MANDADO DE SEGURANÇA – REGIME ESPECIAL DE REGULARIZAÇÃO CAMBIAL E TRIBUTÁRIA (RERCT) – LEI FEDERAL Nº. 13.254/16 – NATUREZA JURÍDICA – FAVOR FISCAL – LIMITES IMPOSTOS PELO LEGISLADOR – INTERPRETAÇÃO LITERAL. 1- A solução da questão destes autos gravita em torno da natureza jurídica do instituto do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT). 2- No caso concreto, não se cuida de discussão a respeito da norma de incidência, que deve, evidentemente, amoldar-se aos valores da segurança jurídica e da justiça tributária. Trata-se, isto sim, de instituto jurídico que oferece vantagens fiscais, bem como benefícios cambiais e penais, aos contribuintes que regularizarem a sua situação fiscal com relação aos recursos mantidos no exterior. 3- Não pairam dúvidas de que a norma de incidência fiscal deve alcançar a todos (princípio da generalidade ou igualdade subjetiva) e a todas as situações tributáveis equivalentes (princípio da universalidade ou da igualdade objetiva), cabendo falar-se em tratamento diferenciado apenas no que diz respeito à capacidade contributiva. Esse foi o principal discrímen (mas não o único) eleito pela Constituição da República para fins de permitir eventual tratamento desigual entre os cidadãos. 4- Num momento posterior, em decorrência da verificação fática da hipótese de incidência fiscal, impõe-se a exigência da tributação. Não cabendo indagar sobre a vontade do cidadão, pois, ainda que não tenha por intenção a prática da hipótese de incidência do IR, como no caso da remessa de recursos ao exterior sem declarar, a incursão no fato jurídico tributário obriga, basicamente, a submeter-se à relação jurídica obrigacional tributária. 5- Assim, a tese defendida pelo impetrante não tem amparo jurídico no ordenamento nacional, tendo em vista que pretende utilizar do mesmo arcabouço principiológico, destinado a limitar à criaçãodas normas jurídicas abstratas sobre a hipótese de incidência fiscal, estendendo-o às normas fiscais que concedem benefícios tributários àquelas situações nas quais os contribuintes já praticaram a hipóteses de incidência, e já se encontram em relações jurídicas tributárias, estabelecidas em função da remessa dos recursos ao exterior. 6- No entanto, tendo em vista que os acordos internacionais propiciaram o acesso às informações fiscais enviadas por outras nações, tornou-se acessível e indiscutível a notícia de que diversos recursos haviam sido movimentados, indicativa da prática dos fatos geradores fiscais respectivos, além de tipos penais aplicáveis. 7- O acesso a essas informações decorreu de um movimento de transparência fiscal de abrangência mundial. 8- A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) elaborou o modelo de Convenções para Evitar a Dupla Tributação Internacional em Matéria de Impostos sobre a Renda e o Capital em 1963, já prevendo a troca de informações entre os países convenentes, sendo que revisou o artigo 26 do instrumento, com o fito de intensificar a permuta de informações. 9- De outra parte, vários motivos, especialmente a demanda dos países por maior receita fiscal e o combate à evasão, conduziu a OCDE a gizar a busca pela transparência como uma de suas principais metas, passando a fomentar acordos nesse sentido, desde o Fórum Mundial de Transparência e Troca de Informações para Fins Fiscais, de 2009. 10- Para tanto, foram criados pela OCDE modelos padronizados, de forma a viabilizar programas de declaração voluntária de regularização fiscal, que contaram com a adesão, até 2010, de mais de quarenta e sete países. 11- Por essas razões, o Brasil firmou a “Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Tributária emendada pelo Protocolo de 1º de junho de 2010”, em Cannes, em 3 de novembro de 2011, a qual foi promulgada pelo Decreto nº 8.842, de 29/08/2016. 12- De outra parte, mas também pelas mesmas razões, os Estados Unidos da América editaram o Hiring Incentives to Restore Employment Act (HIRE ACT), em 2010, por meio do qual foi criado o FATCA – Foreing Account Tax Compliance Act, permitindo o acesso automático às informações pelas autoridades estadunidenses, mediante a realização de acordos. Assim, foi firmado com o Brasil o Acordo para Melhoria da Observância Tributária Internacional e Implementação do FATCA, em 23 de setembro de 2014, o qual foi promulgado pelo Decreto nº 8.506, de 24/08/2015, após ter sido aprovado pelo Decreto Legislativo nº 146, de 25/06/2015. 13- Indiscutivelmente, o sucesso do programa, que visou atrair a declaração dos valores lícitos mantidos no exterior, tem por pano de fundo a adesão do Brasil às diversas convenções firmadas tanto com a Europa quanto com os Estados Unidos da América para o compartilhamento de informações, visando à transparência fiscal. 