No apagar das luzes de 2017, a Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro editou a Resolução nº 179 com o objetivo de fixar uma pauta de valores mínimos a ser adotada como base de cálculo do ICMS nas prestações de serviço de transporte cargas intermunicipal e interestadual, quando o valor constante da nota fiscal ou o valor declarado pelo contribuinte for inferior aos ali estabelecidos.
Veja-se:
“Art. 1.º Ficam estabelecidos os valores mínimos que servirão de base de cálculo para a cobrança do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS incidente sobre as operações de serviços de transporte intermunicipal e interestadual, sempre que o valor constante da nota fiscal ou o valor declarado forem inferiores aos constantes dos Anexos desta Resolução.
Art. 2.º O valor mínimo que servirá de base de cálculo para cobrança do ICMS incidente nas prestações a que se refere o art. 1.º, para carga líquida ou gasosa, será o resultado da multiplicação do volume total das mercadorias pelo valor estabelecido no Anexo I, em função da distância total a ser percorrida no trajeto de ida e volta.
Art. 3.º O valor mínimo que servirá de base de cálculo para cobrança do ICMS incidente nas prestações a que se refere o art. 1.º, para os demais tipos de carga, será o resultado da multiplicação da distância total a ser percorrida no trajeto de ida e volta pelo valor estabelecido no Anexo II, em função da espécie de veículo e do peso total das mercadorias, considerando-se também quando for o caso, os demais elementos da tabela.
Art. 4.º Os transportadores de carga, para efeito de recolhimento do imposto decorrente das prestações que realizarem, usarão o valor efetivamente cobrado pelo serviço prestado, nunca inferior ao valor mínimo estabelecido de acordo com o art. 1.º.”
Os valores mínimos ali previstos, como se vê, variam conforme o tipo de carga, a distância percorrida — considerando-se o trajeto de ida e volta — e o peso total da mercadoria, dentre outros.
De plano, pode-se ver que a Resolução 179/17 da Sefaz-RJ instituiu verdadeira “pauta fiscal”, já que fixou arbitrariamente uma base de cálculo mínima a ser utilizada pelos contribuintes do serviço de transporte intermunicipal e interestadual de cargas.
Acerca do tema, o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento muito firme no sentido de ser absolutamente ilegal a edição de pautas fiscais pelos entes federados, o qual está consolidado no enunciado da Súmula nº 431, que afirma ser “ilegal a cobrança de ICMS com base no valor da mercadoria submetido ao regime de pauta fiscal”.
O teor da referida súmula, vale dizer, está fundado em dois argumentos.
O primeiro é o de que a edição de pautas fiscais vai de encontro ao art. 97, IV, do CTN[4], que dispõe que somente lei pode fixar a base de cálculo dos tributos. Acerca do tema, a Primeira Seção do STJ, ao julgar a Pet 10.858/MT (Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, de 26.08.15), deixou consignado que a Súmula nº 431 “foi fruto do princípio da reserva legal a que se acha submetida à definição da base de cálculo de impostos. Dispõe o art. 97, IV, do CTN que somente a lei pode estabelecer a fixação da alíquota do tributo e da sua base de cálculo. (…). Daí a ilegalidade do regime da pauta fiscal, que decorre de ato do Executivo para estipulação da base de cálculo do imposto. Na área do ICMS, é comum o Executivo baixar pauta de valores para diferentes mercadorias, procedendo à sua apreensão quando transportadas junto a notas ficais com valores diversos daqueles estabelecidos por atos do Executivo.”
Já o segundo é o de que a fixação de bases de cálculo presumidas somente pode ocorrer – além das hipóteses de substituição tributária para frente, que não dizem respeito ao tema em discussão[5] – quando se faz necessário o lançamento por arbitramento, previsto no art. 148 do CTN[6], o qual representa uma medida extrema por parte do Fisco nas situações em que forem omissas ou não merecerem fé as declarações do contribuinte.
De todo modo, mesmo nesses casos, é imprescindível que seja instaurado, antes do arbitramento do tributo, processo administrativo prévio pelo Fisco, em que o contribuinte possa exercer de forma adequada o seu direito de defesa. Nesse sentido, a Segunda Turma do STJ, no AgRg no REsp 1.363.312/MT, já afirmou que a “jurisprudência desta Corte que entende pela ilegalidade do regime de pauta fiscal, haja vista que o arbitramento previsto no procedimento encartado no art. 148 do Código Tributário Nacional somente por se dar após a instauração de processo administrativo-fiscal regular, assegurados o contraditório e a ampla defesa.”(grifos nossos)
De fato, até sob pena de se deformar a competência tributária distribuída na Constituição, a base de cálculo do ICMS não pode ser outra que não o preço efetivo do serviço de transporte. Fora os casos de arbitramento — onde só se admite uma base ficta por não ser possível conhecer a base de cálculo efetiva — a única exceção admitida, até porque autorizada constitucionalmente no § 7º do art. 150, é a da substituição tributária para frente, justamente porque, por se tratar da tributação antecipada de fato gerador ainda não praticado, também aí não se conhece o valor efetivo da operação ou da prestação. E, mesmo assim, o STF já definiu que a base de cálculo presumida mesmo na substituição tributária não é definitiva, podendo ser questionada pelo contribuinte caso fique comprovado que o real valor da operação ou prestação foi inferior aquele previamente fixado pela autoridade fiscal[7].
