Em meio a calorosas discussões na disciplina “Direito Societário Avançado”, na Graduação da FGV Direito Rio, futuros tributaristas e societaristas encontram dilema capaz de unir estas áreas do direito corporativo, qual seja: Em que medida é desejável que haja interferências tributárias no Direito Societário?
Antes que o leitor critique a amplitude da discussão, apresentamos o recorte temático que nos levou a essa análise: trata-se de reflexão sobre a obrigatoriedade de inscrição das Sociedades em Conta de Participação (“SCPs”) no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (“CNPJ”).
Nesse sentido, a partir da conceituação das SCPs, este artigo busca demonstrar que a interferência tributária no direito societário pode levar à imposição de obrigações juridicamente incongruentes, capazes de desnaturar o tipo societário sob análise.
De plano, esclareça-se que as SCPs são reguladas pelos art. 991 a 996 do Código Civil de 2002 (“CC”). Nas SCPs, o sócio ostensivo exerce a atividade empresarial, sem qualquer firma social ou nome empresarial, sendo que o sócio participante não assume riscos, direitos e/ou obrigações perante terceiros.
Ainda que as SCPs apresentem diversos traços especiais em relação às demais sociedades tipificadas no Direito Brasileiro, a característica que, neste artigo, merece particular atenção é a falta de personalidade jurídica das SCPs, conforme o caput do art. 993 do Código Civil. A SCP não possui relevância no plano externo da sociedade, produzindo efeito, em regra, tão somente entre as partes contratantes (i.e., sócio ostensivo e sócio participante).
Apesar de a SCP ser tratada como sociedade perante o Código Civil, no Brasil e no mundo as principais características desta entidade despersonificada a aproximam mais de contrato, do que propriamente sociedade. A este respeito, nos termos dos arts. 45, 985 e 1.150 do Código Civil, a SCP está dispensada de registrar e/ou arquivar atos constitutivos no registro competente.
Sendo assim, não há maneira lógica ou juridicamente correta de se conceber a SCP como Pessoa Jurídica.
O Decreto-Lei 2.303/86 e sua incongruência com o Direito Societário
Não obstante a impossibilidade de se conceber a SCP como pessoa jurídica, desde a edição do Decreto-Lei nº 2.303/86, as SCPs vem sendo equiparadas às pessoas jurídicas para fins tributários, ainda que tenham sido concebidas como entes notadamente despersonificados pelo CC/02. Essa consideração trouxe por consequência a instituição de alguns principais atos normativos da Receita Federal, que foram as Instruções Normativas nºs 1.470/14, 1.634/16, 1.700/17 e 1.863/18, as quais cuidaram de equiparar as SCPs às demais pessoas jurídicas para fins tributários.
Em consequência ao tratamento tributário atribuído às SCPs, passou-se a considerar que tais sociedades possuem capacidade passiva tributária[1]. Além disso, se a Sociedade não estiver cadastrada no CNPJ, a Receita Federal poderá determinar sua inscrição de ofício, muito embora a este respeito não exista previsão de penalidades severas em caso de não inscrição. Porém, se houver fiscalização sobre a SCP ou sobre rendimentos dos sócios e a sociedade não estiver inscrita no CNPJ, isso poderá dar ensejo à desqualificação das distribuições feitas aos sócios como lucros isentos, de modo que poderiam ser tributados como rendimentos.
A este respeito, a inscrição da SCP no CNPJ tem como finalidade possibilitar a segregação das contas da SCP na contabilidade do sócio ostensivo, inclusive para fins de fiscalização, o que atua como espécie de separação patrimonial entre o que é do sócio ostensivo e o que é da SCP. Sobre este ponto, a Solução de Consulta COSIT nº 202/19 confirma que tributos incidentes nas operações próprias do sócio ostensivo devem ser apurados separadamente dos devidos pela SCP.
Ora, ao fixar existir separação patrimonial entre o que é do sócio ostensivo e o que é da SCP, tal disposição distorce este instituto societário, descaracterizando uma de suas características mais marcantes: a ausência de personalidade jurídica. Isso porque referida separação patrimonial assinala uma distinção que, no fundo, inexiste, haja vista que é o sócio ostensivo quem arca, na prática, com o ônus tributário da atividade econômica exercida.
