Rcl 64608 / DF – DISTRITO FEDERAL
RECLAMAÇÃO
Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES
Julgamento: 21/02/2024
Publicação: 26/02/2024
Publicação
PROCESSO ELETRÔNICO
DJe-s/n DIVULG 23/02/2024 PUBLIC 26/02/2024
Partes
RECLTE.(S) : ALESSON PADUA TAVARES E OUTRO(A/S)
ADV.(A/S) : RENATO VIEIRA DE AVILA
RECLDO.(A/S) : SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL
ADV.(A/S) : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS
BENEF.(A/S) : NÃO INDICADO
RECLTE.(S) : SIGMA CREDIT SECURITIZADORA S.A.
Decisão
Decisão
Trata-se de Reclamação ajuizada por Alesson Padua Tavares e Outra contra decisão administrativa proferida pela Secretaria da Receita Federal, nos autos do Processo 16327.721201/2021-34, o qual teria violado o entendimento firmado por esta CORTE nos autos da ADPF 324; das ADCs 48 e 66; das ADI’s 3991 e 5625; bem como o Tema 725-RG, RE 958.252, Rel. Min. LUIZ FUX.
Na inicial, as partes reclamantes expõem as seguintes alegações de fato e de direito (eDoc. 1):
“Trata-se de Reclamação Constitucional ajuizada com supedâneo no art. 102, inciso I, alínea “L”, da Constituição Federal e no art. 988, incisos II, III e IV, do Código de Processo Civil, com o objetivo de impugnar acórdão prolatado pela 19ª TURMA/DRJ08, nos autos da número: 16327.721201/2021-34, visto que contrariam decisões proferidas por esta Suprema Corte em sede de Controle Concentrado de Constitucionalidade (ADPF 324, ADC 48, ADI’S 3991 e 5625) e em Recurso Extraordinário com Repercussão Geral reconhecida (RE 958.252).
Pendente de julgamento Recuso Voluntário opostos contra o Acórdão que rejeitou a preliminar de nulidade suscitada pela defesa, confirmar a responsabilidade solidária identificada no lançamento e, no mérito, julgar PROCEDENTE EM PARTE A IMPUGNAÇÃO, com a redução do valor da multa de ofício qualificada, conforme relatório e voto.
[…]
Da primeira leitura do Acórdão em combate, o relator pontua o escopo da relação processual, tendo em conta a existência de auto de infração lavrado em face de pessoa física.
A respeito do lançamento de ofício efetivado pela autoridade fazendária, faz menção ao Termo de Verificação Fiscal – TVF utilizando-o como base para apresentar síntese deste contencioso.
Pela análise do voto condutor, depreende-se que a autoridade julgadora concluiu que o lançamento de ofício efetivado pelo auditor fiscal apurou omissão de rendimentos, pelo fato de o autuado supostamente utilizar-se de artifício para pagar remunerações a seus dirigentes, por meio de contratos simulados de prestação de serviço por pessoas jurídicas interpostas.
Também foi constatada a prática de pagamentos de remuneração a acionistas aos quais pretendeu desnaturar a roupagem de distribuição de lucros, imputando-os, também, como rendimento de dirigente.
Os meios pelos quais o contribuinte teria perpetrado a omissão de rendimentos teriam sido:
- Pejotização – Utilização de interposta pessoa jurídica para auferir os rendimentos de atividade típica de dirigente;
- Remuneração disfarçada de distribuição de lucro (Acessório que está diretamente ligado ao principal – PEJOTIZAÇÃO).
[…]
Interpuseram Recurso Voluntário, os reclamantes, sustentando a violação a dispositivos de Lei Federal e da Constituição, amparado em precedentes vinculantes desta Suprema Corte (RE 958.252 e ADPF 324), que ainda não foi julgado pelo E. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.
[…]
Em sede de controle concentrado de constitucionalidade, mais especificamente no julgamento da ADPF 324 e no RE 958.252, apregoados conjuntamente, cuja relatoria coube, respectivamente, aos Ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux, o Supremo Tribunal Federal confirmou a licitude da terceirização de atividade-fim, face a ausência de lei que a vedasse ou a reputasse ilícita, corolário, pois, do princípio da legalidade em que se assenta o Estado Democrático de Direito (art. 5º, II, CF).
