade sobre ilícitos que resultem da decisão referente ao recolhimento ou não de tributos ou das informações declaradas e lançadas nas declarações tributárias, uma vez que, tendo o dever de assegurar a atuação da pessoa jurídica em conformidade com a lei, poderá praticar o crime por ação direta ou por omissão imprópria, nos termos do art. 13, § 2º, do Código Penal.
E, na hipótese, a redução de tributos mediante prestação de informações falsas, ainda que não tenham sido prestadas diretamente pelo réu, não poderia ser praticada sem a sua ciência. Dessa maneira, demonstrado que o acusado detinha isoladamente os poderes de administração, fica configurado o dever legal de evitar o resultado material previsto pelo tipo penal […] (e-STJ fls. 58 – grifos acrescidos).
Extrai-se do trecho acima, que o Tribunal de origem fundamentou a responsabilidade penal do paciente exatamente com a ilegítima formula acima destacada.
Baseando-se somente na qualidade de sócio administrador da empresa, o Tribunal afirmou que “não era crível” que ele desconhecesse as fraudes praticadas ou a movimentação dos volumes de dinheiro de sua empresa, ainda que terceiros é que preenchessem as declarações.
Complementou ainda que “não é crível” que o contador omitisse receitas milionárias “sponte própria”.
Ocorre que todas essas presunções têm um problema comum e prévio.
Não se deve perquirir o que sabia o agente sem antes afirmar o que ele fez. Ou seja, em momento algum o Tribunal indicou o que o paciente fez, como contribuiu, para as mencionadas fraudes. Ele deu a ordem para que os contadores perpetrassem as fraudes? Ele determinou que diretores das empresas elaborassem declarações falsas? Essas condutas poderiam gerar a responsabilidade penal do agente, mas, se efetivamente fossem a base de sua responsabilidade, deveriam ser provadas, e isso o Tribunal não mostrou em seu acórdão.
Ao contrário, se limitou a fazer presunções a respeito de seu conhecimento.
Não se nega que a contratação de terceiros para realizar as obrigações tributárias da empresa não afasta a responsabilidade do sócio por eventuais fraudes tributárias, porém é preciso demonstrar qual a conduta que o sócio praticou para contribuir com as fraudes cometidas por esses terceiros.
Poder-se-ia dizer, então, que o Tribunal seguiu pelo caminho da responsabilização do paciente por omissão imprópria, uma vez que, na qualidade de sócio, tinha o dever de impedir que as fraudes tributárias fossem cometidas.
Nesse caso, superando o óbice de que essa acusação sequer foi feita na denúncia, fato é que não basta afirmar um dever genérico de intervir proveniente da qualidade de sócio da empresa. Caberia ao Tribunal, caso quisesse veicular uma responsabilidade por omissão, indicar o momento da situação de perigo, ou seja, o momento em que a fraude estava em vias de ser efetivada; indicar qual a ação concreta de salvamento o sócio deveria efetuar, ou seja, qual a ação concreta deveria ter praticado para impedir que a fraude se consumasse (p. ex.: deveria dar uma ordem a um contador? ou deveria retificar a declaração?). Por fim, a partir da ação concreta delimitada, demonstrar que ela era possível física e juridicamente ao sócio.
Porém, nenhuma dessas circunstâncias foi demonstrada. O Tribunal de origem se limitou à figura híbrida e ilegítima da responsabilidade a título de um dever genérico proveniente da qualidade de sócio da empresa. Nem demonstrou o que o sócio fez, qual conduta praticou para contribuir para a fraude, e nem demonstrou os requisitos da omissão imprópria, necessários para sua responsabilização.
Sendo assim, outra não pode ser a conclusão senão a de que o paciente, ao ser condenado nesses termos, está sofrendo constrangimento ilegal, pois não se demonstrou qual a conduta por ele praticada que a torna típica do crime tributário.
Ante todo o exposto, não conheço do habeas corpus substitutivo, mas concedo a ordem de ofício para absolver o paciente pela atipicidade da conduta a ele imputada, com fundamento no art. 386, inc. III, do CPP.
Comunique-se, com urgência, o teor desta decisão ao Tribunal e ao juízo de origem.
Ciência ao Ministério Público Federal.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília, 19 de dezembro de 2024.
Ministra Daniela Teixeira Relatora
(HC n. 968.598, Ministra Daniela Teixeira, DJe de 23/12/2024.)