Vale ressaltar que a Instrução Normativa RFB nº 1.700/17, em seu art. 6º, fixa ser dever do sócio ostensivo a apuração dos resultados pelo recolhimento do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Assim, dizer existir separação patrimonial na SCP traduz-se em verdadeira confusão sobre o real funcionamento do tipo societário em nota.
Atualmente, de acordo com o cenário que vige em nosso sistema, em face da equiparação das SCPs às pessoas jurídicas, o efeito colateral é a sua sujeição ao IRPJ, à CSLL, ao PIS e à COFINS. Sem a aludida equiparação às demais pessoas jurídicas, tal problemática inexistiria, e nem sequer poder-se-ia distinguir o que é apurado pelo sócio ostensivo e o que o é pela SCP.
Portanto, sendo o sócio ostensivo quem assume a responsabilidade de suportar os ônus tributários, inexiste distinção patrimonial entre o que é do sócio ostensivo e o que é da SCP. Justamente em face desses pontos é que a equiparação das SCPs a pessoas jurídicas não encontra fundamento jurídico sustentável diante da previsão de que as SCPs são entes despersonificados.
Problema posto: quais são as possíveis lições?
Diante de tudo o que já foi abordado, é possível perceber que a legislação brasileira ainda não encontrou um modelo ideal para a tributação das SCPs, levando-se em consideração sua característica sui generis.
Como essas sociedades não possuem personalidade jurídica, parece não fazer sentido que sua tributação ocorra em decorrência da inscrição no CNPJ, que se destina justamente a realizar o cadastro e mapeamento das entidades dotadas de personalidade jurídica. Nesse sentido, acreditamos que o país poderia se inspirar nos modelos adotados por países ao redor do mundo, visando a criação de seu próprio modelo de tributação que faça sentido com as peculiaridades das referidas sociedades.
No direito português, por exemplo, as SCPs são denominadas associações em participação[2], não recebendo a denominação de “sociedade” justamente por se tratar de um contrato em que há associação de duas ou mais pessoas ligadas a uma atividade econômica exercida por um sócio (ostensivo), que se obriga a prestar contribuição de natureza patrimonial[3].
As SCPs portuguesas estão disciplinadas nos arts. 21 a 31 do Decreto-Lei português n. 231/81 e não gozam de caráter societário ou constituem ente jurídico, ou seja, não são personificadas. Nada obstante, os rendimentos auferidos pelos sócios possuem natureza econômica semelhante a dos lucros no sistema português.
Quer dizer, os rendimentos tanto do sócio ostensivo, quanto do sócio oculto são tributados por meio da declaração de Imposto de Renda de cada um dos sócios participantes da SCP. No caso do sócio ostensivo, seus rendimentos estão sujeitos à tributação por meio do IRS (Imposto sobre Rendimento das Pessoas Singulares, o equivalente ao Imposto de Renda brasileiro). É importante ressaltar que os valores desembolsados pelo sócio ostensivo em decorrência de perdas não podem ser deduzidos de seu rendimento.
Quanto ao regime de tributação do sócio oculto, nas hipóteses de pessoa física, seus rendimentos “líquidos” – após o pagamento do sócio ostensivo – também são tributados por meio do IRS, cabendo a ele a retenção na fonte do tributo. Já nos casos de pessoa jurídica, os rendimentos são sujeitos à IRC (Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas), e o art. 20.3 do Código do IRC determina que “não concorre para a formação do lucro tributável do associado, na associação à quota, o rendimento auferido da sua participação social correspondente ao valor da prestação por si devida ao associado”.
Assim, conforme anteriormente assinalado, tomando-se como pressuposto o fato de que as SCPs são decerto um contrato e, por força do Código Civil, um ente despersonificado, acredita-se que sua equiparação aos demais tipos societários desnatura o aludido instituto.
Longe de se propor a solucionar de forma definitiva o problema, o que se sugere no presente artigo não é a simples importação e transmutação de institutos estrangeiros ao ordenamento jurídico brasileiro.
De modo diametralmente oposto, a intenção é a de fomentar o debate jurídico, para que o legislador pátrio, compreendendo o problema posto, e inspirado nas soluções de direito comparado, possa formular uma solução jurídica que não desnature o instituto da SCP.
FONTE: Jota – Por João Pedro Barroso do Nascimento – 06-11-2019
Link: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/sociedade-em-conta-de-participacao-06112019