A recém-editada Medida Provisória n. 806, de 30.10.2017, introduziu alterações sensíveis na sistemática de tributação dos fundos de investimento, que podem provocar um claro desestímulo a estruturas específicas de inversão de capital, bem como inquietantes debates a respeito da constitucionalidade de determinadas disposições.
Este breve texto pretende abordar especificamente o art. 2º da Medida Provisória n. 806, que prevê a incidência de imposto de renda sobre a valorização acumulada das cotas dos fundos de investimento constituídos sob a forma de condomínio fechado em 31.05.2018, alcançando valores acumulados na carteira do fundo do investimento no período anterior à entrada em vigor do novo diploma normativo. Veja-se:
“Art. 2º. Para fins de incidência do Imposto sobre a Renda na fonte, consideram-se pagos ou creditados aos cotistas dos fundos de investimento ou dos fundos de investimento em cotas, quando constituídos sob a forma de condomínio fechado, os rendimentos correspondentes à diferença positiva entre o valor patrimonial da cota em 31 de maio de 2018, incluídos os rendimentos apropriados a cada cotista, e o respectivo custo de aquisição, ajustado pelas amortizações ocorridas.
§ 1º. Para fins do disposto no caput, consideram-se fundos de investimento constituídos sob a forma de condomínio fechado aqueles que não admitem resgate de cotas durante o prazo de sua duração.
§ 2º. Os rendimentos de que trata o caput serão considerados pagos ou creditados em 31 de maio de 2018 e tributados pelo Imposto sobre a Renda na fonte, às alíquotas estabelecidas no art. 1º da Lei nº 11.033, de 21 de dezembro de 2004, e no art. 6º da Lei nº 11.053, de 29 de dezembro de 2004.
§ 3º. O imposto de que trata o § 2º será retido pelo administrador do fundo de investimento na data do fato gerador e recolhido em cota única até o terceiro dia útil subsequente ao decêndio da ocorrência do fato gerador”.
Assim, o art. 2º da Medida Provisória n. 806 introduziu uma hipótese de disponibilização ficta dos rendimentos acumulados nos fundos de investimento, que serão considerados pagos ou creditados aos respectivos cotistas em 31.5.2018, sendo o administrador do fundo de investimento responsável pela retenção do IRRF às alíquotas regressivas, de acordo com o prazo de aplicação e o prazo médio dos títulos que compõem a carteira (22,5% até 15% para longo prazo; 22,5% até 20% para curto prazo).
Neste cenário, a questão que se coloca diz respeito à compatibilidade do preceito normativo acima, que estabeleceu uma hipótese de disponibilização ficta dos rendimentos acumulados na carteira do fundo de investimento antes da entrada em vigor da Medida Provisória n. 806, com a Constituição Federal.
É impossível deixar de fazer um paralelo entre o texto legal em exame e o art. 74, parágrafo único, da Medida Provisória n. 2.158-35, de 24.8.2001, que, ao introduzir no sistema tributário brasileiro o regime de tributação automática dos lucros do exterior, criou uma hipótese de disponibilização ficta dos lucros acumulados no balanço de sociedades controladas e coligadas no exterior até 31 de dezembro de 2001, alcançando, assim, resultados apurados antes da entrada em vigor do novo diploma legal. Veja-se:
“Parágrafo único. Os lucros apurados por controlada ou coligada no exterior até 31 de dezembro de 2001 serão considerados disponibilizados em 31 de dezembro de 2002, salvo se ocorrida, antes desta data, qualquer das hipóteses de disponibilização previstas na legislação em vigor”.
Como não poderia deixar de ser, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (“ADIN”) n. 2588, acertadamente declarou a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 74 da Medida Provisória n. 2.158-35, sob a alegação de violação aos princípios da irretroatividade e da anterioridade, previstos no artigo 150, inciso III, alíneas “a” e “b”, da Constituição Federal de 1988.
