Contribuintes que aderiram ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) – o programa de repatriação – e declararam baixos valores de ativos que mantinham no exterior têm sido notificados pela Receita Federal. O órgão suspeita que esses bens foram subavaliados para reduzir o pagamento de Imposto de Renda.
Todos os casos aos quais o Valor teve acesso envolvem pessoas físicas donas de offshores no exterior que recolheram menos de R$ 50 mil. O programa de repatriação teve início em 2016 e exigia o pagamento de 15% de imposto e 15% de multa sobre os valores que estavam sendo declarados.
Uma fonte da Receita Federal informa que está sendo feita uma verificação nos casos em que há indícios de que contribuintes estariam se beneficiando da anistia para se livrar de crimes como evasão, sonegação e lavagem de dinheiro, mas pagando menos impostos do que deveriam. O Fisco tem identificado, segundo essa fonte, que há declarações de ativos em valor abaixo do que seria o padrão.
“É como se a pessoa declarasse a venda de um apartamento na Vieira Souto [avenida nobre do Rio de Janeiro] por R$ 100 mil, saindo totalmente da média para não pagar o ganho de capital”, diz a fonte. “É uma subavaliação de ativos para pagar menos impostos ao mesmo tempo em que se beneficia da anistia penal.”
O interlocutor contextualiza que os ativos podem ser bens imóveis, mas também contas bancárias utilizadas ao longo do tempo. Ele diz que como a operação de identificação e notificação dos contribuintes ainda está em andamento, não há um número já fechado de intimações enviadas.
A Receita, nesses casos, pede para que seja informado o valor líquido de cada empresa mantida no exterior até o dia 31 de dezembro de 2014 – a data de corte estabelecida para as adesões ao programa -, além do balanço patrimonial e a demonstração dos resultados.
Diz ainda ser necessária a apresentação de uma descrição, “a mais sucinta e objetiva possível”, da “atividade industrial/comercial realizada e declarada como origem dos ativos informados na Dercat” – a declaração de regularização do patrimônio mantido de forma irregular fora do país. Nas intimações consta que tem de ser juntada “a documentação comprobatória” de todas as informações.
No início do ano, o Fisco informou que dedicaria tratamento especial ao assunto. Há menção específica aos contribuintes que “consignaram valores módicos para efeitos de regularização” no Plano de Fiscalização Anual do órgão. Advogados acreditam que dentro desse universo esteja quem fez a declaração com base na “foto”, ou seja, o saldo existente na conta no dia 31 de dezembro de 2014.
Essa foi uma das questões mais polêmicas na época das adesões. O Fisco firmou entendimento de que a lei do RERCT (nº 13.254, de 2016) não tratava só da “foto”, mas do “filme”. O que significa que o contribuinte deveria declarar toda a movimentação dos últimos cinco anos.
Há preocupação em relação a esses casos especificamente, afirmam advogados, porque a Receita pode entender que houve sonegação nas situações em que o contribuinte usou como base a “foto” – pois não terá, nessa hipótese, feito a declaração na sua integralidade. Existe margem, no entanto, para discutir judicialmente a questão, segundo eles, porque a lei que instituiu o programa não trata disso.
Outra fonte da Receita afirma, porém, que não “há uma varredura a quem entregou a Decart”. Confirma, no entanto, que além dos casos de baixos valores, estão sendo analisadas situações não autorizadas em lei: a adesão de ocupantes de cargo público ao programa e indícios de origem ilícita de recursos.
A origem dos recursos tem gerado muitas contestações no meio jurídico. Advogados entendem que a Receita não pode exigir que o contribuinte comprove a licitude do dinheiro. A Lei 13.254 não faz essa determinação.
Além disso, sustentam, no “perguntas e respostas” elaborado pelo próprio órgão na época das adesões constava expressamente que o ônus da prova para demonstrar que as informações eram falsas seria do Fisco. A Receita alterou esse trecho do texto em dezembro.
Foram acrescentadas a ele três notas complementares. Na primeira, a Receita afirma que a desobrigação de comprovar a origem, por meio de documentos, valia apenas para o momento da adesão. Na segunda, estabelece que o ingresso e a permanência no regime poderá ser objeto de fiscalização e, na terceira, informa que concederá “prazo razoável” para que o contribuinte apresente os documentos depois que for intimado.
A mudança foi vista como uma “deslealdade do governo” entre tributaristas. Principalmente porque a alteração no perguntas e respostas ocorreu mais de dois anos após os contribuintes terem optado pelo programa.
“É importante lembrar que na primeira versão do PL [Projeto de Lei que deu origem ao RERCT] havia a previsão de comprovação e o Congresso suprimiu isso. A lei, então, não só não previu, como afastou expressamente essa necessidade”, diz o advogado Luiz Gustavo Bichara, sócio do Bichara Advogados.
As primeiras intimações a contribuintes considerados suspeitos ocorreram no início do ano. Entre os já notificados estão, por exemplo, pessoas que tiveram seus nomes divulgados pela Panamá Paper – apuração do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) sobre offshores constituídas em paraísos fiscais com a ajuda do escritório panamenho Mossack Fonseca.
Jornalistas de 76 países publicaram, em 2016, reportagens a partir de 11 milhões de documentos vazados dessa firma e divulgaram os nomes de proprietários das offshores – empresários e políticos em sua maioria. Ter o nome na lista, porém, não significa que a pessoa tenha feito algo ilegal, já que offshores não são proibidas.
Especialista em gestão patrimonial, Alessandro Fonseca, sócio do Mattos Filho, entende que a Receita não pode fazer exigir a comprovação de origem dos recursos. Acrescenta, por outro lado, que não haveria nenhuma irregularidade na fiscalização da base de cálculo usada no programa. “A declaração tem cinco anos para ser homologada e a Receita pode confirmar se os valores declarados são aqueles mesmos.”
Já a advogada Ana Carolina Monguilod, do PGLaw, diz que as notificações são ainda muito pontuais. “Os planos de fiscalização indicam que estariam potencialmente sujeitos à fiscalização, em 2018, 45 casos e, em 2019, 50 casos, sendo que as duas edições do programa de regularização contaram com cerca de 27 mil participantes”, frisa.
A primeira fase do programa, em 2016, teve a adesão de 25 mil pessoas físicas e cem empresas. A arrecadação, para a União foi de R$ 46,8 bilhões. Já a segunda fase, em 2017, teve a adesão de 1.915 pessoas físicas e 20 empresas, e a arrecadação foi de R$ 1,61 bilhão.
Fonte: Valor – 21/08/2019
Por Joice Bacelo e Fabio Graner