PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS – IRDR. SERVIDORES ESTADUAIS. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. NORMA DE EFICÁCIA LIMITADA. OMISSÃO LEGISLATIVA. APLICAÇÃO DE LEI DE SERVIDORES DE UNIVERSIDADE ESTADUAL. ADOÇÃO PELA CORTE DE ORIGEM DO SISTEMA DA CAUSA-MODELO. CONHECIMENTO DO RECURSO ESPECIAL. DISTINGUIGHING EM RELAÇÃO AO RESP 1.798.374/DF, JULGADO PELA CORTE ESPECIAL. ADOÇÃO, PELO CPC, EM REGRA, DA SISTEMÁTICA DA CAUSA-PILOTO. EXIGÊNCIA DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO. ART. 978, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC. APRECIAÇÃO DO IRDR SEM JULGAMENTO CONCOMITANTE DE CAUSA PENDENTE. NÃO CABIMENTO. NULIDADE.
- O acórdão recorrido foi proferido em IRDR instaurado no Tribunal de origem como procedimento-modelo, ou seja, sem que houvesse uma causa-piloto que lhe subsidiasse. Portanto, houve a fixação de tese abstrata sem o julgamento concomitante de um caso concreto.
- Não se desconhece que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp n. 1.798.374/DF, de relatoria do Ministro Mauro Campbell, decidiu que “não cabe recurso especial contra acórdão proferido pelo Tribunal de origem que fixa tese jurídica em abstrato em julgamento do IRDR, por ausência do requisito constitucional de cabimento de ‘causa decidida’, mas apenas naquele que aplica a tese fixada, que resolve a lide, desde que observados os demais requisitos constitucionais do art. 105, III, da Constituição Federal e dos dispositivos do Código de Processo Civil que regem o tema”.
- Na ocasião, todavia, a Corte Especial analisou a admissibilidade de um Recurso Especial da Defensoria Pública do Distrito Federal contra acórdão fundado em pedido de revisão de tese em IRDR, onde, nas palavras do em. Ministro Mauro Campbell Marques, “sequer existe parte contrária e, consequentemente, qualquer espécie de contraditório”.
- O Superior Tribunal de Justiça, então, concluiu que “a tese jurídica fixada em abstrato no julgamento do IRDR, ainda que no âmbito da interpretação de norma infraconstitucional federal, não pode ser considerada como causa decidida sob a ótica constitucional, o que somente ocorreria com a aplicação da referida tese jurídica ao caso selecionado para o julgamento ou na aplicação nas causas em andamento/sobrestadas (caso concreto) que versem sobre o tema repetitivo julgado no referido incidente”.
- Consignou-se, ainda, que o não cabimento do Apelo Especial em tais casos não prejudicaria o acesso da questão federal ao STJ, “pois a tese jurídica será aplicada aos demais casos idênticos e sobrestados que aguardavam a resolução do incidente e tratavam da mesma questão jurídica, o que, ao menos em linha de princípio, viabilizaria a interposição do recurso especial”.
- No entanto, no presente caso, a questão posta em debate no Recurso em exame, não diz respeito à tese abstratamente fixada na origem, mas à aplicação, em concreto, das próprias regras processuais que envolvem o instituto do IRDR.
- O que se discute neste feito (e este é o distinguishing em relação ao que restou decidido no REsp 1.798.374 /DF) é a própria admissibilidade e a observância das regras do due process no Incidente instaurado na Corte de origem.
- Por se tratar de debate acerca da aplicação, em concreto, das regras processuais previstas para a admissão e o julgamento do IRDR, não haverá outra oportunidade para que as alegações da parte recorrente cheguem ao STJ. Publicada a tese, os casos concretos serão solucionados de acordo com ela, sem possibilidade de novo debate acerca da higidez da decisão do IRDR, que já terá transitado em julgado.
- Dito isso, observa-se da leitura dos acórdãos proferidos pelo TJAP que aquela Corte adotou a sistemática da causa-modelo. No entanto, o CPC estabeleceu, como regra, a sistemática da causa-piloto para o julgamento do IRDR, que nada mais é do que um incidente instaurado em um processo já em curso no Tribunal para resolver questões de direito oriundas de demandas de massa.