É sintomático notar que, mesmo após a decisão proferida pela Corte Suprema no julgamento da ADIN n. 2588, o Governo Federal repetiu o mesmo equívoco com a edição do art. 2º da Medida Provisória n. 806, o que evidencia a falta de reverência do Poder Executivo à Constituição Federal, bem como às decisões proferidas pelo seu principal guardião.
Vale esclarecer que, a todo rigor, o art. 2º da Medida Provisória n. 806 não atinge apenas os efeitos futuros de um negócio jurídico celebrado no passado, como admitiu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial n. 1.438.876-SP, no qual se autorizou a aplicação da alíquota majorada de IRRF prevista na Lei n. 9.779, de 19.1.1999, aos juros decorrentes de contratos de mútuo celebrados antes do início de sua vigência.
A situação ora examinada é diferente da discussão a respeito do tratamento tributário aplicável aos juros decorrentes de um contrato de mútuo celebrado antes do início da vigência da lei que majorou a alíquota do IRRF. Nesse caso, os juros serão devidos em razão do mero decurso do tempo, com a observância dos prazos de vencimento estipulados no respectivo instrumento contratual, sendo que o fato gerador do IRRF surge no momento do pagamento, crédito, remessa, entrega ou emprego do rendimento em favor do não residente. Assim, o fato gerador da obrigação tributária e o vencimento dos juros ocorrem após o início da vigência da lei, ainda que o contrato de mútuo tenha sido celebrado anteriormente.
Diversamente, no caso do art. 2º da Medida Provisória n. 806, houve a instituição, por parte do Poder Executivo, de uma hipótese ficta de resgate compulsório por meio do procedimento de “come-cotas”, que pretende alcançar a valorização ocorrida antes do início da entrada em vigor e da produção de efeitos do novo diploma legislativo1.
A bem de ver, a primeira diferença entre as duas situações é que o pagamento dos juros é um evento de realização da renda, que não afronta o art. 43 do Código Tributário Nacional, ao passo que “come-cotas” é um evento ficto, de desconto automático do imposto de renda devido sobre a valorização do fundo de investimento, independentemente de qualquer evento de resgate, amortização, alienação ou liquidação.
A segunda diferença é que o IRRF incide de forma “pro rata temporis”, sobre a parcela do rendimento produzido entre a data do pagamento periódico anterior e a data de vencimento subsequente, ao contrário do “come-cotas” previsto no art. 2º da Medida Provisória n. 806, que alcança a valorização acumulada antes da sua entrada em vigor.
A terceira diferença é que, no caso examinado pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 1.438.876-SP, o cerne da discussão consistia em saber se a majoração da alíquota poderia retroagir para atingir os rendimentos de contratos de mútuo celebrados antes da entrada em vigor da Lei n. 9.779, pois tal incidência tributária majorada infringiria o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e o princípio da irretroatividade. Diferentemente, no caso ora examinado, não se discute se um o fundo de investimento constituído antes da edição da Medida Provisória n. 806 submete-se, ou não, ao novo regime de “come-cotas”, mas, sim, se uma hipótese de disponibilização ficta criada por Medida Provisória pode alcançar rendimentos produzidos antes da sua entrada em vigor e da sua produção de efeitos.
Para que fique ainda mais evidente a distinção entre as duas situações, é importante relembrar da classificação adotada pelo Supremo Tribunal Federal na ADIN n. 493-0, que graduou o nível de retroatividade das leis de acordo com a sua intensidade:
– retroatividade máxima: a nova lei pode atingir fatos jurídicos consumados ou protegidos pela coisa julgada, o que acarreta grave insegurança jurídica;
– retroatividade média: a nova lei pode impactar os efeitos pendentes dos atos jurídicos celebrados antes do início de sua vigência. Na retroatividade média, a lei nova alcança até mesmo as prestações pretéritas, desde que ainda pendentes de adimplemento;
– retroatividade mínima: a nova lei pode alcançar os efeitos futuros dos negócios jurídicos celebrados no passado. Sob a égide da retroatividade mínima, a lei nova alcança tanto os contratos celebrados após o início de sua vigência, quanto as prestações futuras de negócios jurídicos celebrados no passado, mas que ainda produzam efeitos.