[…]
O entendimento está em consonância com o que foi decidido por esta Corte no julgamento da ADC 66/DF, cuja relatoria coube à Min. Cármen Lúcia, que não divisou vício de constitucionalidade ao art. 1291 da Lei 11.196/2005, que permite a prestação de serviços intelectuais por meio de pessoa jurídica, ainda que se dê em caráter personalíssimo e com atribuição de obrigações aos sócios da sociedade prestadora, justamente porque a Constituição assegurou a liberdade de organização da atividade econômica empresarial (livre iniciativa), como se vê do seguinte trecho desta importante decisão:
[…]
Já no julgamento da ADC 48 e da ADI 3.961, esta Corte, por maioria, reconheceu a constitucionalidade da Lei n° 11.442/2007 e firmou a seguinte tese: ‘1 – A Lei nº 11.442/2007 é constitucional, uma vez que a Constituição não veda a terceirização, de atividade-meio ou fim. 2 – O prazo prescricional estabelecido no art. 18 da Lei nº 11.442/2007 é válido porque não se trata de créditos resultantes de relação de trabalho, mas de relação comercial, não incidindo na hipótese o art. 7º, XXIX, CF. 3 – Uma vez preenchidos os requisitos dispostos na Lei no 11.442/2007, estará configurada a relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo trabalhista’.
Por fim, no julgamento da ADI 5625, que julgou improcedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade do art. 1º-A da Lei 12.592/2012 – com redação dada pela Lei 13.352/2016 -, exsurge do voto do Min. Alexandre de Morais que:
[…]
Desses precedentes vinculantes do STF, infere-se que o mercado comporta que alguns trabalhadores sejam contratados pelo regime celetista e outros, dotados de pouco mais de autonomia, prestem serviços sem o manto do vínculo de emprego, não sendo mais admissível privilegiar a relação de emprego em detrimento de outras formas de organização do trabalho, livremente pactuadas entre as partes, como aqui.”
Ao final, requerem “seja julgado procedente o pedido para cassar as decisões impugnadas, na parte em que afastaram o regime tributário favorecido das pessoas jurídicas, por suposta existência de vínculo empregatício entre a parte o reclamante e a pessoa física indicada nos autos de infração”.
É o relatório. Decido.
A respeito do cabimento da Reclamação para o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, a Constituição da República dispõe o seguinte:
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:
[…]
- l) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões;”
“Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
[…]
- 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.”
Veja-se também o art. 988, I, II e III, do Código de Processo Civil:
“Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:
I – preservar a competência do tribunal;
II – garantir a autoridade das decisões do tribunal;
III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade.”
A presente Reclamação deve ser julgada procedente.
Inicialmente, registro que não desconheço o entendimento firmado por esta CORTE no sentido de que a verificação dos pressupostos que autorizam o manejo da Reclamação deve ser realizada com o maior rigor técnico. Nesse sentido, a Min. ELLEN GRACIE já alertava que “a via estreita da reclamação (Constituição, art. 102, I, l) pressupõe a ocorrência de usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal, a desobediência a súmula vinculante ou o descumprimento de decisão desta Corte proferida no exercício de controle abstrato de constitucionalidade ou em controle difuso, desde que neste último caso cuide-se da mesma relação jurídica em apreço na reclamação e das mesmas partes. Logo, seu objeto é e só pode ser a verificação de uma dessas estritas hipóteses, razão pela qual considero necessário o máximo rigor na verificação dos pressupostos específicos da reclamação constitucional, sob pena de seu desvirtuamento” (Rcl 6.735 AgR/SP, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, DJe de 10/08/2010)
E foi com base nessas premissas que a jurisprudência majoritária do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL passou a exigir, como requisito intrínseco para o cabimento da Reclamação, a estrita aderência entre o ato reclamado e o paradigma invocado (Rcl 4.674 AgR/RN, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe de 07/08/2017; Rcl 23.851 AgR/MG, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe de 17/11/2016; Rcl 22.500 AgR/RJ, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe de 06/05/2016; Rcl 4.487 AgR/PR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, DJe de 05/12/2011), não sendo possível a utilização da via reclamatória como substituto de recursos de natureza ordinária ou extraordinária (Rcl 6.880 AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, DJe de 22/02/2013) ou contra os chamados “atos em tese”, assim considerados aqueles como as leis ou os seus equivalentes constitucionais que dispõem sobre situações gerais e impessoais, que têm alcance genérico e que disciplinam hipóteses neles abstratamente previstas (Rcl 25.347 AgR/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJe de 10/05/2017).
