PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. VIOLAÇÃO DO ART. 1.022 DO CPC. INEXISTÊNCIA. PARCELAMENTO NA MODALIDADE SIMPLIFICADA. LEI 10.522/2002. ESTABELECIMENTO DE VALOR MÁXIMO (“TETO”) POR ATOS INFRALEGAIS. SINGELA MEDIDA DE EFICIÊNCIA NA GESTÃO E ARRECADAÇÃO DO CRÉDITO PÚBLICO. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL. HISTÓRICO DA DEMANDA 1. Discute-se no Recurso Especial se o estabelecimento de valor máximo (“teto”) para formalização e adesão ao parcelamento simplificado, por atos normativos da Receita Federal e/ou Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, ofende o princípio da legalidade.
2. O Tribunal de origem concluiu que a Lei 10.522/2002 não define teto para fins de adesão ao parcelamento simplificado, de modo que a disciplina contida no ato administrativo editado pelos órgãos da Administração Tributária extrapolou a competência meramente regulamentadora.
3. A Fazenda Nacional apresentou Memorial, informando que a Portaria PGFN/RFB 15/2009 foi revogada pela Portaria PGFN/RFB 895/2019, bem como que, na PGFN, atualmente não mais subsiste o parcelamento simplificado (tendo este sido substituído pelo parcelamento com ou sem garantia), enquanto que, na Receita Federal do Brasil, o parcelamento simplificado encontrava-se com limite definido em R$5.000.000,00 (cinco milhões de reais), nos termos da IN RFB 1.891/2019, até ser afastado qualquer limite, pela IN RFB 2.063/2022. Aduz que, não obstante a revogação do ato infralegal que deu origem à presente controvérsia, persiste o interesse no julgamento do feito, por dois motivos: a) os parcelamentos celebrados com base na norma revogada continuam por ela regidos, além de haver processos judiciais suspensos em virtude da definição da tese repetitiva aqui discutida; e b) a questão principal – definição dos limites do poder regulamentar da Administração Tributária – permanece carente de elucidação.
4. De fato, subsiste o interesse e a conveniência na definição da tese repetitiva, pois a controvérsia não diz respeito ao valor do teto (definido pela Portaria PGFN/RFB 15/2009), mas sim se é possível a especificação do teto por ato infralegal. TESE DE VIOLAÇÃO DO ART. 1.022 DO CPC: OMISSÃO INEXISTENTE 5. A solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, não caracteriza ofensa ao art. 1.022 do CPC. JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 6. Os primeiros posicionamentos que surgiram no STJ a respeito da matéria foram pelo não conhecimento do Recurso Especial, atrelados a peculiaridades específicas dos casos concretos (deficiência na fundamentação recursal, ausência de impugnação ao capítulo decisório que abordava o tema sob enfoque constitucional, etc.). Nesse sentido: AgInt no REsp 1.690.254/RS, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe 18.6.2018; REsp 1.667.956/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 12.9.2017.
7. Nas hipóteses em que foi possível ultrapassar o juízo de admissibilidade, ou que indiretamente tangenciaram o mérito, surgiram precedentes pontuais concluindo que a matéria está sujeita ao princípio da legalidade estrita, isto é, que é necessário que a definição do teto para ingresso no parcelamento simplificado seja feita por lei do Congresso Nacional: AgInt no REsp 1.801.790/AL, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, DJe 21.5.2019; REsp 1.739.641/RS, Rel. Ministro Gurgel de Faria, DJe 29.6.2018. NATUREZA JURÍDICA DO PARCELAMENTO SIMPLIFICADO 8. Segundo o art. 155-A do CTN, o parcelamento será concedido na forma e condição estabelecidas em lei específica.
9. Por se tratar (o parcelamento) de liberalidade submetida à conveniência do Fisco, cabe à lei em sentido estrito definir, essencialmente, o respectivo prazo de duração, os tributos aos quais ela se aplica e o número de prestações e periodicidade de seu vencimento.
10. A Lei 10.522/2002 versa sobre o denominado “parcelamento ordinário” (ou comum) de débitos com o Fisco, abrangendo generalizadamente os contribuintes que possuam pendências com a Administração Tributária Federal. No mesmo diploma normativo, consta a criação, em caráter igualmente geral, do “parcelamento simplificado” de débitos.