No caso ora examinado, não se está diante de uma retroatividade mínima, que vem sendo admitida pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça2. Ao revés, trata-se de caso retroatividade média, no qual lei nova pretende alcançar até mesmo as prestações pretéritas, desde que ainda pendentes de adimplemento. É o que ocorre ao se pretender cobrar o IRRF, na modalidade de “come-cotas”, sobre os valores acumulados na carteira do fundo de investimento antes da entrada em vigor da Medida Provisória n. 806, cujos montantes ainda não foram disponibilizados aos respectivos cotistas.
Diante disso, ainda que a extensão do regime geral de “come-cotas” para fundos de investimentos fechados seja questionável, sob o enfoque do princípio da realização da renda, o fato é que a Medida Provisória n. 806 deveria, pelo menos, ter previsto que a nova sistemática de tributação apenas se aplica aos rendimentos produzidos e acumulados na carteira do fundo de investimento após a sua entrada em vigor e o início da sua produção de efeitos, com a observância do princípio da irretroatividade e do princípio da anterioridade3.
O que torna o art. 2º da Medida Provisória n. 806 ainda mais ilógico é o fato de que a própria Receita Federal do Brasil (“RFB”), na Instrução Normativa RFB n. 1.585, de 31.8.2015, adota o critério dos “rendimentos produzidos” como marco temporal para regras de transição que pretendem evitar a aplicação retroativa de novos regimes de tributação.
Como exemplo, é possível mencionar o art. 99, parágrafo 2º, da Instrução Normativa RFB n. 1.585, que utiliza o critério dos “rendimentos produzidos” como marco temporal para evitar a aplicação retroativa dos atos normativos que incluem novos países na lista de jurisdições com tributação favorecida, com a consequente majoração do IRRF.
Dessa forma, percebe-se que o art. 2º da Medida Provisória n. 806 é inconsistente com a sistemática que vem sendo adotada pela própria Administração Tributária para evitar a aplicação retroativa de novos regimes de incidência do imposto de renda em operações realizadas nos mercados financeiros e de capitais.
Como se não bastassem as considerações acima, o art. 2º da Medida Provisória n. 806 também viola o princípio da segurança jurídica, que permeia todo o sistema jurídico brasileiro e a própria ideia de Estado Democrático de Direito4, constituindo uma garantia fundamental que protege os cidadãos em suas relações com o Estado.
No direito brasileiro, a formulação do princípio da segurança jurídica decorre de diversos mandamentos insculpidos na Constituição Federal5, bem como nos tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil, que, examinados em conjunto, consagram valores como a inteligibilidade, a confiabilidade e a previsibilidade6.
Observe-se que o princípio da segurança jurídica pode ir além da proteção conferida pelos princípios da anterioridade e da irretroatividade, a fim de garantir a chamada “calculabilidade normativa”, pois o contribuinte deve ter a possibilidade de prever, com exatidão, quais serão as consequências tributárias futuras dos seus atos7.
Daí decorre que o cidadão deve ser previamente informado de eventuais alterações legislativas, para que possa alterar, ou não, o seu comportamento. Por consequência, os direitos e deveres previstos nas regras jurídicas editadas pelos órgãos competentes devem ser divulgados antecipadamente, a fim de que os administrados possam definir as expectativas de comportamentos e as respectivas consequências. Assim, as leis e as medidas provisórias não podem alterar os efeitos tributários de atos ou negócios jurídicos previamente praticados pelos contribuintes, em virtude da irreversibilidade do seu comportamento anterior, que não pode ser alterado. Essa premissa não foi observada pelo art. 2º da Medida Provisória n. 806, uma vez que, em relação aos rendimentos acumulados anteriormente na carteira do fundo de investimento, os contribuintes não têm a possibilidade de alterar o seu comportamento, buscando alternativas legais mais eficientes ou viáveis.
