Sabe aquele seu amiguinho de infância muito mimado, que era dono da bola e por isso achava que poderia impor suas regras, seja numa partida de futebol ou de vôlei? Infelizmente, essa cena está se replicando agora na seara tributária. Esse fato está sendo constatado em recente procedimento da Receita Federal do Brasil ao acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do RE 574.706, que determinou a retirada do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins. No caso, a disputa pela bola é representada pela interpretação equivocada de decisão do STF na Solução de Consulta Interna Cosit n.º 13/201 e confirmada em uma nota de esclarecimento do dia 6.11.2018 (1).
Apenas para relembrar os fatos, no dia 15.03.2018, o STF julgou o RE nº 574.706, submetido ao regime de repercussão geral, fixando a tese de que o ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins.
Apesar do acórdão proferido pelo STF ser claro quanto ao tema, a Receita Federal recortou trechos dos votos do acórdão que tiram o real sentido do que havia sido proclamado pelos integrantes da mais alta corte brasileira, dando uma compreensão intencionalmente deturpada e equivocada da referida decisão.
Tal entendimento em muito prejudica o direito dos contribuintes, pois estabelece que só poderiam excluir da base de cálculo o montante do tributo efetivamente recolhido aos cofres estaduais. O efeito colateral dessa interpretação equivocada será a volta da litigiosidade sobre o tema.
Analisando o voto da Ministra Carmen Lúcia, relatora do RE 574.706, este é claro no sentido de que o ICMS a ser excluído da base de cálculo das contribuições é o destacado em nota fiscal, conforme se lê:
9. Toda essa digressão sobre a forma de apuração do ICMS devido pelo contribuinte demonstra que o regime da não cumulatividade impõe concluir, embora se tenha a escrituração da parcela ainda a se compensar do ICMS, todo ele, não se inclui na definição de faturamento aproveitado por este Supremo Tribunal Federal, pelo que não pode ele compor a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins.
Enfatize-se que o ICMS incide sobre todo o valor da operação, pelo que o regime de compensação importa na circunstância de, em algum momento da cadeia de operações, somente haver saldo a pagar do tributo se a venda for realizada em montante superior ao da aquisição e na medida dessa mais valia, ou seja, é indeterminável até se efetivar a operação, afastando-se, pois, da composição do custo, devendo ser excluído da base de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins. Contudo, é inegável que o ICMS respeita a todo o processo e o contribuinte não inclui como receita ou faturamento o que ele haverá de repassar à Fazenda Pública.
10. Com esses fundamentos, concluo que o valor correspondente ao ICMS não pode ser validamente incluído na base de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins.
A resposta dada pela RFB deu o norte aos contribuintes de como seria aplicada a referida decisão judicial, o que foi reforçado pelo esclarecimento posterior, chancelando a interpretação equivocada.
Em sua explicação, a Receita Federal distorce o modo de apurar o PIS e Cofins, pois alega que o ICMS a ser excluído na base de cálculo é aquele efetivamente pago ao Estado competente.
Mas qual será o motivo por trás dessa mudança repentina de entendimento? No primeiro caso, o contribuinte, incluindo o ICMS destacado na Nota Fiscal, recolheria mais PIS e Cofins, devido ao fato de que a base estaria “inchada”. Agora, como os contribuintes venceram e a União deverá devolver aos contribuintes o que foi recolhido indevidamente, a tese encampada sem amparo legal pelo Fisco Federal é de que o ICMS a ser excluído é o efetivamente recolhido, o que diminui o valor a ser recebido e a União terá que devolver uma quantia menor aos contribuintes.
Em que pese o entendimento da Receita, não se pode interpretar o direito segundo conveniências, nem mesmo a autoridade tributária. Nesse sentido destaca-se trecho de um voto proferido pelo Ministro Celso de Mello – muito bem elaborado – nos autos da ADI nº 5526/DF:
2. O fiel cumprimento das decisões judiciais qualifica-se como obrigação constitucional inderrogável, notadamente dos Poderes da República e de seus membros e agentes.
Quando uma decisão judicial não é cumprida, vários são os instrumentos e sanções que podem ser aplicados à pessoa que a desrespeita. No caso, um dos instrumentos que visa garantir a autoridade das decisões proferidas pelo STF é a Reclamação Constitucional, que tem previsão no artigo 102, inciso I, alínea “l”, da Constituição Federal, bem como os artigos 988 e seguintes do Código de Processo Civil em vigência. De tal forma, qualquer contribuinte prejudicado pode propor uma Reclamação Constitucional, para garantir o cumprimento integral da decisão do STF pela Receita Federal.
Logo, se houver alguma intercorrência no procedimento compensatório, seja através do PERD/COMP, seja em razão da aplicação de Auto de Infração, a forma adequada para contestar será a utilização da via expressa da Reclamação, para que o STF afirme o que decidiu e obrigue a RFB a cumprir seu julgado. É uma pena usar essa via, pois o STF tem muito mais o que fazer do que revisitar o que já foi decidido. O poder público tem grande parcela de culpa na judicialização sem fim que ocorre em nosso país.
O resumo da ópera é que a Receita Federal interpretou mal a decisão do STF, desrespeitando a segurança jurídica. Os contribuintes ganharam a partida, mas a Receita Federal não está aceitando o resultado. O que for devido, deve ser devolvido, pois se trata de obrigação legal. Os Fiscos ainda não aprenderam que nesse jogo, suas atitudes interferem diretamente no investimento do país, que pode ou não ocorrer. Devem ser respeitadas as decisões da Suprema Corte. Como diria o velho ditado: “decisão judicial não se discute, se cumpre.” A atitude da RFB, no caso, é igual ao do menino dono da bola, mas quem decide as regras do jogo é a Suprema Corte brasileira.
(1) http://idg.receita.fazenda.gov.br/noticias/ascom/2018/novembro/nota-de-esclarecimento
Gabriel Hercos da Cunha*
*Gabriel Hercos da Cunha é advogado e associado do Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados
Fonte: O Estado de S. Paulo – 16/11/2018