11. A origem remota do parcelamento simplificado, na forma estipulada na Lei 10.522/2002, consiste na Medida Provisória 1621-30, de 12.12.1997 – renovação de ato normativo de idêntica natureza, e que foi posteriormente reeditada, até ser convertida na lei federal acima referida -, que dispunha em seu art. 11, § 6º (redação idêntica à original do art. 11, § 6º, da Lei 10.522/2002):
“Atendendo ao princípio da economicidade, observados os termos, os limites e as condições estabelecidos em ato do Ministro de Estado da Fazenda, poderá ser concedido, de ofício, parcelamento simplificado, importando o pagamento da primeira parcela confissão irretratável da dívida e adesão ao sistema de parcelamentos de que trata esta Medida Provisória”.
12. Tal dispositivo, como se infere, limitou-se a instituir o parcelamento simplificado, delegando ao Ministro de Estado da Fazenda ampla atribuição normativa, ao prever que a ele competia estabelecer os respectivos termos, limites e as condições.
13. A premissa que se depreende da norma acima é de que o “parcelamento simplificado” não representa, na essência, modalidade substancialmente distinta do parcelamento ordinário. Não se trata do estabelecimento de um programa específico, com natureza ou características diversas, em relação ao parcelamento comum, mas exatamente o mesmo parcelamento, cuja instrumentalização/operacionalização é feita de modo menos trabalhoso, ou, para usar a terminologia empregada na sua denominação literal, de modo mais “simples” (diretamente pelo contribuinte, on-line, sem a apresentação de garantias).
14. Em momento algum a Lei 10.522/2002 (com as modificações introduzidas pela legislação federal superveniente) alterou as características essenciais do parcelamento comum ou simplificado, relativas aos débitos, prazo de duração, etc.. A nota distintiva entre o parcelamento ordinário e o simplificado reside exclusivamente na circunstância de que este último, para ser formalizado, dispensa a prévia apresentação de garantia. Representa, portanto, mera técnica que, em observância ao princípio da eficiência, introduz mecanismo destinado a garantir maior qualidade na gestão e arrecadação do crédito público.
15. Nos termos acima, merece destaque a constatação de que o estabelecimento dos limites e condições para o parcelamento simplificado jamais constituiu matéria reservada à disciplina por lei em sentido estrito. Pelo contrário, a Lei 10.522/2002 expressamente fixava competência para o Ministro da Fazenda, por ato infralegal, definir critérios para diferenciar se o débito poderia ser parcelado no regime simplificado ou no comum.
16. A judicialização do tema ocorreu porque a referida norma (art. 11, § 6º, da Lei 10.522/2002) foi revogada pelo art. 35 da Lei 11.941/2009, que deu nova redação e/ou acrescentou vários dispositivos à Lei 10.522/2002. No que interessa, o parcelamento simplificado passou a ser disciplinado no art. 14-C da Lei 10.522/2002: “Art. 14-C. Poderá ser concedido, de ofício ou a pedido, parcelamento simplificado, importando o pagamento da primeira prestação em confissão de dívida e instrumento hábil e suficiente para a exigência do crédito tributário”.
17. De acordo com o novo dispositivo legal acima, foi preservada a existência do parcelamento simplificado, consistindo a única novidade na supressão, na redação da norma, da referência expressa de que ato infralegal do Ministro de Estado da Fazenda estabeleceria os termos, limites e condições para a concessão do parcelamento simplificado.
18. A utilização adequada dos métodos de hermenêutica conduz, salvo melhor juízo, ao entendimento de que a supressão da norma que previa incumbir ao Ministro de Estado da Fazenda estabelecer, por ato infralegal, os limites de valor para adesão ao parcelamento simplificado, não é suficiente para justificar a conclusão de que o legislador ordinário tomou para si tal atribuição. Isso porque se revela indispensável aplicar corretamente o princípio da legalidade no âmbito do Direito Tributário.
19. De acordo com o art. 96 do CTN, a “expressão ‘legislação tributária’ compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes”. Dito de outro modo, os tributos e relações jurídicas a eles pertinentes são disciplinados por uma vasta gama de diplomas normativos, tais como: a) as leis; b) os tratos e as convenções internacionais; c) os decretos e d) as normas complementares.
20. Tem-se, assim, a “legislação tributária” como gênero, composta pelas respectivas espécies normativas.
21. Nem tudo que verse sobre tributos – e, notadamente, sobre relações jurídicas atinentes aos tributos – deve ser disciplinado exclusivamente por lei em sentido estrito.
