Em 15/3/2017, o Plenário do Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento do RE 574.706/PR e fixou a tese de que “o ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da COFINS”, sob o fundamento de que tais valores não compõem a definição de faturamento para aquela finalidade por não se incorporarem ao patrimônio do contribuinte.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional opôs embargos de declaração em que requereu a integração do acórdão para sanar obscuridade quanto ao critério de cálculo da parcela do ICMS passível de ser excluída das bases de cálculo do PIS e da Cofins (ICMS “a pagar” x ICMS “destacado”) e a modulação dos efeitos do decisum para que este somente produza efeitos gerais a partir da data do julgamento de seus declaratórios, em função do suposto impacto econômico do julgado.
No último dia 4, a Procuradoria-Geral da República opinou (i) pela inexistência de omissão, contradição ou obscuridade a serem sanadas no acórdão proferido pelo STF relativamente ao critério de aferição do ICMS a ser excluído da base de cálculo das contribuições e (ii) pela atribuição de eficácia prospectiva — ex nunc — ao acórdão.
Em nosso entendimento, a PGR acerta ao aduzir que não há omissão no acórdão quanto ao critério de cálculo da parcela de ICMS. Contudo, parece-nos equivocada a manifestação do parquet quanto à admissibilidade do pedido de modulação de efeitos. Vejamos:
Quanto à primeira questão, de fato os votos condutores da tese vencedora esclareceram que a parcela a ser retirada das bases de cálculo do PIS e da Cofins corresponde ao “ICMS destacado” nas notas fiscais:
“Desse quadro é possível extrair que, conquanto nem todo o montante do ICMS seja imediatamente recolhido pelo contribuinte posicionado no meio da cadeia (distribuidor e comerciante), ou seja, parte do valor do ICMS destacado na “fatura” é aproveitado pelo contribuinte para compensar com o montante do ICMS gerado na operação anterior, em algum momento, ainda que não exatamente no mesmo, ele será recolhido e não constitui receita do contribuinte, logo ainda que, contabilmente, seja escriturado, não guarda relação com a definição constitucional de faturamento para fins de apuração da base de cálculo das contribuições” (voto da ministra Cármen Lúcia, fl. 23/24).
“Por conseguinte, o desate da presente controvérsia cinge-se ao enquadramento do valor do ICMS, destacado na nota, devido e recolhido, como receita da sociedade empresária contribuinte. (…)Logo, embora não haja incremento patrimonial, o valor relativo ao ICMS destacado e recolhido referente a uma operação concreta integrará a receita efetiva do contribuinte, pois gerará oscilação patrimonial positiva, independentemente da motivação do surgimento da obrigação tributária ou da destinação final desse numerário ao Estado em termos parcial ou integral, após devida compensação não automática na qual se considera a técnica da não cumulatividade, como, por exemplo, pela metodologia de conta gráfica, por sua vez expressamente referida no libelo da demanda veiculado no mandado de segurança impetrado pela parte Recorrente” (voto do ministro Luiz Edson Fachin – fls. 37/39).
Se houve a análise do tema, não há omissão a ser sanada. Na verdade, o entendimento restritivo defendido pela PGFN em seus aclaratórios, no sentido de que a quantia a ser expurgada das bases de cálculo do PIS e da Cofins corresponderia ao “ICMS a pagar”[1], é claramente contrário ao que foi definido pelo STF. Nesse sentido, aliás, têm decidido os tribunais[2] com sólido apoio da doutrina[3], motivo pelo qual — nesse ponto — deve prevalecer a opinião da PGR de que “o Plenário do Supremo Tribunal Federal debateu amplamente a questão trazida no recurso extraordinário, inclusive rediscutindo argumentos e reafirmando fundamentos presentes em julgamentos anteriores, de forma que ausente omissão, obscuridade ou contradição que justifique a reabertura da discussão” (p. 7 do Parecer).
Por outro lado, é incabível a modulação de efeitos da decisão do STF na hipótese examinada.