Todavia, destaco que é preciso levar em consideração o efeito dos atos administrativos proferidos pelas autoridades fiscais e do alcance específico das ações de controle concentrado em relação aos contratos de prestação de serviços. Assim, embora a decisão administrativa proferida pela autoridade fiscal não detenha a atribuição para definir o vínculo existente entre a pessoa jurídica prestadora de serviços e a tomadora de serviços, é competente para impor débito tributário, mediante confirmação do auto de infração.
Dessa forma, a despeito de ser o ato reclamado uma decisão administrativa, a situação trazida nos presentes autos caracterizada circunstância excepcional a permitir a apreciação de sua contrariedade às decisões desta CORTE em controle de constitucionalidade.
Aliás, esta CORTE já admitiu, no Plenário, a reinterpretação de paradigma firmado em controle de constitucionalidade abstrato em sede reclamatória, consoante se depreende da fundamentação do voto do Relator, Min. GILMAR MENDES, na Rcl 4.374/PE, DJe de 04/09/2013:
“3. Reclamação como instrumento de (re)interpretação da decisão proferida em controle de constitucionalidade abstrato. Preliminarmente, arguido o prejuízo da reclamação, em virtude do prévio julgamento dos recursos extraordinários 580.963 e 567.985, o Tribunal, por maioria de votos, conheceu da reclamação. O STF, no exercício da competência geral de fiscalizar a compatibilidade formal e material de qualquer ato normativo com a Constituição, pode declarar a inconstitucionalidade, incidentalmente, de normas tidas como fundamento da decisão ou do ato que é impugnado na reclamação. Isso decorre da própria competência atribuída ao STF para exercer o denominado controle difuso da constitucionalidade das leis e dos atos normativos. A oportunidade de reapreciação das decisões tomadas em sede de controle abstrato de normas tende a surgir com mais naturalidade e de forma mais recorrente no âmbito das reclamações. É no juízo hermenêutico típico da reclamação – no “balançar de olhos” entre objeto e parâmetro da reclamação – que surgirá com maior nitidez a oportunidade para evolução interpretativa no controle de constitucionalidade. Com base na alegação de afronta a determinada decisão do STF, o Tribunal poderá reapreciar e redefinir o conteúdo e o alcance de sua própria decisão. E, inclusive, poderá ir além, superando total ou parcialmente a decisão-parâmetro da reclamação, se entender que, em virtude de evolução hermenêutica, tal decisão não se coaduna mais com a interpretação atual da Constituição.” (grifos nossos).
Assim, superada a questão acerca do cabimento da reclamação, passo ao exame da controvérsia exposta nos autos.
Os parâmetros invocados são os definidos no julgamento da ADPF 324, Rel. Min. ROBERTO BARROSO; e no Tema 725-RG, RE 958.252, Rel. Min. LUIZ FUX; bem como nas ADCs 48 e 66 e nas ADI’s 3991 e 5625.
A decisão administrativa proferida pela autoridade fiscal considerou que, por meio de conluio, teria sido firmado contrato simulado de prestação de serviços entre a empresa Reclamante e a empresa ALESSON PAULA TAVARES ME, “a fim de remunerá-lo como pessoa física, com ganhos recíprocos, isto é, sonegação de tributos por ambas as partes – a SIGMA, que deixou de pagar a contribuição patronal previdenciária sobre remuneração paga a segurado contribuinte individual (…) e os encargos trabalhistas incidentes sobre os salários; e o contribuinte, que sonegou IRPF sobre os valores a ele pagos, por meio de sua empresa ALESSON PAULA TAVARES ME, pela simulada prestação de serviços –, a autoridade fiscal entendeu estar caracterizado o interesse comum na situação que constitui o fato gerador da obrigação principal por parte da empresa SIGMA e do interessado” (eDoc. 16, fl. 5).
