AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2480456 – PR (2023/0376976-4)
DECISÃO
Trata-se de agravo nos próprios autos interposto contra decisão que inadmitiu o recurso especial em razão da incidência da Súmula n. 284 do STF (e-STJ fls. 181/186).
O acórdão recorrido encontra-se assim ementado (e-STJ fl. 95):
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. IMPENHORABILIDADE DE PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. AUSÊNCIA DE UM DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA QUE SEJA RECONHECIDA A IMPENHORABILIDADE. PROPRIEDADE MAIOR DO QUE QUATRO MÓDULOS FISCAIS. ALEGAÇÃO DE QUE DEVE SER DESCONTADA A ÁREA DE RESERVA LEGAL PREVISTA NO CÓDIGO FLORESTAL. IMPOSSIBILIDADE. AFERIÇÃO DA ÁREA TOTAL DO IMÓVEL DEVE SE DAR ANTES DE SER DESCONTADA A RESERVA LEGAL, UMA VEZ QUE TAL RESERVA DEVE SER APLICADA A TODA E QUALQUER PROPRIEDADE RURAL. DOAÇÃO DE 25% DA PROPRIEDADE À NORA DOS PROPRIETÁRIOS, O QUE DEIXARIA O BEM MENOR DO QUE QUATRO MÓDULOS FISCAIS. IMPOSSIBILIDADE. IMÓVEL QUE NÃO FOI DESMEMBRADO. DOAÇÃO NÃO REGISTRADA NA MATRÍCULA DO BEM. AUSÊNCIA DE ANUÊNCIA DO CREDOR. A HIPOTECA É INDIVISÍVEL. ART. 1.419, DO CÓDIGO CIVIL. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.
Os embargos de declaração foram rejeitados (e-STJ fls. 126/133).
Nas razões do recurso especial (e-STJ fls. 136/150), fundamentado no art. 105, III, “a”, da CF, a parte recorrente alegou violação dos arts. 833, VIII, do CPC/2015, 50, § 3º, da Lei n. 4.504/1964 e 3º, III, e 12, II, da Lei n. 12.651/2014.
Defende, em suma, que o cálculo para aferição da propriedade rurícola como pequena, para fins de impenhorabilidade, deve levar em conta apenas a área aproveitável do imóvel rural, e não sua extensão total, devendo ser descontada a parcela destinada à preservação ambiental.
Sustenta ainda, para efeito de expropriação, a viabilidade do parcelamento do imóvel rural, mediante o resguardo, ao pequeno produtor rural, do mínimo essencial correspondente a 04 (quatro) módulos fiscais.
No agravo (e-STJ fls. 189/197), afirma a presença dos requisitos de admissibilidade do especial.
Contraminuta apresentada (e-STJ fls. 221/225).
É o relatório.
Decido.
Quanto aos critérios para classificar a propriedade rural como pequena, o Tribunal de origem entendeu que, “para fins de aferição do tamanho de qualquer propriedade rural não se leva em conta a área útil e sim sua área total, uma vez que o Código Florestal determina que toda área rural precisa preservar fração da propriedade a título de reserva legal” (e-STJ fl. 99).
Acrescentou que o “desconto que pretende o agravante, previsto no art. 50, § 3º, da Lei 4.504 /1964 [relativo à área não aproveitável do imóvel] […] , só é aplicado para fins fiscais e não para a medição do total da área da propriedade” (e-STJ fl. 99).
Reiterou que, “para fins de aferição de tamanho da propriedade, deve-se levar em conta a área total do imóvel e não a área descontada a reserva legal prevista no Código Florestal” (e-STJ fl. 100).
Por conseguinte, concluiu que (e-STJ fl. 100, destaquei):
No caso em comento, o próprio agravante admite: “Conforme constatado na matrícula de nº. 16, do CRI de Nova Fátima, Paraná, e na Ata Notarial juntada em mov. 189.2 (QUE ORA SE JUNTAM), o dito imóvel, sem os descontos determinados pelo Estatuto da Terra e pelo Código Florestal, possui área de 77,44 hectares, correspondente à 4,41 módulos fiscais” (Grifo nosso).
Portanto, está ausente um dos requisitos necessários, o de ser considerado pequena propriedade rural.
O entendimento consignado no acórdão recorrido destoa do que previsto em lei e da jurisprudência deste Tribunal Superior e do STF.