Nos termos dos artigos 27 da Lei 9.868/99[4] e 927, parágrafo 3º, do CPC/2015[5], a modulação de efeitos deve ocorrer para atendimento do interesse social e da segurança jurídica, especialmente em caso de alteração jurisprudencial. Seu desiderato é evitar alterações abruptas de entendimento que venham a causar insegurança jurídica. Logo, a atribuição de efeitos prospectivos não se aplica a julgados que apenas seguem a orientação jurisprudencial já assentada acerca de determinado tema.
Ora, desde 2006, o STF possui maioria de votos formada em Plenário quanto à inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins[6], o que afasta o cabimento da modulação de efeitos por alteração jurisprudencial.
Não se desconhece que, durante algum tempo, a jurisprudência do STJ consolidou-se em sentido desfavorável aos contribuintes, isto é, pela legalidade da inclusão do imposto estadual na base de cálculo das aludidas contribuições, conforme estabelecido na Súmula 68 daquele tribunal[7]. No entanto, em função do disposto no artigo 105, III, ‘a’ e ‘c’, da Constituição, o tema fora decidido pelo STJ exclusivamente à luz das normas infraconstitucionais[8].
Porém, em 8/9/1999, no bojo do RE 240.785/MG, o Plenário do STF reconheceu o caráter constitucional da discussão e iniciou o julgamento do tema à luz do artigo 195, I, b, da Carta Maior.
Apesar de o julgamento só ter sido concluído em 8/10/2014, desde 2006 havia maioria de votos no Plenário pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da Cofins.
Disso decorre que a primeira manifestação de mérito do Plenário da suprema corte foi pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, fundamento constitucional autônomo distinto do debate anteriormente travado pelo STJ meramente à luz das normas infraconstitucionais.
Alinhado aos primados de estabilidade e coerência dos precedentes(artigo 926 do CPC/15), em 15/3/2017, o STF prestigiou a sua jurisprudência e, sob a sistemática e efeitos da repercussão geral, reiterou o entendimento de que o “ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da COFINS”, desta vez em precedente imbuído de eficácia persuasiva (RE 574.706/PR, relatora ministra Cármen Lúcia, Plenário, DJ 2/10/2017).
Seguindo o disposto no artigo 1.026 do CPC/15[9], a jurisprudência dos cinco TRFs e do STJ seguiu imediatamente a posição do STF, no sentido da exclusão do ICMS da base de cálculos das referidas contribuições[10].
O histórico acima demonstra que a segurança jurídica impossibilita a modulação de efeitos. Afinal, não houve alteração, e sim a reiteração da jurisprudência do STF. Além disso, todo o Judiciário já vinha seguindo a orientação jurisprudencial da suprema corte, cuja maioria estava formada desde 2006 pela inconstitucionalidade da cobrança. Por isso, inúmeros títulos exequendos transitaram em julgado e se encontram agora em fase de cumprimento de sentença ou habilitação administrativa.
Portanto, longe de preservar a segurança jurídica, a modulação ex nunc dos efeitos do acórdão proferido no RE 574.706/PR apenas atrairia mais incertezas. Primeiro, porque ignoraria que a jurisprudência então firmada em sede de repercussão geral apenas acompanhou e reiterou o pronunciamento anterior do próprio Plenário do STF. Segundo, porque possibilitaria que a Fazenda Nacional lançasse mão de instrumentos processuais (ações rescisórias ou impugnações à execução[11]) para limitar indevidamente o âmbito de eficácia dos títulos judiciais. Ainda que tais ações fossem manifestamente improcedentes — por contrariar a coisa julgada material formada em cada caso — não há dúvida de que tais oposições, no mínimo, retardariam o desfecho dos processos, causando tumulto processual e congestionamento do Judiciário.
Também inexistem razões de excepcional interesse social a justificar a pretendida modulação de efeitos.
