O cenário preocupante em que se encontram as finanças públicas dos entes federativos em geral é um potencial ensejador de soluções previsíveis e, ao mesmo tempo, surpreendentes. Do lado da previsibilidade, temos a necessidade de o Estado lato sensu incrementar o seu caixa para honrar seus compromissos, o que, em um contexto de crise econômica e de desequilíbrio das contas públicas, conduz a programas de regularização fiscal nos quais são concedidos descontos de multas e de juros para o pagamento de débitos.
Por um lado, programas dessa natureza carregam o mérito não só de aumentar a arrecadação mediante estímulo ao adimplemento das obrigações tributárias, como também de encerrar e de evitar inúmeros litígios administrativos e judiciais, gerando uma economia para o ente tributante, que deixará de incorrer em despesas para perseguir aquele crédito tributário.
Por outro lado, a recorrência com que se tem implementado programas de regularização fiscal desprestigia o contribuinte que paga seus tributos em dia, enfraquecendo a luta contra a sonegação fiscal.
Já sob o ângulo da surpresa, verificamos que essas leis instituidoras de programas de regularização fiscal, por vezes, trazem limitações que não se coadunam com a própria finalidade da norma anistiadora, qual seja: estimular o cumprimento da obrigação tributária por meio do perdão total ou parcial da multa e dos juros.
Dentre essas medidas limitadoras da adesão do contribuinte aos programas de regularização fiscal e que nos causam perplexidade, cuidaremos daquela que impede o uso dos valores depositados em juízo para o pagamento do débito com as reduções previstas na lei de anistia.
Nesse sentido, o presente artigo pretende demonstrar que essa vedação é inconstitucional por violar os princípios da isonomia e da proporcionalidade, implicando tratamento privilegiado aos contribuintes que se mantiveram inertes em detrimento daqueles que voluntariamente garantiram o crédito tributário, acautelando os interesses do Fisco.
A fim de problematizarmos a questão, centraremos a nossa análise no artigo 5º, §6º da Lei Complementar (LC) 182/18, do Estado do Rio de Janeiro, cujo teor é o seguinte:
“Art.5º – [omissis]
§6º – Fica vedada a utilização de montante objeto de depósito judicial para fins de pagamento com base nesta lei, sendo que as garantias já apresentadas em juízo somente poderão ser levantadas após a efetiva liquidação do crédito.”
O dispositivo legal em comento veio no bojo de uma lei complementar estadual que prevê a redução das multas e dos juros, relativamente aos créditos tributários de ICMS, constituídos ou não, inscritos ou não em dívida ativa, ajuizados ou não, com datas de vencimentos até 30 de junho de 2018.
De igual modo, a LC 182/18, do Estado do Rio de Janeiro, possibilita o pagamento de tais débitos em até 60 parcelas, prevendo percentuais de desconto das multas e dos juros que variam de acordo com o número de cotas escolhido pelo contribuinte.
Ademais, o caput do artigo 5º da LC 182/18, em conjunto com a Resolução SEFAZ 333/18 e a Resolução PGE 4.280/18, estabelecem que o programa de regularização fiscal terá a duração máxima de 30 dias, de sorte que os contribuintes fluminenses terão somente até o final deste mês de novembro para aderir ao programa.
Em paralelo, os parágrafos do artigo 5º da LC 182/18 prescrevem diversas condicionantes para a adesão ao programa de regularização fiscal, interessando-nos aqui particularmente aquela contida no §6º do citado dispositivo legal, que proíbe a utilização dos valores depositados judicialmente para fins de pagamento dos créditos tributários com os descontos de multa e de juros.
A nosso ver, a restrição contida no artigo 5º, §6º da LC 182/18 revela-se inconstitucional por ofender os princípios da isonomia e da proporcionalidade. Abaixo, explicitamos as razões para tal posicionamento.
Por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 640.905/SP[1], o Plenário do STF teve a oportunidade de analisar questão análoga sob o regime de repercussão geral, em caso no qual se discutia a constitucionalidade da Portaria 655/93, do Ministério da Fazenda, que proibia o ingresso no parcelamento de débitos de Cofins que tivessem sido objeto de depósito judicial.
Naquela assentada, por apertada maioria (6 a 5), o Pleno do STF entendeu que o artigo 4º da Portaria MF 655/93, que trazia tal vedação, não ofendia os princípios da isonomia e do livre acesso à Justiça.