O art. 833, VIII, do CPC/2015, dispõe ser impenhorável “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família”.
Quanto ao requisito relativo à extensão do imóvel, tem-se adotado o que previsto no art. 4º, II, “a”, da Lei n. 8.629/1993, com redação dada pela Lei n. 13.465/2017, que conceitua como “Pequena Propriedade” o imóvel rural “de área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento” (destaquei).
Nesse sentido, confira-se o entendimento desta Corte acerca da questão:
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PENHORA DE IMÓVEL. PEQUENA PROPRIEDADE RURAL.
ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE. ÔNUS DA PROVA DO EXECUTADO DE QUE O BEM CONSTRITO É TRABALHADO PELA FAMÍLIA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO.
JULGAMENTO: CPC/2015.
[…]
- Para reconhecer a impenhorabilidade, nos termos do art. 833, VIII, do CPC/2015, é imperiosa a satisfação de dois requisitos, a saber: (i) que o imóvel se qualifique como pequena propriedade rural, nos termos da lei, e (iii) que seja explorado pela família.
Até o momento, não há uma lei definindo o que seja pequena propriedade rural para fins de impenhorabilidade. Diante da lacuna legislativa, a jurisprudência tem tomado emprestado o conceito estabelecido na Lei 8.629/1993, a qual regulamenta as normas constitucionais relativas à reforma agrária. Em seu artigo 4ª, II, alínea “a”, atualizado pela Lei 13.465/2017, consta que se enquadra como pequena propriedade rural o imóvel rural “de área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento”.
[…]
(REsp n. 1.913.234/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 8/2/2023, DJe de 7/3/2023 – destaquei.)
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PEQUENA PROPRIEDADE RURAL.
QUATRO MÓDULOS FISCAIS. IMÓVEL. GARANTIA HIPOTECÁRIA.
IMPENHORABILIDADE. MULTA. NÃO CABIMENTO.
[…]
- O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que se enquadra como pequena propriedade rural aquela cuja área tenha entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais. Precedentes.
[…]
(AgInt no REsp n. 1.810.055/SC, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 14/2/2022, DJe de 22/2/2022.)
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ARTIGO 515, § 3º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. JULGAMENTO DO MÉRITO DA CAUSA PELO TRIBUNAL, CASO TENHA SIDO PROPICIADO O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA, COM REGULAR E COMPLETA INSTRUÇÃO DO PROCESSO. POSSIBILIDADE. PENHORA DE 50 % DE IMÓVEL RURAL, CUJA ÁREA TOTAL CORRESPONDE A 8,85 MÓDULOS FISCAIS.
VIABILIDADE.
[…]
- À míngua de expressa disposição legal definindo o que seja pequena propriedade rural, no que tange à impenhorabilidade do bem de família, prevista no artigo 5º, XXVI, da Constituição Federal, é adequado se valer do conceito de “propriedade familiar” extraído do Estatuto da Terra. Precedente do STF.
- O módulo fiscal, por contemplar o conceito de “propriedade familiar” estabelecido pelo Estatuto da Terra como aquele suficiente à absorção de toda a força de trabalho do agricultor e de sua família, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, atende também ao preceito da impenhorabilidade da pequena propriedade rural, previsto no artigo 649, VIII, do Código de Processo Civil. Precedentes do STJ.
- Recurso especial parcialmente provido, apenas para resguardar da penhora a sede de moradia da família.
(REsp n. 1.018.635/ES, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22/11/2011, DJe de 1/2/2012 – destaquei.)
AGRAVO CONHECIDO A propósito, também o STF entende que “a pequena propriedade rural consubstancia-se no imóvel com área entre 01 (um) e 04 (quatro) módulos fiscais” (ARE 1.038.507, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 21-12-2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-049 DIVULG 12-03-2021 PUBLIC 15-03-2021 – destaquei).
Por sua vez, o art. 50, § 3º, da Lei n. 4.504/1964 estabelece que “o número de módulos fiscais de um imóvel rural será obtido dividindo-se sua área aproveitável total pelo modulo fiscal do Município” (destaquei).
O § 4º do mesmo dispositivo legal dispõe, ademais, que “constitui área aproveitável do imóvel rural a que for passível de exploração agrícola, pecuária ou florestal” e que não se considera aproveitável “a área ocupada por floresta ou mata de efetiva preservação permanente”.