No ponto de interesse, transcrevo trechos do acórdão proferido pela Delegacia de Julgamento da Receita Federal do Brasil:
“O lançamento apura omissão de rendimentos do trabalho sem vínculo empregatício recebidos de pessoas jurídicas, em face de a fiscalização ter constatado que a pessoa jurídica Sigma Credit Securitizadora S.A. (SIGMA), CNPJ 23.360. 870/0001-77, objeto do procedimento fiscal TDPF nº 08.1.66.00-2019-00049-2, teria se valido do expediente de pagar remunerações a seus dirigentes, dentre eles o interessado, por meio de contratos simulados de prestação de serviços por pessoas jurídicas interpostas. Também foi constatada a prática de pagamentos de remunerações aos diretores/ acionistas aos quais pretendeu atribuir a pretensa roupagem de distribuição de lucros.
Segundo o TVF, o interessado teria sido um dos dirigentes a se beneficiar do recebimento de pagamentos por meio da pessoa jurídica interposta ALESSON PAULA TAVARES ME (APT). De acordo com a autoridade lançadora, a SIGMA teria utilizado a estratégia de contratar empregados e dirigentes não empregados, por intermédio da interposição de pessoas jurídicas criadas e dirigidas pelos próprios contratados, que eram usadas com fim específico de prestação de serviços à SIGMA. Esse procedimento, ainda segundo a autoridade fiscal, teria tido como objetivo burlar não somente a legislação tributária que rege as contribuições previdenciárias e o imposto de renda da pessoa física (IRPF), como também a legislação trabalhista, em prática denominado pela doutrina como ‘pejotização’.
[…]
VOTO
[…]
No mérito, conforme detalhado no relatório, o contencioso gira em torno da omissão de rendimentos imputada ao sujeito passivo no lançamento, correspondente aos valores pagos pela SIGMA à empresa ALESSON PAULA TAVARES ME, do qual o interessado era sócio, a título de remuneração pelos serviços prestados pela pessoa jurídica.
A fiscalização concluiu que a ALESSON PAULA TAVARES ME teria sido utilizada como interposta pessoa a fim de dissimular aquela que seria a verdadeira natureza dos pagamentos efetuados à pessoa jurídica: remuneração ao interessado, como pessoa física, pelos serviços prestados na qualidade de dirigente da SIGMA.
[…]
Analisando os elementos de prova dos autos e as informações e esclarecimentos apresentados pela autoridade fiscal e pela defesa, concluo que a impugnação é improcedente. Tem razão a defesa quando sustenta a tese de que a terceirização de serviços pelas pessoas jurídicas é opção admitida pelo ordenamento jurídico nacional e, portanto, legalmente viável. Não obstante, não é o que se vê no presente caso. Inicialmente, ressalto a seguinte afirmação constante da peça de impugnação (fl. 719 – g.n.):
O planejamento tributário engendrado pelas partes é lícito e legítimo, vez que utilizou de formas societárias previstas em lei, além de basear-se em objeto lícito, qual seja, o pagamento de dividendos e o pagamento de prestadora de serviços.
Ou seja, tudo não passou de um planejamento tributário no qual as partes adotaram forma e objeto lícito (terceirização de serviços pela empresa contratante). Até aí, nenhum problema haveria. Contudo, uma eventual regularidade dos aspectos formais da operação não é suficiente para descaracterizar a verdadeira natureza de tal arranjo.