14- Essas circunstâncias conduziram a inovações no ordenamento jurídico nacional, dando ensejo à criação do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), pela Lei nº. 13.254, de 13/01/2016. 15- Assim, o RERCT oferece a uma maioria esmagadora de contribuintes, que já haviam praticado as hipóteses de incidência fiscal relacionadas, principalmente, ao imposto de renda (IR), pela remessa de divisas ao exterior sem declaração, um estímulo à regularização de suas situações fiscais. 16- Cuida-se, portanto, de tratamento dispensado a fatos geradores realizados, com relação a apenas uma parcela de contribuintes segundo a definição da União, por seus Poderes Executivo e Legislativo, na medida em que configura a credora dos valores pendentes de pagamento e, nessa condição, lhe coube aferir as razões fiscais e extrafiscais pelas quais estabeleceu o programa. 17- Nesse diapasão, a averiguação da observância dos princípios constitucionais tributários ganha outros contornos. Veja-se, no entanto, que para o gozo dos benefícios fiscais oferecidos pelo RERCT foram fixados outros diversos requisitos pela Lei nº 13.254, de 13/01/2016, que configuram discrímen de natureza objetiva e subjetiva, e poderiam, eventualmente, dar ensejo à discussão a respeito à máxima da igualdade fiscal, tais como: a) a necessidade de licitude dos ativos mantidos no exterior (art. 1º); b) a aplicação do RERCT somente aos residentes ou domiciliados no País até 31 de dezembro de 2014 (art. 3º); c) originariamente, a necessidade de cumprimento das condições antes de decisão criminal condenatória (art. 5º, § 1º); d) após a Lei nº 13.428/2017, a limitação da extinção da punibilidade somente dos crimes praticados até a data de adesão ao RERCT; e) a impossibilidade de regularização de valores mantidos no exterior de espólio com sucessão aberta (vetado o incisos VIII do art. 3º pela mensagem de veto 21, de 13/01/2106); f) a impossibilidade de utilização do RERCT para regularização de joias, pedras e metais preciosos, obras de arte, antiguidades de valor histórico ou arqueológico, animais de estimação ou esportivos e material genético de reprodução animal, sujeitos a registro em geral (vetado o inciso IX do art. 3º). 18- Todas essas circunstâncias, que repelem a possibilidade de adesão ao RERCT, foram previamente estudadas pelo Poder Executivo, e normatizadas pelo Poder Legislativo, sem que se pudesse cogitar de inconstitucionalidade ou ilegalidade dessas escolhas pontuais para a fixação da abrangência da benesse fiscal, cambial e penal, por desrespeito ao princípio da igualdade fiscal. 19- De fato, o RERCT contém em seu bojo muito mais do que um simples favor fiscal, contábil ou financeiro, na medida em que prevê, expressamente, a extinção da punibilidade de diversos crimes relacionados à ocultação de valores remetidos e mantidos no exterior sem declaração, conforme dispõe o artigo 5º da Lei nº 13.254, de 13/01/2016, bem assim a anistia das multas pelo não cumprimento de obrigações acessórias, como a ausência de entrega completa e tempestiva da declaração de capitais brasileiros no exterior, em relação ao Banco Central do Brasil e à Comissão de Valores Mobiliários. 20- Ademais, há que se destacar que ao definir a abrangência do favor fiscal, excluindo dele os detentores de cargos, funções ou empregos públicos, e seus respectivos parentes, na forma do artigo 11 da Lei nº 13.254, de 13/01/2016, a norma jurídica guerreada nada mais fez do que estabelecer parâmetro subjetivo, com fulcro no princípio da moralidade administrativa, que impõe a observância de condutas norteadas por padrões de ética, lealdade, honestidade e probidade administrativa, na forma dos artigos 5º, inciso LXXIII, 37 e 85, inciso V, da Constituição da República. 21- Assim, considerando-se que a fixação da extensão e da abrangência dos favores fiscais, cambiais e penais sobre os ativos cabe, exclusivamente, ao Poder Legislativo federal, não há que se cogitar de o Poder Judiciário venha a alargar o RERCT, objetiva ou subjetivamente, por decisão judicial, para fazer incluir situações ou pessoas que já foram repelidas da utilização do programa. 22- Não há dúvida de que a adesão ao RERCT consiste em favor fiscal, pois envolve os institutos da remissão e da anistia, disciplinados pelos artigos 172, e 180 a 182 do Código Tributário Nacional, que determina, expressamente, que a interpretação da legislação tributária a esse respeito deve ser realizada de forma literal. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 23- A norma vigente é o resultado de recente debate legislativo. Não cabe ao Poder Judiciário, sem a observância do rito constitucional, negar vigência a normas jurídicas e, menos ainda, afrontar a reiterada vontade democrática do Congresso Nacional. 24- Apelação e remessa oficial providas. TRF 3ª Região, Apel. e RN 0022754-85.2016.4.03.6100, julg. 13/02/2020.