Em que pese tanto a Portaria MF 655/93 como a Lei Complementar fluminense 182/18 estabelecerem uma restrição ao parcelamento dos débitos no que diz respeito aos valores depositados judicialmente, e não aos contribuintes depositantes, há diferenças fundamentais entre os citados diplomas, como se evidencia no quadro comparativo abaixo:
Portaria MF 655/93 | LC 182/18 |
---|---|
possibilita a inclusão dos débitos no parcelamento, porém, sem prever qualquer redução de multa ou de juros | possibilita a inclusão dos débitos no parcelamento, prevendo a redução de multa e de juros |
restringe não só a utilização dos valores objeto do depósito judicial, para fins de quitação do débito via parcelamento, mas também a própria inclusão do débito no programa de parcelamento | restringe apenas a utilização dos valores objeto do depósito judicial, para fins de quitação do débito via parcelamento, havendo, contudo, a possibilidade de inclusão do débito no programa de parcelamento mediante a realização de novo desembolso de recursos |
Feitas essas diferenciações, cabe ainda ressaltar que, no RE 640.905/SP, a pretensão do contribuinte era levantar o montante integral depositado para, a partir daí, efetuar o parcelamento do débito de Cofins, e não simplesmente converter o depósito em renda a favor da União. Ou seja, o depósito do montante integral do crédito tributário cederia lugar ao parcelamento.
Malgrado estejamos diante de duas hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário (art. 151, II e VI do CTN), cumpre observar que tão-somente o depósito do seu montante integral tem o condão de cessar os efeitos da mora, impedindo a incidência dos acréscimos legais, tais como a fluência de juros e a imposição de multa.
O depósito do valor em juízo constitui garantia ao pagamento do tributo, acautelando os interesses do Fisco, na medida em que a conversão do depósito em renda configura modalidade de extinção do crédito tributário equivalente ao pagamento (artigo 156, VI do CTN). O mesmo, contudo, não se verifica na hipótese do parcelamento, que não equivale a uma garantia ao pagamento do tributo.
Fixadas tais premissas, verifica-se que o precedente firmado no julgamento do RE 640.905/SP possui peculiaridades que o distanciam da discussão atinente à constitucionalidade do artigo 5º, §6º da LC 182/18.
Pois bem. Dito isso, por que, na nossa visão, o artigo 5º, §6º da LC 182/18 é inconstitucional?
Em primeiro lugar, porque ofende o princípio da isonomia, estabelecendo uma distinção injustificada entre o contribuinte que voluntariamente efetuou o depósito judicial do débito e aquele que se quedou inerte em relação aos débitos de ICMS que possuía com o Fisco.
Ora, o artigo 5º, §6º da LC 182/18 privilegia, de maneira absurda, o contribuinte que não tomou qualquer medida para garantir/satisfazer o débito tributário, oferecendo-lhe reduções de multa e de juros de mora; ao passo que o contribuinte que realizou o depósito judicial se vê obrigado a efetuar um novo desembolso de valores para poder quitar o débito com os descontos previstos em lei, sendo que o montante por ele depositado permanecerá retido até o trânsito em julgado da ação judicial.
A propósito, um dos aspectos levados em consideração no voto condutor do acórdão proferido no julgamento do RE nº 640.905/SP para afastar o argumento de ofensa à isonomia foi justamente a ausência de um tratamento mais favorecido para os contribuintes que se quedaram inertes em relação aos débitos que possuíam com o Fisco, em detrimento daqueles que realizaram o depósito do montante integral do débito. Confira-se a seguinte passagem do voto do Ministro Luiz Fux:
“Por fim, saliente-se que o discrímen feito pela Portaria 655/93 está em consonância com os interesses protegidos pela Constituição, na medida em que prestigia a racionalização na cobrança do crédito público, consubstanciando uma solução administrativa para a controvérsia relativa à Cofins que evita o ajuizamento de demandas desnecessárias e estimula o contribuinte em situação irregular ao cumprimento de suas obrigações.
Tivesse a Fazenda Pública editado um parcelamento que eximisse o sujeito passivo do encargos relativos à mora, aí sim tal medida importaria em ofensa a isonomia, não por distinguir contribuintes em situações idênticas, mas, ao contrário, por não distinguir duas situações completamente diferentes: a do contribuinte que voluntariamente efetuou o depósito judicial do débito, ficando imune aos consectários legais decorrentes da mora, e a do contribuinte que se quedou inerte em relação aos débitos de COFINS que possuía com o Fisco.” [grifos aditados]
Neste ponto, vale esclarecer que não estamos aqui cogitando a possibilidade de levantamento dos valores depositados para, posteriormente, efetuar o parcelamento do crédito tributário, mas sim a de conversão do depósito em renda a favor do Estado do Rio de Janeiro para fins de extinção do crédito tributário (artigo 156, VI do CTN).
No caso, deve ser reconhecida a possibilidade de utilizar os valores objeto de depósito judicial para o pagamento de débitos nos termos da LC 182/18, mediante sua conversão em renda, bem como que o adimplemento da obrigação tributária se dê levando em conta os percentuais de redução de multa e juros previstos na citada lei, com o consequente levantamento de eventual saldo remanescente do depósito.