22. Com efeito, o art. 97 do CTN estipula as hipóteses que devem ser obrigatoriamente regidas pela lei em seu sentido estrito, formal (lei emitida pelo Poder Legislativo, segundo procedimento solene a ser observado).
23. Consoante já demonstrado, já no regime anterior (o da redação original da Lei 10.252/2002), a matéria em tela nunca foi disciplinada por lei em sentido estrito, sendo incabível, portanto, concluir que o tema está sujeito ao princípio da reserva legal.
24. É de se notar, ademais, que a conclusão pela impossibilidade de estabelecimento de limite máximo para a concessão do parcelamento simplificado, por ato infralegal, enseja conclusão aberrante. Com efeito, se a lei prevê a existência do parcelamento comum e do simplificado, não se justifica a exegese cujo resultado, ao retirar do administrador a competência para especificar os débitos cujo parcelamento pode ser formalizado de modo singelo, implica a inexistência de parcelamentos diferenciados, pois haveria apenas o parcelamento simplificado, excluindo-se a hipótese para a concessão do parcelamento ordinário. Constata-se, assim, que tal exegese impediria a Administração Tributária de exigir a apresentação de garantia real ou fidejussória – expressamente autorizada por lei (art. 11, § 1º, da Lei 10.522/2002) para os débitos inscritos na dívida ativa da União -, comprometendo grave e injustificadamente a aplicação do princípio da eficiência na instituição de medidas assecuratórias da melhor qualidade na recuperação do crédito público.
25. In casu, inexiste violação ao princípio da legalidade pois, como se conclui, o estabelecimento do valor máximo (teto) para identificação do regime de parcelamento (simplificado ou ordinário) não foi feito com a intenção de restringir direitos (conforme demonstrado à exaustão, os parcelamentos ordinário ou simplificado são idênticos entre si, de modo que a impossibilidade de adesão ao parcelamento simplificado em nada interfere com o acesso ao mesmo parcelamento na modalidade ordinária). A única diferenciação entre ambos consiste na simplificação do meio de adesão, matéria que diz respeito à administração e gestão do crédito tributário, plenamente passível de disciplina por normas complementares de Direito Tributário.
26. É possível afirmar, aliás, que a compreensão de que o estabelecimento de teto para fins de parcelamento simplificado sujeita-se ao princípio da reserva legal é que seria desarrazoada, pois representaria intromissão do legislador em atividade própria da Administração Tributária. Como se intui, a autoridade que administra o crédito possui, naturalmente, contato direto com a realidade cotidiana que envolve o estabelecimento dos critérios e meios de obter, com maior eficácia, a recuperação do crédito público.
27. Por último, atente-se para o fato de que não se está a construir o entendimento de que o tema não poderia ser regido por lei em sentido estrito. O fato de se esclarecer que determinado tema é passível de ser regulamentado por atos infralegais não leva à conclusão de que a lei em sentido estrito não poderia fazê-lo.
Assim, embora a disciplina do teto, no específico contexto acima descrito, possa ser feita diretamente por atos infralegais, nada impediria (embora isso não fosse recomendável, pelas razões acima descritas) o legislador de se antecipar à autoridade fiscal e definir algum teto – somente nesse contexto, evidentemente, é que haveria ilegalidade se os órgãos integrantes da Administração Tributária, por exemplo, fixassem um teto menor. TESE REPETITIVA 28. De acordo com o acima exposto, estabelece-se a seguinte tese: “o estabelecimento de teto para adesão ao parcelamento simplificado, por constituir medida de gestão e eficiência na arrecadação e recuperação do crédito público, pode ser feito por ato infralegal, nos termos do art. 96 do CTN. Excetua-se a hipótese em que a lei em sentido estrito definir diretamente o valor máximo e a autoridade administrativa, na regulamentação da norma, fixar quantia inferior à estabelecida na lei, em prejuízo do contribuinte”. HIPÓTESE DOS AUTOS 29. Consoante explicitado, no caso concreto o legislador não tomou para si a incumbência de definir o teto para fins de adesão ao parcelamento simplificado, justamente por entender que a questão atinente à eficiência na gestão da arrecadação tributária é melhor equacionada por meio da atuação da autoridade administrativa.
30. Recurso Especial parcialmente provido.
(REsp n. 1.679.536/RN, relator Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, julgado em 20/6/2024, DJe de 1/7/2024.)