A proposta de reforma tributária divulgada pelo secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, na semana passada, pode ser implementada de forma mais rápida e gerar menos questionamentos judiciais do que o projeto apresentado pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP), dias antes, na Câmara Federal. A vantagem, segundo especialistas em tributação ouvidos pelo Valor, está no fato de o governo, pelo menos nesse primeiro momento, querer mexer apenas em tributos federais.
Advogados dizem que a inclusão do ICMS e do ISS, como pretende a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 45, apresentada por Baleia Rossi, pode gerar discussões no Supremo Tribunal Federal (STF). Esse já era um ponto polêmico do projeto de reforma tributária que teve a relatoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly em 2018 e também previa um sistema tripartite.
A PEC 45 tem como base um estudo do economista Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal. Pela proposta, cinco tributos – IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS – seriam substituídos por um único, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). A alíquota seria de 25% e não haveria mais benefícios fiscais.
Essa junção de tributos, entendem advogados, poderia desrespeitar o pacto federativo, uma das cláusulas pétreas da Constituição. Está previsto no artigo 60, detalha Rafael Serrano, sócio da área tributária do Chamon Santana Advogados. Para o especialista, Estados e municípios passariam a ter um controle limitado sobre a organização dos seus impostos e, por esse motivo, poderiam recorrer à Justiça para tentar anular a reforma.
“Essa proposta não é baseada na justiça fiscal, mas na simplificação da gestão fiscal das empresas”, afirma o advogado Ricardo Lodi Ribeiro, professor de direito financeiro na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Lodi entende que o combate à guerra fiscal deve ser uma preocupação, mas não a ponto de impedir Estados e municípios de fazer política fiscal. “Se Estados e municípios não puderem lançar programas para atrair investimentos, o combate ao desequilíbrio entre Estados ficaria à cargo da União”, diz. Isso, acrescenta, romperia com o pacto federativo.
A proposta do deputado Baleia Rossi, que tem o apoio do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), foi apresentada no dia 3 e encaminhada no dia 10 para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
O que existe por parte do governo, por outro lado, ainda não foi apresentado de forma oficial. Marcos Cintra diz que devem ser encaminhados projetos de lei ao Congresso até meados do ano. Um deles trataria da criação de um imposto único, em substituição ao PIS, Cofins, IPI, IOF e CSLL. A alíquota ainda está em estudo, mas, segundo ele, pode ficar acima de 9%.
Um outro projeto contemplaria a desoneração da folha de pagamentos. Estuda-se reduzir de dois a três pontos percentuais a parte paga pelo trabalhador – que hoje varia entre 8% e 11% – e extinguir totalmente a contribuição patronal. Em troca, seria criado um novo imposto sobre pagamentos, com taxação de 0,8% a 1,2% aplicada a operações bancárias (como a antiga CPMF) e também a qualquer transação econômica (por exemplo, a compra de um veículo ou imóvel).
Especialista em impostos, Guilherme Henrique Oliveira, sócio do Oliveira e Belém Advogados, gosta da ideia de fatiar a reforma, como pretende o governo. Ele afirma que o tema reforma tributária vem se repetindo ao longo dos anos e não se consegue a aprovação justamente por envolver interesses de vários entes federados. “É impraticável politicamente. As reformas passam de maneira fatiada, ou seja, atacando pontualmente os problemas”, diz.
As duas propostas têm prós e contras, avalia o advogado Roberto Quiroga, sócio do escritório Mattos Filho. O projeto do Congresso, exemplifica, por ser tripartite, tornaria o sistema mais simples. Mas por outro lado, além da demanda judicial que pode gerar em razão das mudanças no regime federativo, há a questão do prazo de transição, previsto para dez anos. “Vai simplificar desde que nesses dez anos tudo ocorra bem”, afirma.
Já o projeto capitaneado pelo governo é mais pontual, mexe apenas nos tributos federais, e prevê a criação de um imposto muito semelhante ao da CPMF, o que gera discussões. A implementação, entretanto, observa Quiroga, seria muito mais rápida. Além disso, destaca, prevê a desoneração da folha, o que considera “muito interessante”.
“Esse é um dinheiro que vai para o mercado. Quando tira imposto do salário do funcionário, o poder de compra dele aumenta. E desonerando a folha das empresas talvez aumente a contratação, melhore a atividade econômica e consequentemente se consiga uma arrecadação maior nos tributos em geral”, afirma Quiroga.
Como a proposta do deputado Baleia Rossi já está oficializada, os advogados conseguem fazer uma análise mais detalhada do texto – o que não é possível ainda com o projeto do governo. Além do pacto federativo, dizem, há outros pontos inconsistentes que, se levados adiante, também podem gerar demandas judiciais.
O advogado Tiago Conde, sócio do Sacha Calmon Misabel Derzi Consultores e Advogados, cita, por exemplo, eventual bitributação (incidência de impostos diferentes sobre o mesmo fato). A proposta de alteração dos artigos 116 e 117 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), prevista pela PEC 45, afirma, permitiria, temporariamente, a exigência do novo tributo pela União concomitante à exigência de ICMS e ISS.
Ele cita ainda problemas no artigo 159-D, que, segundo consta na proposta de Baleia Rossi, dá destino à receita do imposto sobre bens e serviços que será arrecadada pela União, Estados e municípios. “Imposto não tem vinculação [destino certo]. Só é possível em taxa ou contribuição de melhoria”, diz Conde. Ele considera esse trecho do texto também inconstitucional.
Existem ainda questionamentos sobre o fim da possibilidade de fixar alíquotas diferentes a depender da essencialidade de um produto, menores para essenciais e maiores para supérfluos – a chamada seletividade. Nenhum desses pontos, no entanto, tem consenso no meio jurídico. Há advogados que não descartam a possibilidade de essas questões chegarem ao STF, mas acreditam que, julgadas, terão a constitucionalidade reconhecida.
Para Fábio Cury, do Urbano Advogados, a proposta não fere o pacto federativo porque a gestão do dinheiro seria feita por um comitê gestor, assim como ocorre hoje no Simples Nacional. Além disso, haveria um período de testes e a União não controlaria todos os tributos. “O Estado seguirá com o IPVA e ITCMD e o município com IPTU e ITBI”, diz.
Breno Vasconcelos, sócio no escritório Manrich Vasconcelos Advogados, também acredita que não haveria o rompimento do pacto federativo. Ele ainda não vê problemas no fim da seletividade de alíquotas. A redução de tributação, entende o advogado, não se reflete necessariamente no preço. Para ele, a “seletividade funciona mal”./
Por Joice Bacelo e Beatriz Olivon | De Brasília
Fonte : Valor-15/04/2019