Assim que as próprias pessoas que ocupavam cargos de direção e gestão na SIGMA constituíram empresas que seriam contratadas pela companhia para supostamente prestarem serviços relacionados às rotinas operacionais da contratante SIGMA, consistindo em atividades administrativas de menor complexidade, ou ‘atividades burocráticas e rotineiras’, nas palavras da defesa, como segue:
[…]
A defesa insiste em que seria necessário fazer distinção entre o trabalho da pessoa física como ocupante do cargo de direção e o serviço prestado pela pessoa jurídica. Em tese, essas duas coisas de fato não se confundem. Ocorre que, na prática, no caso concreto, ambas as atividades seriam prestadas pessoalmente pelo próprio sujeito passivo, porquanto, como já se registrou, a APT sequer possuía empregados.
Ademais, embora a terceirização de processos pelas pessoas jurídicas seja lícita e as empresas tenham liberdade de organizar os seus negócios como melhor lhes convier, conforme o julgamento de seus dirigentes, como frisou a defesa, no caso da SIGMA jamais houve lógica econômica, administrativa ou de qualquer outra natureza no arranjo engendrado por aquela companhia e seus dirigentes.
Ora, usualmente, os detentores dos cargos de direção são aqueles que recebem os maiores salários em qualquer empresa. Tarefas meramente administrativas, burocráticas, repetitivas ou de menor complexidade podem facilmente ser desempenhadas por trabalhadores com muito menos qualificação, como os auxiliares administrativos, que normalmente recebem salário fixo correspondente a uma pequena fração da remuneração de um diretor, sem adicional por produtividade, como supostamente ocorria com a remuneração da APT.
[…]
Vale destacar que todos os contratos assinados pela SIGMA com as empresas constituídas por seus dirigentes tinham cláusula prevendo que os serviços contratados poderiam ser prestados dentro ou fora da sede da contratante. Daí decorre que, embora a defesa postule a necessidade de distinção entre as atividades da pessoa física como diretor e os serviços prestados por meio da pessoa jurídica, na prática não é possível fazer essa distinção, seja do ponto de vista pessoal, temporal ou espacial. Explico. Ambas as atividades eram supostamente realizadas pelas mesmas pessoas, que constavam da folha de pagamento da SIGMA, podendo ser desenvolvidas no mesmo local e ao mesmo tempo, isto é, na sede da contratante durante o horário de expediente.
[…]
Ocorre que, quando analisado no seu todo, o conjunto probatório evidencia que a SIGMA, por intermédio e com a concorrência de seus dirigentes, efetuou a remuneração dos seus gestores mediante a interposição fraudulenta de pessoas jurídicas por eles mesmos criadas, simulando a prestação de serviços para a realização de tarefas de menor complexidade, que poderiam ser realizadas por simples auxiliares de administração, pagando por isso valores muito superiores à própria remuneração desses dirigentes. […]
Note-se que a simulação é ‘uma declaração enganosa da verdade, visando a produzir efeito diverso do ostensivamente indicado’ (Clóvis Beviláqua). Ocorre simulação quando as partes manifestam uma vontade contrária daquela real, com intuito de aparentar um negócio jurídico que não corresponde com aquele que realmente almejam. Assim, o negócio jurídico simulado não corresponde à intenção das partes.
[…]
A tese central da defesa de que as atividades exercidas pelos diretores da SIGMA não se confundiria com os serviços prestados pelas pessoas jurídicas por eles criadas para prestarem serviços àquela companhia tenta trazer a discussão para a regularidade dos aspectos formais da operação (e.g. terceirização de serviços, constituição das pessoas jurídicas prestadoras de serviços, contratos celebrados, as notas fiscais emitidas pelas prestadoras, o pró-labore recebido da SIGMA etc.), quando o corpo de provas aponta para o fato de que todo esse arranjo não passou de uma grande simulação, a fim de que a SIGMA remunerasse seus gerentes, dirigentes e diretores por meio de pessoas jurídicas por eles constituídas, o que trazia benefício para todas as partes. Contudo, na simulação, as partes laboram, justamente, para manifestar um negócio jurídico que não corresponde com aquele que é o verdadeiro, que era o desejado desde o início. O caso objeto destes autos é de planejamento tributário abusivo.
Rejeito também outros argumentos apresentados pela defesa para tentar afastar a infração imputada, como, por exemplo, que SIGMA apuraria o lucro presumido e não teria tido benefício no arranjo engendrado pelas partes.
