Novo contexto vem a confirmar o papel crucial do equacionamento da dívida tributária para a efetiva recuperação da atividade econômica.
Por muitos anos os institutos da recuperação judicial de empresas e da regularidade fiscal andaram afastados um do outro, não obstante a previsão expressa no art. 57 da Lei nº 11.101/2005 (LRJF) sobre a necessidade de apresentação de Certidão Negativa de Débitos (CND) para homologação do plano de recuperação judicial.
No entanto, a partir do fim de 2019 este cenário tem se alterado significativamente, o que contou com a participação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), que ao mesmo tempo em que combateu judicialmente os efeitos deletérios que essas decisões têm no âmbito concorrencial e da arrecadação, também desenvolveu diversos mecanismos para que as empresas em recuperação judicial regularizem seu passivo tributário, abrindo suas portas para negociar e participar ativamente do seu reerguimento.
Novo contexto vem a confirmar papel crucial do equacionamento da dívida tributária para a efetiva recuperação da atividade econômica.
Com efeito, a sistemática criada pela LRJF previu que o crédito tributário não seria objeto do plano de recuperação judicial, haja vista a vedação legal de sua modificação por liberalidade do devedor. Ainda que não houvesse previsão legal expressa, é evidente que o aspecto da regularidade fiscal não poderia estar dissociado da análise de viabilidade econômica da empresa, configurando relevante elemento para deferimento da recuperação judicial, razão pela qual foi exigida a apresentação de CND para a sua concessão.
Não obstante, dada a dificuldade que as empresas em recuperação judicial enfrentavam para obtê-la, os tribunais brasileiros acabaram por afastar essa exigência. O argumento adotado foi o de que haveria um direito delas a um parcelamento específico, na época não regulamentado, que levasse em consideração sua especial situação de dificuldades financeiras, apesar da clara dicção do art. 68 da LRJF estabelecer uma mera possibilidade. Esse posicionamento acabou se sedimentando com a decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no REsp 1.187.404/MT, julgado em 2013.
Malgrado a edição da Lei nº 13.043/2014, que criou um parcelamento específico para as empresas em recuperação judicial, ele foi completamente ignorado pelos tribunais, que continuaram a aplicar o julgado do STJ, como se o fundamento da decisão – inexistência de parcelamento específico – não tivesse sido superado.
Em complemento, os tribunais também abraçaram a tese de que qualquer ato de constrição de bens deveria ser analisado pelo juízo que processa a recuperação judicial, o que culminou com a afetação do Tema 987 à sistemática dos recursos repetitivos do STJ e a suspensão de todos os processos que discutem o assunto, inviabilizando a cobrança da dívida tributária em face das recuperandas.
Na prática essa jurisprudência criou um incentivo perverso, em que se pode utilizar do processo de recuperação judicial para escapar ao pagamento de tributos, blindando o patrimônio dessas cobranças, acarretando concorrência desleal e causando prejuízo na casa de dezenas de bilhões de reais aos cofres públicos (conforme estudo realizado pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional em 2018).
Não só isso, as recuperandas subverteram a preferência legal do crédito tributário, além de serem comuns os casos em que recebem precatórios milionários da União e os utilizam para pagar credores privados, a despeito do aumento da dívida tributária, em verdadeira moratória ilegal.
No final de 2019, o STJ, ao julgar o REsp nº 1.719.894/RS, finalmente reconheceu que a edição da Lei nº 13.043/2014 alterou o panorama legislativo que fundamentava seu posicionamento anterior. O tribunal sinalizou então a provável superação de sua jurisprudência, indicando que desde 2014 deveria ter sido aplicado o art. 57 da LRJF, exigindo-se a apresentação de CND para homologação dos planos de recuperação judicial. Esse entendimento já começou a ser adotado em algumas varas estaduais, e se espera que seja o prenúncio de que a regularidade fiscal e a recuperação judicial voltarão a caminhar juntas.
Essa mudança veio em boa hora, logo após a edição da Medida Provisória nº 899/2019, que dispôs sobre a transação tributária (hoje Lei nº 13.988/2020, regulamentada pela Portaria PGFN nº 9.917/2020) e que abriu novos caminhos para que as empresas em recuperação judicial equalizem seu passivo fiscal (com descontos que chegam a 50% do valor da dívida e diferimento para início do pagamento) e obtenham a CND.
Esse novo contexto vem a confirmar o papel crucial do equacionamento da dívida tributária para a efetiva recuperação da atividade econômica, a qual não se verifica se deixar como resultado do benefício judicial um passivo milionário com o Estado e a sociedade.
Neste sentido, não busca o Fisco e a PGFN o mero incremento da arrecadação tributária, mas uma participação efetiva e positiva no soerguimento da atividade empresarial, entendendo as dificuldades inerentes ao ciclo econômico, como é exemplo a regulamentação da transação extraordinária (Portaria PGFN nº 9.924/2020) e a transação excepcional (Portaria PGFN nº 14.402/2020), com procedimento de adesão simplificado e rápido, e disposições que visam auxiliar a recuperação das empresas afetadas por essa crise decorrente da pandemia da Covid-19.
Assim, acreditamos que esse movimento de reencontro entre a regularidade fiscal e a recuperação judicial veio para ficar, inaugurando novos tempos na relação jurídica entre o Fisco e as recuperandas, que serão extremamente benéficos para o ambiente de negócios no país.
Valor Econômico – Por Gabriel A. Gonçalves e Daniele Zanforlin – 3 de setembro de 2020