Como se vê, a definição de pautas fiscais não é tolerada no nosso ordenamento jurídico.
E, no caso da Resolução 179/17 da SEFAZ/RJ, a situação é ainda mais grave, pois, além dos pontos acima colocados, nota-se que foram estabelecidos critérios para a mensuração da base de cálculo presumida que não são compatíveis com o fato gerador do ICMS – Transporte.
Isso porque, por exemplo, se adota um valor por quilometragem que leva em consideração, inclusive, o retorno do veículo para o local de origem. Contudo, o serviço de transporte intermunicipal e interestadual – que é o fato gerador da exação – tem início com a retirada da carga e se encerra com a entrega da mesma ao destinatário. Logo, a partir daí, nenhum outro elemento pode vir a impactar a base de cálculo do imposto, visto que a prestação do serviço estará encerrada. Considerar essa variável é permitir a inclusão de elementos estranhos na definição do quantum debeatur, uma vez que o transportador, no retorno do veículo, poderá vir a prestar serviço de transporte a terceiro, em nada relacionado com o fato gerador original.
Dito isso, vale fazer uma última observação: no julgamento da supracitada Pet 10.858/MT, a Primeira Seção do STJ estava diante de caso muito semelhante ao da Resolução nº 179/17, pois o Estado do Mato Grosso também havia instituído uma lista de “preços mínimos” a ser aplicada na venda de determinadas mercadorias. Só que, nesse caso, ainda se permitia a utilização de valores abaixo da pauta se os contribuintes apresentassem “contrato registrado em cartório”, com firma reconhecida e “devidamente homologado pelo Agente Arrecadador-Chefe da Agência Fazendária do domicílio fiscal do remetente” (Portaria SEFAZ/MT 67/11, art. 2º).
Mesmo com essa previsão de superação da base de cálculo presumida mediante a apresentação de documentos à SEFAZ/MT, a Primeira Seção do STJ manteve a sua posição, tendo afirmado que a “portaria editada, por si só, é ilegal em sua totalidade, pois não cabe ao Poder Executivo do Ente Federativo instituir pauta fiscal em nenhuma hipótese, mesmo condicionando o afastamento dos valores pré-fixados na pauta fiscal com a apresentação de documentação exigida com formalidade instituída pela portaria em procedimento administrativo. Ora, o procedimento administrativo fiscal previsto na portaria de pauta fiscal não convalida o ato de lançamento para a constituição do Crédito Tributário quando a norma regulamentadora possui vício insuperável de ilegalidade, no dimensionamento econômico do fato gerador.”
Logo, está mais do que claro que a Resolução nº 179/17 da Sefaz-RJ é manifestamente ilegal, de modo que pode ser questionada pelos contribuintes[8] perante o Poder Judiciário.
[4]“Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
(…)
IV – a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65”.
[5]Acerca dessa questão, vale conferir o que afirmou a Primeira Turma do STJ no julgamento do AgRg no AgRg no AREsp 350.678/RS, de 11.03.14, in verbis:
“O STJ entende que não há que se confundir a pauta fiscal – valor fixado prévia e aleatoriamente para a apuração da base de cálculo do tributo – com o arbitramento de valores previsto no art. 148 do CTN, que é modalidade de lançamento, da mesma forma como também não se pode confundi-la com o regime de valor agregado estabelecido no art. 8º da LC 87/96, que é técnica adotada para a fixação da base de cálculo do ICMS na sistemática de substituição tributária para frente, levando em consideração dados concretos decada caso. Precedente: RMS 18.677/MT, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJ20.06.2005, p. 175.”(grifamos)
[6]“Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial.”
[7] RE n° 593.849/MG, Plenário, rel. Min. Edson Fachin, DJ de 04.04.17
[8] No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, o pagamento do ICMS sobre o serviço de frete segue a seguinte sistemática prevista no art. 82 do Título IV do Livro IX do RICMS/RJ:
“Art. 82. A empresa ou o profissional autônomo que preste serviço de transporte intermunicipal e interestadual deve pagar o ICMS incidente sobre tais prestações, conforme a seguir:
I – empresa de transporte inscrita no CADERJ: período de apuração e prazo normais;
II – empresa de transporte sediada fora do Estado e não inscrita no CADERJ, ou profissional autônomo:
1. ICMS incidente sobre a prestação de serviço de transporte pago por substituição tributária, em DARJ, código de receita 036-1, até o dia 9 (nove) do mês subseqüente efetuado pelo:
a) remetente, na qualidade de contribuinte substituto, quando esse for contribuinte do ICMS e contratante do serviço, ao promover a saída interna ou interestadual;
b) destinatário, na qualidade de contribuinte substituto, quando esse for contribuinte do ICMS e contratante do serviço, em operação interna.”
Por Donovan Mazza Lessa, Luis Eduardo Maneira e Marcos Maia
Donovan Mazza Lessa é advogado, sócio de Maneira Advogados
Luis Eduardo Maneira é advogado e sócio do Maneira Advogados.
Marcos Maia é mestre em Direito pela Universidade Cândido Mendes e sócio de Maneira Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 20 de janeiro de 2018.
https://www.conjur.com.br/2018-jan-20/opiniao-resolucao-rj-icms-transporte-carga-ilegal