Conforme registrado quando do julgamento do REsp n. 1.007.070/RS (relator Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 19/8/2010, DJe de 1/10/2010 – destaquei):
Não obstante a finalidade tributária que, incontroversamente, refoge do tema ora abordado, é certo que a definição do módulo fiscal constante do Estatuto da Terra, além de considerar os fatores específicos da exploração econômica própria da região, imprescindíveis para o bom desenvolvimento da atividade agrícola pelo proprietário do imóvel, utiliza também, em sua mensuração, o conceito de propriedade familiar (módulo rural), como visto, necessário, indiscutivelmente, à caracterização da pequena propriedade rural para efeito de impenhorabilidade.
Vê-se, assim, por definição legal, que um módulo fiscal abrange, de acordo com as condições específicas de cada região, uma porção de terra rural, mínima e suficiente, em que a exploração da atividade agropecuária mostra-se economicamente viável pelo agricultor e sua família, o que, como visto, bem atende ao preceito constitucional afeto à impenhorabilidade.
Previsão similar à contida no art. 50, § 4º, da Lei n. 4.504/1964 se colhe do art. 10, IV, da Lei n. 8.629/1993, segundo o qual se consideram não aproveitáveis “as áreas de efetiva preservação permanente e demais áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente”.
Assim, uma vez que o critério adotado para definição da pequena propriedade rural leva em conta o número de módulos fiscais – no caso, entre 01 (um) e 04 (quatro) – e tendo em vista que o cômputo de módulos fiscais considera a área aproveitável do imóvel – excluídas, portanto, aquelas insuscetíveis à exploração da atividade agropecuária -, merece provimento o recurso especial no ponto em que defende a necessidade de se descontar a parcela destinada à preservação ambiental para efeito de definição da propriedade rurícola como pequena, para fins de impenhorabilidade.
Nesse sentido, e considerando tanto que “não há uma lei definindo o que seja pequena propriedade rural para fins de impenhorabilidade” quanto que, “diante da lacuna legislativa, a jurisprudência tem tomado emprestado o conceito estabelecido na Lei 8.629/1993, a qual regulamenta as normas constitucionais relativas à reforma agrária” (REsp n. 1.913.234/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 8/2/2023, DJe de 7/3/2023), cita-se o seguinte precedente:
ADMINISTRATIVO – DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE SOCIAL PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA – CLASSIFICAÇÃO DA PROPRIEDADE EM PEQUENA, MÉDIA OU GRANDE PROPRIEDADE RURAL – ESTATUTO DA TERRA – MÓDULO FISCAL – INCLUSÃO DE ÁREAS NÃO APROVEITÁVEIS – IMPOSSIBILIDADE – VIOLAÇÃO DO ART. 535 – NÃO OCORRÊNCIA.
- Não houve violação do art. 535 do CPC. A prestação jurisdicional desenvolveu-se inscrita nos ditames processuais, na medida da pretensão deduzida – apenas não houve adoção da tese do recorrente.
- São insuscetíveis de desapropriação, para fins de reforma agrária, a pequena e a média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra (CF, art. 185, e § único do art. 4º da Lei n. 8.629/93).
- Para classificar a propriedade como pequena, média ou grande propriedade rural, o número de módulos fiscais deverá ser obtido dividindo-se a área aproveitável do imóvel pelo módulo fiscal do Município, levando em consideração, para tanto, somente a área aproveitável, e não a área do imóvel. Incidência do Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/64, art. 50, § 3º, com a redação da Lei n. 6.746, de 1979).
Recurso especial improvido.
(REsp n. 1.161.624/GO, relator Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 15/6/2010, DJe de 22/6/2010 – destaquei.)
Necessário, portanto, o retorno dos autos ao Tribunal de origem, para que, à luz do entendimento acima exposto e considerando os elementos fático-probatórios dos autos, reexamine a classificação do imóvel rurícola de que trata o processo como pequena propriedade rural e verifique, observados os demais requisitos exigidos pela legislação, a penhorabilidade do referido bem.
Ficam prejudicadas as demais questões apresentadas no recurso especial.
Ante o exposto, CONHEÇO do agravo e DOU PARCIAL PROVIMENTO ao recurso especial, a fim de determinar o retorno dos autos à origem, nos termos da fundamentação.
Publique-se e intimem-se.
Brasília, 04 de outubro de 2024.
Ministro Antonio Carlos Ferreira
Relator
(AREsp n. 2.480.456, Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe de 22/10/2024.)