O interessado se valeu do artifício da pejotização para reduzir o valor do imposto devido, na medida em que parte da sua remuneração da SIGMA foi recebida formalmente na forma de lucros isentos na pessoa jurídica interposta, e a tributação na pessoa jurídica é menor do que na pessoa física. A SIGMA, por outro lado, abateu indevidamente os encargos tributários, previdenciários e trabalhistas incidentes sobre a folha de pagamento. A alegação não procede.
Por comprovada a infração, deverá ser mantido o lançamento.” (eDoc. 16, fls. 3, 16-22)
Como se vê, a decisão recorrida considerou ilícito o contrato de prestação de serviços firmado entre os Reclamantes. Ao fazê-lo, não observou o entendimento da CORTE quanto à constitucionalidade das relações de trabalho diversas da de emprego regida pela CLT, conforme decidido na ADPF 324, bem como o Tema 725 da Repercussão Geral.
No julgamento do Tema 725 da Repercussão Geral – RE 958.252 (Rel. Min. LUIZ FUX), reconheceu-se a possibilidade de organização da divisão do trabalho não só pela terceirização, mas de outras formas desenvolvidos por agentes econômicos. A tese, ampla, tem a seguinte redação: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.
No julgamento da ADPF 324 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO), assentou-se a constitucionalidade da terceirização de atividade-fim ou meio, com a fixação da seguinte TESE: “1. É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2. Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993”.
Conforme ressaltei em meu voto na ADPF 324,
“[a] Constituição Federal não veda ou restringe expressa ou implicitamente a possibilidade de terceirização, enquanto possibilidade de modelo organizacional, como bem destacado pelos votos dos Ministros relatores ROBERTO BARROSO e LUIZ FUX, cujos fundamentos adoto, sem, contudo, repeti-los, por celeridade processual e razoável duração do voto.
Vou, porém, mais além ao afirmar que a Constituição Federal tampouco impõe qual ou quais as formas de organização empresarial devam ou possam ser adotadas, pois assegurou a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
No sistema de produção capitalista, consagrado constitucionalmente, a escolha do modelo organizacional das empresas compete ao empreendedor, não podendo ser imposta pelo Estado.
O texto constitucional não permite, ao poder estatal – executivo, legislativo ou judiciário – impor um único e taxativo modelo organizacional para as empresas, sob pena de ferimento aos princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência.”
A interpretação conjunta dos precedentes permite o reconhecimento da licitude de outras formas de relação de trabalho que não a relação de emprego regida pela CLT, como na própria terceirização ou em casos específicos, como a previsão da natureza civil da relação decorrente de contratos firmados nos termos da Lei 11.442/2007 (ADC 48 e ADI 3.961), ou a previsão da natureza civil para contratos de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, nos termos da Lei 13.352/2016 (ADI 5.625, red. para o Acórdão Min. NUNES MARQUES). Destaco a tese da ADI 5.625:
“1) É constitucional a celebração de contrato civil de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, nos termos da Lei n. 13.352, de 27 de outubro de 2016; 2) É nulo o contrato civil de parceria referido, quando utilizado para dissimular relação de emprego de fato existente, a ser reconhecida sempre que se fizerem presentes seus elementos caracterizadores.”
Assim, a conclusão adotada pela decisão reclamada acabou por contrariar os resultados produzidos no RE 958.252 (Rel. Min. LUIZ FUX) e na ADPF 324 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO), a sugerir, consequentemente, o restabelecimento da autoridade desta CORTE quanto ao ponto.
Além disso, verifica-se que um dos paradigmas de confronto suscitados é o decidido por esta CORTE no julgamento da ADC 66 (Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJe de 19/03/2021), na qual reconhecida a constitucionalidade do art. 129 da Lei 11.196/2005, segundo o qual “para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil”. Reproduzo a ementa do acórdão paradigma:
“AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. REGIME JURÍDICO FISCAL E PREVIDENCIÁRIO APLICÁVEL A PESSOAS JURÍDICAS PRESTADORAS DE SERVIÇOS INTELECTUAIS, INCLUINDO OS DE NATUREZA CIENTÍFICA, ARTÍSTICA E CULTURAL. COMPATIBILIDADE CONSTITUCIONAL. LIVRE INICIATIVA E VALORIZAÇÃO DO TRABALHO. LIBERDADE ECONÔMICA NA DEFINIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO EMPRESARIAL. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE.