A alegação de eventual impacto aos cofres públicos, por si, não é suficiente à realização da modulação, conforme o próprio STF já decidiu em algumas oportunidades[12]. Admitir a prospecção de efeitos em hipótese na qual não estão atendidos os requisitos da segurança jurídica e do excepcional interesse social significa premiar o agir inconstitucional do Estado, intensificando o risco moral (moral hazard)[13]. Em outras palavras, incentiva o Estado a instituir e majorar tributos de forma inconstitucional para fazer frente à necessidade de arrecadação. Isso porque, ainda que tais exações venham a ser declaradas inconstitucionais pelo STF, o Estado se furtará do dever de restituí-los à pretexto de evitar “rombos no orçamento”. O argumento é claramente ad terrorem.
De resto, há mais de uma década a União Federal tem contingenciado o risco fiscal de uma derrota. Isso pode ser verificado diretamente nas Leis de Diretrizes Orçamentárias[14], que classificaram o risco como possível (e não remoto) e estimaram o potencial numérico da perda. Não há surpresa para a administração.
Em conclusão, a segurança jurídica e o interesse social indicam o não cabimento da modulação de efeitos no caso. Nada obstante, ainda que se admita (por mera hipótese) eventual eficácia prospectiva da decisão do STF, esta deverá respeitar standards de razoabilidade e segurança jurídica, impondo-se, no mínimo, o respeito às ações judiciais e defesas administrativas apresentadas pelos contribuintes até a data da conclusão do julgamento da pretendida modulação.
[1] Entendimento esse manifestado também pela Receita na SCI Cosit 13/2018.
[2] AC Nº 5003099-73.2017.4.04.7201/SC, Rel. Andrei Pitten Veloso, TRF-4, DJ 30/10/2018; AC Nº 0002093-15.2017.4.03.6112, Rel. André Nabarrete, TRF-3, DJ 25/10/2018.
[3] ANDRADE, André Martins. ICMS x PIS/COFINS – por que os ED da PGFN devem ser sumariamente rejeitados pelo STF no RE nº 574.706. R. Fórum de Dir. Tributário – RFDT | Belo Horizonte, ano 16, n. 91, p. 171-191, jan/fev 2018; PINHEIRO, Bianca Delgado e RODRIGUES, Tales de Almeida. Controvérsias na exclusão do ICMS do PIS e Cofins. ConJur, 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-nov-21/opiniao-controversias-exclusao-icms-pis-cofins>. Acesso em: 13 jun. 2019; ANDRADE, André Martins. Uma análise sobre a gênese da Solução de Consulta Interna Cosit 13. ConJur, 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-nov-27/andre-andrade-analise-genese-sci-cosit-13>. Acesso em: 13 jun. 2019. PISCITELLI, Tathiane. Argumentos financeiros e modulação de efeitos. Valor Econômico, 2019. Disponível em: https://www.valor.com.br/legislacao/fio-da-meada/6295705/argumentos-financeiros-e-modulacao-de-efeitos Acesso em: 13 jun. 2019.
[4] Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
[5] Art. 927. § 3º. Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
[6] Andamento processual do RE 240.785: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1736915 – Acesso em 14/6/2019.
[7] Súmula 191/TFR: “É compatível a exigência da contribuição para o PIS com o imposto único sobre combustíveis e lubrificantes”.
Súmula 258/TFR: “Inclui-se na base de cálculo do PIS a parcela relativa ao ICM”.
Súmula 68/STJ: “A parcela relativa ao ICM inclui-se na base de cálculo do PIS”.
Súmula 94/STJ: “A parcela relativa ao ICMS inclui-se na base de cálculo do FINSOCIAL”.
[8] Arts. 3º, § 2º, III, da Lei 9.718/98 e 111 do CTN.
[9] Art. 1.026. Os embargos de declaração não possuem efeito suspensivo e interrompem o prazo para a interposição de recurso.