Diante disso, percebe-se que a aplicação da sistemática de come-cotas para os fundos de investimento fechados deveria ficar restrita aos rendimentos produzidos após a entrada em vigor e o início da sua produção de efeitos da Medida Provisória n. 806.
Ante as considerações expostas, o art. 2º da Medida Provisória n. 806 parece configurar mais um caso de “inconstitucionalidade útil” perpetrado no sistema tributário brasileiro, por meio do qual o Poder Público edita uma regra jurídica inconstitucional, contando com o fato de que inúmeros contribuintes não irão ingressar com ações judiciais para contestar a nova incidência, bem como com a possibilidade de eventual modulação dos efeitos de uma futura declaração de inconstitucionalidade8. No caso da Medida Provisória n. 806, o problema da “inconstitucionalidade útil” se agrava ainda mais pelo fato de que a responsabilidade tributária é atribuída ao administrador do fundo de investimento, o que dificulta ainda mais o questionamento judicial da nova regra pelo cotista.
Por isso, é de se esperar que o art. 2º da Medida Provisória n. 806 não seja aprovado pelo Congresso Nacional, a fim de se evitar o aumento da litigiosidade, o fomento à “inconstitucionalidade útil” e mais um desestímulo ao mercado de fundos de investimentos.
—————————————
1 A vigência da lei tributária consiste na sua validade técnico-formal, que decorre da sua elaboração por órgão competente e da observância dos procedimentos legais para a sua edição. Assim, a vigência da lei apenas confere à regra jurídica o potencial para incidir sobre o suporte fático descrito na hipótese normativa, sem permitir a produção concreta de efeitos em violação ao princípio da anterioridade, que consagra a segurança jurídica, a confiabilidade e a previsibilidade do ordenamento jurídico (Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Revista Dialética de Direito Tributário n. 65. São Paulo: Dialética, 2001, pp. 123-131).
2 Vide o próprio Recurso Especial n. 1.438.876-SP, examinado acima.
3 Vale lembrar que, segundo o art. 62, parágrafo 2º, da Constituição Federal de 1988, a medida provisória que instituir ou majorar impostos somente produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte ao da sua publicação se tiver sido convertida em lei até o último dia daquele exercício em que foi editada.
4 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2ª Edição. São Paulo: Malheiros. 1998. p. 184.
5 Como exemplo, vide art. 5º, “caput” e inciso XXXIII, art. 6º, inciso XXIII, art. 23, inciso XII, art. 103-A, parágrafo 1º, entre muitos outros.
6 YAMASHITA, Douglas. Direito Tributário – Uma Visão Sistemática. São Paulo: Atlas, 2014, p. 53.
7 É o que ensina Humberto Ávila na seguinte passagem: “Calculabilidade significa a capacidade de o cidadão antecipar as consequências alternativas atribuíveis pelo Direito a fatos ou atos, comissivos ou omissivos, próprios ou alheios, de modo que a consequência efetivamente aplicada no futuro situe-se dentro daquelas alternativas reduzidas e antecipadas no presente”. (ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica – Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 587).
8 Na definição Gustavo Miguez de Mello e Gabriel Lacerda Troianelli: “(…) a inconstitucionalidade útil (…) consiste na prática de atos deliberadamente inconstitucionais pelo Poder Público com o objetivo de sanar suas finanças, ante a possibilidade de que poucos – ou mesmo ninguém – insurjam-se contra tais atos”. (MELLO, Gustavo Miguez de; TROIANELLI, Gabriel Lacerda. “O Princípio da Moralidade no Direito Tributário”. O Princípio da Moralidade no Direito Tributário. Coord. Ives Gandra da Silva Martins, São Paulo: CEU/Revista dos Tribunais, 1998, pp. 211-212).
Fonte: Jota-22/11/2017
Por Ramon Tomazela Santos
Ramon Tomazela Santos – Master of Laws (LL.M.) em tributação internacional na Universidade Econômica de Viena. Mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP). Professor convidado em cursos de pós-graduação. Advogado em São Paulo.