- A comprovação da existência de controvérsia judicial prevista no art. 14 da Lei n. 9.868/1999 demanda o cotejo de decisões judiciais antagônicas sobre a validade constitucional na norma legal. Precedentes.
- É constitucional a norma inscrita no art. 129 da Lei n. 11.196/2005.”
A ADC 66 foi ajuizada exatamente diante da “incerteza gerada por prestadores de serviços intelectuais e para os tomadores desses serviços sobre eventual desconsideração de sua relação jurídica pela Administração Pública ou pelo Poder Judiciário que, a pretexto de coibir fraudes e simulação em favor da primazia da realidade, possa a eles impor regramento previdenciário e fiscal mais gravoso que aquele destinado às pessoas jurídicas ou, ainda, reconhecer a formação de vínculo empregatício entre a pessoa física do prestador e a tomadora dos serviços”.
Nesse contexto, esta CORTE, ressalvando que o art. 129 da Lei 11.196/2005 se restringe aos efeitos fiscais e previdenciários decorrentes da prestação de serviços intelectuais, artísticos e culturais, assentou que o dispositivo questionado “harmoniza-se com as diretrizes constitucionais, especialmente com o inc. IV do art. 1º da Constituição da República, pelo qual estabeleceu a liberdade de iniciativa situando-a como fundamento da República Federativa do Brasil.”
De fato, o dispositivo legal apreciado na ADC 66 está em consonância com o entendimento da CORTE quanto à constitucionalidade das relações de trabalho diversas da de emprego regida pela CLT, nos termos já assentados na ADPF 324, na ADC 48, na ADI 3.961, na ADI 5.625, bem como o Tema 725 da Repercussão Geral.
Conforme tenho me manifestado, deve prevalecer o entendimento reiterado desta CORTE no tocante à possibilidade de organização da divisão do trabalho não só pela terceirização, mas de outras formas desenvolvidos por agentes econômicos, como no caso objeto do acórdão administrativo da autoridade fiscal aqui analisado.
Na hipótese concreta, tem-se a mesma lógica para se autorizar a constituição de vínculos distintos da relação de emprego, a legitimar a escolha pela organização das atividades da empresa reclamante por meio da contratação de pessoas jurídicas prestadores de serviços, sem vínculo empregatício, não cabendo à autoridade fiscal se imiscuir nessa análise, para confirmar os autos de infração fiscal.
O acórdão reclamado, portanto, ao considerar a existência de vínculo empregatício entre os Reclamantes, ainda que para finalidades fiscais e previdenciárias, desconsidera as conclusões do Supremo Tribunal Federal não só no julgamento da ADC 66, como também na ADPF 324, da ADC 48, da ADI 3.961, da ADI 5.625, bem como o Tema 725 da Repercussão Geral.
Diante do exposto, com base no art. 161, parágrafo único, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, JULGO PROCEDENTE o pedido de forma que seja cassado o acórdão impugnado, proferido pela Delegacia de Julgamento da Receita Federal do Brasil, para, desde logo, JULGAR PROCEDENTE a impugnação apreciada nos autos do Processo 16327.721202/2021-89.
Deixo de condenar em honorários sucumbenciais, pois a jurisprudência desta CORTE é no sentido de somente ser cabível o arbitramento de honorários de sucumbência na via reclamatória em caso de angularização da relação processual e exercício do contraditório prévio à decisão final. Nessa linha: Rcl 31296-ED, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, DJe 25/9/2019; e Rcl 24.417-AgR, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe 24/4/2017.
Por fim, nos termos do art. 52, parágrafo único, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, dispenso a remessa dos autos à Procuradoria-Geral da República.
Publique-se.
Brasília, 21 de fevereiro de 2024.
Ministro Alexandre de Moraes
Relator