[10] TRF 1, AC 0019246-74.2015.4.01.3400, DES. FEDERAL JOSÉ AMILCAR, TRF1 – 7T, DJ 10/05/2019; TRF2, APC 0000330-53.2008.4.02.5002, DES. THEOPHILO FILHOAPELANTE, 3T, DJ 15/05/2019; TRF3, 6T, APC 5000484-15.2017.4.03.6110, DES. DIVA MALERBI, DJ 03/06/2019; TRF4, 5010750-80.2017.4.04.7000, VICE-PRESIDÊNCIA, DES. MARIA DE FÁTIMA LABARRÈRE, DJ 05/06/2019; TRF5, 08057921020184058401, DES. ROGÉRIO MOREIRA, 3T, DJ 20/05/2019; STJ REsp 1308287/BA, MIN. GURGEL DE FARIA, 1T, DJ 08/08/2018; AgInt no RE nos EDcl no AgInt no REsp 1355713/SC, MIN. HUMBERTO MARTINS, CE, DJ 29/06/2018; REsp 1536647/MG, MIN. HERMAN BENJAMIN, 2T, DJ 09/08/2018; STF RE 209314 ED, MIN. ROBERTO BARROSO, 1T, DJ 17-09-2018.
[11] Art. 966, §5º e art. 535 e §§ 5º e 6º do CP/15.
[12] v.g. RE 559937, Relator Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, DJ 14-10-2014; RE 596177, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, DJ 18-11-2013.
[13] “‘O risco moral’, tema da teoria econômica, ocorre sempre que incentivos não se alinham entre os agentes, fazendo com que indivíduos tendam a comportar-se de forma indevida, principalmente quando não arcam com o custo de suas escolhas” (CARVALHO, Cristiano. ROSA, Octavio Giacobbo da. A modulação de efeitos nas decisões de inconstitucionalidade tributária e o “risco moral”. Revista dos Tribunais. Vol. 980/2017, p. 69 – 78. Jun. 2017).
[14] Ao menos desde 2007 eVide fl. 222 do Anexo V da Lei n° 11.514/2007 (LDO 2008). Disponível em: https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/leis-orcamentarias/ldo/2008/tramitacao/redacao-final/lei%2011.514-anexos.pdf.
Por Daniel Corrêa Szelbracikowski e Gabriela Gonçalves Barbosa
Daniel Corrêa Szelbracikowski é sócio da Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e especialista em Direito Tributário.
Gabriela Gonçalves Barbosa é advogada na Advocacia Dias de Souza e especializanda em Direito Tributário e Finanças Públicas pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Revista Consultor Jurídico, 14 de junho de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-jun-14/opiniao-stf-nao-modular-decisao-exclusao-icms
O infeliz parecer da PGR para modular a decisão sobre ICMS na base de PIS/Cofins
No último dia 4, a Procuradoria-Geral da República protocolou manifestação a respeito dos embargos de declaração opostos pela União no Recurso Extraordinário 574.706/PR. No recurso, o Fisco tenta reverter a decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins ou, quando menos, que haja uma modulação dos efeitos da sua decisão, fazendo com que ela valha apenas para o futuro, inibindo, assim, a devolução dos valores recolhidos indevidamente pelos contribuintes.
Em seu parecer, a PGR, apesar de dizer não ver motivos para a mudança da decisão do STF no mérito, manifesta-se de modo favorável à modulação de efeitos da decisão, para que ela somente produza resultado após o julgamento dos embargos de declaração protocolados pela União, o que ainda não tem sequer data para acontecer.
Segundo a PGR, o impacto e a abrangência da decisão do STF motivariam a modulação de efeitos. Em seu entendimento, a decisão do tribunal “rompe com entendimento jurisprudencial histórico e tem potencial de influenciar outras exações, além de promover significativa alteração no sistema jurídico tributário”, e “pode acarretar o pagamento de restituições que implicarão vultosos dispêndios pelo Poder Público”.
Vê-se, portanto, que a manifestação da PGR reverbera os argumentos apresentados pela União em seus embargos de declaração.
Primeiramente, é necessário destacar que a manifestação apresentada pela PGR não vincula de nenhuma forma os ministros do STF, podendo ou não ser acatada. A opinião da PGR deverá ser avaliada pelo tribunal em conjunto com a manifestação das partes, levando em conta a convicção de cada ministro e a jurisprudência da corte.