- A adoção da sistemática da causa-modelo não é de livre escolha do Tribunal. Pelo contrário, o Código de Processo Civil a permite em apenas duas hipóteses: quando houver desistência das partes que tiveram seus processos selecionados como representativos da controvérsia multitudinária, nos termos do art. 976, § 1º, do CPC; e quando se tratar de “pedido de revisão da tese jurídica fixada no IRDR, o qual equivaleria ao pedido de instauração do incidente (art. 986 do CPC), [caso em que] o Órgão Julgador apenas analisa a manutenção das teses jurídicas fixadas em abstrato, sem qualquer vinculação a qualquer caso concreto” (REsp 1.798.374/DF, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Corte Especial, DJe de 21.6.2022). A peculiaridade deste caso é que nenhuma dessas duas hipóteses se fez presente, mas mesmo assim a Corte local decidiu julgar uma causa-modelo.
- No Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, a regra é a participação das partes dos Recursos selecionados como representativos da controvérsia, que constitui núcleo duro do princípio do contraditório, na perspectiva da representatividade adequada. O CPC/2015, sem prejuízo da participação dos amici curiae e MP no incidente, imputou à parte da causa-piloto a condição de representante dos eventuais afetados pela decisão, pois versa sobre juízo em nome de todos e em razão da identidade de interesses, de modo que a Corte a quo tem o dever de garantir que tal representação seja efetivamente exercida de forma adequada.
- Pode-se afirmar que a garantia e a fiscalização, pela Corte, da efetiva participação das partes é ainda mais imperativa no IRDR, se comparado aos processos coletivos que visam tutelar direitos individuais homogêneos. Nestes, a decisão desfavorável ao grupo não prejudica seus membros, em razão da regra da extensão da coisa julgada secundum eventum litis. No IRDR, por outro lado, a decisão desfavorável será a todos aplicada, por constituir precedente qualificado (art. 927, III, CPC). E é regra elementar do due process que aquele que não participou do processo – ainda que por intermédio de representante adequado – não pode ser por ele prejudicado.
- Logo, o Tribunal de origem não pode avocar o julgamento de determinadas questões de direito de forma desvinculada de causa que esteja sob sua apreciação. O relator de uma das causas pendentes de julgamento poderia tomar essa iniciativa, selecionando processos que melhor atendessem à exigência da representatividade adequada para julgá-los como causa-piloto, respeitando o contraditório e a ampla defesa, e permitindo a participação dos atores relevantes do litígio massificado.
- Não se trata de admitir, indistintamente, a participação de todos os particulares que tiveram seus processos suspensos; isso certamente inviabilizaria o julgamento do Incidente. O ordenamento jurídico, todavia, impõe a efetiva participação, no mínimo, daqueles que tiveram seus processos indicados como causas representativas da controvérsia multitudinária, pois são, indiscutivelmente, partes interessadas no Incidente. O IRDR não pode ser interpretado de forma a dar origem a uma espécie de “justiça de cidadãos sem rosto e sem fala”.
- A participação dos autores das ações repetitivas constitui o núcleo duro do princípio do contraditório no julgamento do IRDR. É o mínimo que se deve exigir para garantir a observância ao devido processo legal, sem prejuízo da participação de outros atores relevantes, como o Ministério Público e os amici curiae.
- Aliás, a participação do Parquet não dispensa esse contraditório mínimo, especialmente diante do que dispõe o art. 976, § 2º, do CPC: “o Ministério Público intervirá obrigatoriamente no incidente e deverá assumir sua titularidade em caso de desistência ou de abandono.”
- Ao adotar o sistema da causa-piloto, a tese repetitiva, da qual surtirão os efeitos externos (erga omnes), deve ser apreciada conjuntamente com o caso concreto, do qual surtirão os efeitos internos (inter partes), como se depreende do parágrafo único do art. 978 do CPC: “O órgão colegiado incumbido de julgar o incidente e de fixar a tese jurídica julgará igualmente o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária de onde se originou o incidente”.
- Se as partes autoras dos processos selecionados não os abandonaram ou deles desistiram, sua efetiva participação é imposição do princípio do contraditório e da norma do art. 978, parágrafo único, do CPC.
- Assim sendo, tenho como patente a violação do art. 978, parágrafo único, do CPC, na medida em que foi admitido o IRDR de forma autônoma, sem vinculação a um processo pendente, o que inviabiliza a exigência de julgamento concomitante de recurso, remessa necessária ou processo de competência originária que lhe pudesse dar origem.
- Dá-se provimento ao Recurso Especial interposto pelos Sindicatos recorrentes para declarar nulo o acórdão recorrido e reconhecer a inadmissibilidade do IRDR em razão da ausência dos requisitos legais que autorizam sua instauração, prejudicadas as demais questões veiculadas em ambos os recursos.
(REsp n. 2.023.892/AP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 5/3/2024, DJe de 16/5/2024.)