Ato contínuo, e em segundo lugar, consideramos que o artigo 5º, §6º da LC 182/18 viola o princípio da proporcionalidade em duas de suas dimensões, a saber:
I) Necessidade/vedação de excesso: existe meio alternativo e menos gravoso para se chegar ao mesmo resultado, isto é, ao cumprimento voluntário da obrigação tributária (no caso, permitir a conversão em renda dos valores depositados judicialmente); e
II) Proporcionalidade em sentido estrito: o que se perde com a restrição ao uso dos depósitos judiciais é maior do que aquilo que eventualmente se poderia ganhar com medida dessa natureza. Até porque essa vedação pode inviabilizar a própria adesão ao parcelamento e o consequente término do litígio judicial (que perdurará e poderá ter, ao final, um resultado desfavorável à Fazenda).
Deveras, a finalidade do programa de regularização fiscal instituído pela LC 182/18 está claramente evidenciada no seu artigo 20[2], qual seja: pagar o 13º salário dos servidores estaduais do Poder Executivo, relativo ao ano de 2018.
Daí o motivo para a restrição ao uso dos valores objeto dos depósitos judiciais, uma vez que, como é cediço, o Estado do Rio de Janeiro há muito tempo utiliza parcela significativa do dinheiro de depósitos judiciais para custear despesas como o pagamento de precatórios e da previdência.
Tamanha é a gravidade da situação financeira do Estado do Rio de Janeiro que hoje se tem o esgotamento do fundo de reserva para pagamento dos alvarás judiciais, havendo fortes indicadores da impossibilidade de o Estado arcar com os deveres previstos em lei e do risco dos titulares dos depósitos judiciais ficarem impossibilitados de levantar seus alvarás.[3]
Em outras palavras, a vedação prevista no artigo 5º, §6º da LC 182/18 à utilização de montante depositado em juízo para pagamento de débito com base nesta lei decorre do fato de o Estado do Rio de Janeiro já ter feito uso desse numerário. A conversão do depósito em renda seria indiferente à finalidade da norma — o pagamento do 13º salário dos servidores — porquanto não acarretará a entrada de novos recursos nos cofres estaduais.
A letra do artigo 5º, §6º da LC 182/18 nos causa assombro. Afinal, por que não seria “bem-vindo” o cumprimento da obrigação tributária através da conversão do depósito em renda a favor do Estado do Rio de Janeiro? Seria preferível que a demanda judicial perdurasse e que a Fazenda estadual corresse o risco de ter que restituir os valores depositados em juízo e que utilizou ao longo do litígio, sendo que, em caso de vitória, o benefício econômico lhe seria idêntico (a conversão do depósito em renda)?
Infelizmente, ao que tudo indica, a LC 182/18 atentou apenas para as necessidades de caixa do Estado do Rio de Janeiro, deixando de lado a racionalização na cobrança do crédito tributário. Ao assim proceder, descuidou-se de dois princípios constitucionais de suma importância: a isonomia e a proporcionalidade.
Cabe aos contribuintes insurgirem-se, com urgência, contra essa discriminação injustificada, dada a iminência do término do programa de regularização fiscal em questão.
Isto posto, e diante da possibilidade dessa vedação ao uso de depósito judicial para pagamento de crédito tributário com reduções de multa e de juros vir a ser replicada por outros entes da federação, fica a nossa advertência quanto aos vícios de inconstitucionalidade acima narrados.
[1] STF, RE 640.905/SP, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/2016, DJe 31/01/2018.
[2] Art. 20. Fica excepcionalizado da Lei Complementar n.º 175, de 29 de dezembro de 2016 a presente Lei, por imperiosa necessidade do Estado do Rio de Janeiro pagar o 13º (décimo terceiro) salário do Poder Executivo relativo ao ano de 2018.
[3] Tal cenário de calamidade financeira levou o Ministro Gilmar Mendes a deferir medida cautelar no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.072/RJ para suspender os repasses do Banco do Brasil ao Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro, cabendo ao Banco do Brasil e ao Estado do Rio de Janeiro manter a composição do Fundo de Reserva nos termos previstos na Lei Complementar estadual nº 147/13, inclusive com os depósitos judiciais entre privados efetuados depois de agosto de 2015, até julgamento final desta ação (cf. STF, ADI 5.072 MC/RJ, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, julgado em 14/02/2017, DJe 15/02/2017).
Por Alexandre Teixeira Jorge
Alexandre Teixeira Jorge é especialista em Direito Tributário e Contabilidade Tributária pelo IBMEC/RJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Advogado no escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados. Mestrando em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ.
Revista Consultor Jurídico, 22 de novembro de 2018.
https://www.conjur.com.br/2018-nov-22/alexandre-jorge-refis-nao-impedir-uso-deposito-judicial