É interessante notar, a esse respeito, que, em que pese a PGR ter se manifestado neste mesmo processo de modo contrário à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, o seu entendimento não foi o que prevaleceu no julgamento da tese. Trata-se, portanto, convém reiterar, de uma opinião a respeito da matéria em julgamento, cuja probabilidade de prevalecer nos parece bastante remota.
Isso porque, ao contrário do que pregou a PGR, não estão preenchidos os requisitos para que seja feita a modulação de efeitos.
Segundo as normas que regem o procedimento de modulação de efeitos de uma decisão proferida pelo STF, bem como a jurisprudência já sedimentada pelo tribunal a respeito do assunto, a modulação de efeitos apenas poderia ser realizada (i) para preservar a segurança jurídica, (ii) em casos onde houve mudança de jurisprudência do STF e (iii) para resguardar o interesse social.
Entendemos, com o devido respeito à manifestação da PGR, que a modulação de efeitos da decisão do STF, além de não observar esses requisitos, com eles colidiria de modo frontal!
Depois de os contribuintes terem se sujeitado por décadas a uma cobrança inconstitucional, conforme já reconhecido pelo Plenário da corte há mais de dois anos, entender que a decisão do STF que declara essa inconstitucionalidade só deve produzir efeitos para o futuro representaria um desrespeito inaceitável a todos os direitos e garantias dos contribuintes estabelecidos na Constituição Federal. Além disso, abriria perigosíssimo precedente para a cobrança inconstitucional de tributos, que poderá ser posteriormente perdoada pelo Poder Judiciário caso a devolução do que foi pago indevidamente possa representar um desequilíbrio momentâneo nas contas do governo.
À toda evidência, não há como se preservar a segurança jurídica acobertando-se uma inconstitucionalidade que perdura há décadas, especialmente considerando que o STF já havia sinalizado o seu posicionamento desde 2006, quando já se havia formado no tribunal maioria para declarar como indevida a cobrança do PIS e da Cofins sobre o ICMS. Desde 2006, nada foi feito pelo governo federal para estancar esse passivo. Entendemos, assim, que agora, quase 13 anos depois de o STF sinalizar pela primeira vez o seu entendimento sobre o tema, é completamente despropositado e desproporcional falar-se em segurança jurídica para preservar o caixa da União.
Mas não é só. Também não há, quanto ao tema da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, mudança de jurisprudência do STF para que seja possível cogitar a aplicação do instituto da modulação de efeitos. A primeira oportunidade que o STF teve de se manifestar sobre a questão foi em 2006, quando, como dito, já se formou maioria para o reconhecimento da inconstitucionalidade da cobrança. Depois disso, esse entendimento se confirmou em 2014 e, novamente, em 2017.
Reforçando a relevância desse fundamento, vale destacar que recentemente, no início de maio, através do julgamento do Recurso Extraordinário 635.688, o STF reiterou o seu entendimento quanto à necessidade de haver mudança de jurisprudência da corte para que seja possível uma modulação de efeitos; o que, como já se demonstrou, não ocorreu no caso da não incidência de PIS e Cofins sobre o valor do ICMS.
Quanto ao argumento da PGR de que a devolução dos valores pagos indevidamente pelos contribuintes implicará em “vultosos dispêndios pelo Poder Público”, que deveriam ser evitados em um cenário de “notória crise econômica por que passa o país”, cabe trazer o outro lado dessa mesma moeda. Contribuintes foram, por décadas, inclusive no meio de profundas crises econômicas, obrigados a recolher aos cofres públicos vultosas quantias, que representaram, muitas vezes, na redução da capacidade de investimento, no fechamento de postos de trabalho e, por que não dizer, na impossibilidade até mesmo da sobrevivência de muitas empresas. E tudo isso, reforça-se, em meio a crises talvez mais profundas do que a atual.
