A segurança jurídica é um dos pilares basilares do Estado Democrático de Direito, devendo ser preservada por todos os operadores do direito, desde os estudantes, ainda nas bancas acadêmicas, até os mais renomados juristas. É a segurança jurídica o alicerce necessário para o desenvolvimento de um país em todas as suas finalidades. Ocorre que, hodiernamente, a tão almejada segurança jurídica não vem recebendo o merecido respeito pelos nossos tribunais.
A 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) pautou, recentemente, o Recurso Especial nº 1.641.228-CE, no qual se discute se as despesas com os serviços de capatazia (atividade de movimentação de cargas e mercadorias nas instalações portuárias em geral) no valor aduaneiro, base de cálculo do Imposto de Importação e consectários. A questão poderia passar despercebida, não fosse o cenário jurisprudencial que a envolve.
Há tempos, melhor dizendo, desde o julgamento do REsp nº 1.528.204-SC, ocorrido em 2016, a questão restou pacificada em favor do contribuinte. Desde então, os ministros que compõem a 1ª Seção (1ª e 2ª Turmas), do denominado Tribunal da Cidadania, passaram a proferir decisões monocráticas sobre o tema favoráveis aos contribuintes. Destaca-se que mesmo aqueles ministros que possuíam tese contrária, a exemplo dos Ministros Herman Benjamin e Og Fernandes, passaram a adotar o entendimento proferido no precedente em questão.
Quando o entendimento do tribunal passa a ser modificado a cada alteração de turma, a previsibilidade, essencial ao direito, cai por terra
Todavia, de forma inusitada, em maio de 2017, depois de passar a compor a 2ª Turma, o ministro Francisco Falcão pediu vista do processo. No retorno do julgamento, entendeu por bem em apresentar voto desfavorável ao contribuinte, contrariando a jurisprudência então pacificada no tribunal. Após o voto do ministro Falcão, o ministro Herman Benjamin, que já havia apresentado voto favorável à tese dos contribuintes, manifestou-se indicando que mudaria de posição, deixaria de acompanhar a jurisprudência da turma, para então, acompanhar o ministro Falcão, o que, na prática, pode levar a uma alteração drástica na jurisprudência até então solidificada pelo STJ.
Atento à questão, o ministro Mauro Campbell pediu vista dos autos, e, ao fazê-lo, lembrou ao ministro Falcão que a tradição e a segurança jurídica recomendam que o ministro “novo” na turma, siga a jurisprudência, quando não houver fato novo suficiente a revisão da tese.
Observa-se que o ministro Campbell coloca em discussão novamente a possibilidade de modificação da jurisprudência do STJ, que hoje tem sido alterada sem a existência de fatos novos, ao casuísmo da composição da turma ou sessão julgadora. A questão de fato não é nova, tendo ocorrido inclusive em julgamento repetitivo e lança mais uma vez o desafio ao tribunal de manter hígida sua jurisprudência, sobretudo, neste momento, à luz do sistema de precedentes, agora positivado pelo novo Código de Processo Civil.
Não está a se afirmar que a jurisprudência não possa ser revisitada quando existirem fundamentos relevantes para tal, sob pena de inviabilizar o próprio desenvolvimento do direito. No sistema da “common law” – de onde herdamos o nosso sistema de precedentes – é o que se conhece por “overrulling”, quando se revoga totalmente um precedente, ou overriding, quando simplesmente se afasta o precedente.
No entanto, essa modificação depende da existência de fatos relevantes, sejam de ordem social, moral ou até mesmo política, sejam em decorrência do simples fato de que o precedente não guarda mais coerência com outras decisões, não bastando a mera alteração na composição do tribunal, sob pena de prejuízo à previsibilidade e à confiabilidade do direito.
Daí porque o STJ, como o tribunal de precedentes que é, que dita a interpretação da legislação federal a ser adotada pelos demais juízes e jurisdicionados em todo o país, deve atentar-se para a existência desses fatos ao cogitar uma modificação na sua jurisprudência.
Ora, quando o entendimento do tribunal passa a ser modificado a cada alteração de composição de turma julgadora, fica evidente que a previsibilidade, tão essencial ao direito, cai por terra e inicia-se o desmoronamento do sistema de precedentes e do próprio papel institucional daquele tribunal.
No mesmo barco afunda a confiabilidade, haja vista que o jurisdicionado que havia pautado a sua conduta no entendimento já consolidado do tribunal, se vê colocado em uma situação na qual essa mesma conta passa a ser “errada”, o que pode lhe causar imprevisíveis prejuízos.
Com o aprumo e galhardia que lhe é peculiar, o ministro Campbell demonstra que a função do Poder Judiciário é buscar a estabilidade para as relações jurídicas, mantendo a irretroatividade de nova interpretação de lei, bem como a confiança da sociedade nos atos, procedimentos e condutas proferidas pelo Estado. Os jurisdicionados esperam do Judiciário a harmonização das relações, sejam elas entre particulares ou entre o particular e o Estado, pois a constante alteração da jurisprudência pode vir a transforma-las em verdadeiros pandemônios, afastando investimentos em nossa econômica, obstando o desenvolvimento social e corporativo, agravando ainda mais o ambiente de negócios no Brasil.
Por Mirian Lavocat, Saulo Mesquita e Ricardo Messetti
Mirian Lavocat, Saulo Mesquita e Ricardo Magaldi Messetti são sócios da Lavocat Advogados
Fonte : Valor-15/06/2018