Com o respeito sempre devido à PGR, que possui entre as suas elevadas incumbências constitucionais a defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais, a leitura da manifestação levada ao STF não permite compreender que interesses o órgão busca assegurar. Para, supostamente, preservar o interesse público, propõe-se que sejam desconsideradas regras e princípios básicos da defesa do contribuinte. E não apenas dele, mas de todo e qualquer cidadão, pois a modulação de efeitos representaria, neste caso, um atentado sem precedentes a alguns dos mais básicos direitos garantidos pela Constituição: o direito à propriedade, à segurança jurídica, e à defesa dos direitos do cidadão pelo Poder Judiciário.
Outro fator de incompreensão na manifestação da PGR é o seu protocolo apenas agora, mais de dois anos após o julgamento pelo STF, e mais de um ano e meio após a oposição dos embargos de declaração pela União. O pesado efeito econômico da decisão do STF, apontado pela PGR, não surgiu apenas agora. Se a questão apontada é tão relevante, a ponto de sugerir uma modulação de efeitos de um modo e em proporções jamais adotadas pelo STF, por qual motivo tal preocupação não havia sido manifestada antes? Vale lembrar que a PGR teve voz ativa durante todo o trâmite do processo no STF e jamais havia se manifestado quanto à necessidade de modulação de efeitos do julgamento da corte.
A solução apoiada pela PGR tem consequências devastadoras para a ordem constitucional brasileira, afinal de contas, que lição pedagógica se está passando aos Poderes Executivo e Legislativo? Que resposta está sendo dada àqueles que durante décadas viram ser retirada uma parte expressiva de seu patrimônio para atender a uma demanda tributária manifestamente inconstitucional? Como esperar que os contribuintes continuem confiando no Poder Judiciário da maneira como um Estado Democrático de Direito requer?
O recado que estará sendo dado — caso se realize a modulação de efeitos conforme pretende a União e agora, de modo surpreendente, apoia a PGR — é que, fazendo uma analogia, o “crime compensa”! Que vale a pena exigir um tributo de forma contrária à Constituição, pois em algum momento, mesmo que depois de décadas, o Poder Judiciário poderá reconhecer aquela cobrança como inconstitucional, mas, ainda assim, perdoar o Fisco, sob uma justificativa exclusivamente calcada num aspecto econômico circunstancial.
Trata-se de mais uma inaceitável tentativa de retirar dos contribuintes o seu direito, protegido pela Constituição, à devolução dos valores recolhidos de forma inconstitucional durante décadas, além de aceitar o absurdo enriquecimento ilícito da União caso se confirme o entendimento defendido pela PGR.
Por fim, caso o STF decida fazer algum “recorte” temporal na sua decisão, entendemos que o tribunal deveria ao menos resguardar o direito daqueles contribuintes que já estavam questionando a matéria em juízo ao tempo em que o STF proferiu a sua decisão pela inconstitucionalidade da cobrança, como já fez em outros julgamentos. Somente assim se estará, de alguma forma, preservando o direito daqueles que conservadoramente se socorreram do Poder Judiciário para a proteção do seu direito, e de modo legítimo nele confiaram.
De um estudo das manifestações do STF em casos tributários em que a modulação de efeitos foi cogitada, percebe-se que a modulação proposta pela União e defendida pela PGR não encontra precedentes em casos semelhantes ao em questão.
Resta aos contribuintes manter de modo inabalável a sua confiança no Supremo Tribunal Federal, pois a esta corte cabe a última palavra quanto à defesa da Constituição. Tal missão exige que seja afastada com veemência essa tentativa ilegítima de supressão de direitos dos contribuintes, de modo que todos possamos continuar contando com o Poder Judiciário para a garantia de uma ordem tributária que respeite as regras constitucionais e a lei.
Por Flávio Augusto Dumont Prado e Danilo Fernandes Monteiro
Flávio Augusto Dumont Prado é sócio do Gaia Silva Gaede Advogados.
Danilo Fernandes Monteiro é advogado do Gaia Silva Gaede Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 13 de junho de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-jun-13/opiniao-infeliz-parecer-pgr-modular-decisao-icms