Preâmbulo
Qualquer proposta de reforma tributária pode ser analisada a partir de três perspectivas: política, econômica e jurídica.
Como destaquei no primeiro artigo publicado na ConJur sobre o tema, a reforma tributária é geradora de dissenso. Concorda-se que ela é necessária, mas a partir daí não se concorda com muito mais. Nesse contexto, a realização de uma reforma tributária exporá importantes conflitos políticos, os quais serão maiores ou menores a depender do modelo proposto. Por exemplo, uma proposta que extinga impostos relevantes dos entes subnacionais, como é o caso da Proposta de Emenda Constitucional 45, requererá um custo político alto para a sua aprovação.
Além da dimensão política, temos a econômica. Uma reforma tributária é motivada por objetivos de neutralidade, transparência e eficiência da atividade empresarial. Nenhum sentido faria a aprovação de uma reforma tributária que tornasse a inter-relação entre tributação e economia mais ineficiente.
Por fim, não se pode esquecer que uma reforma tributária tem uma relevante dimensão jurídica.
A PEC 45, assim como qualquer outra proposta de reforma do Sistema Tributário Nacional, deve ser orientada pelos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme previsto no artigo 3º da Constituição (construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação).
Além de estar alinhada aos objetivos fundamentais do Estado brasileiro, a PEC 45 deve observar as cláusulas pétreas em matéria financeira e tributária, que se resumem, basicamente, à manutenção da forma federativa de Estado e dos direitos e garantias fundamentais das pessoas enquanto contribuintes (artigo 60, parágrafo 4º, incisos I e IV, da Constituição Federal).
Neste artigo trataremos apenas de uma dessas questões, uma das mais debatidas desde a apresentação da PEC 45, relacionada aos seus potenciais impactos federativos. Portanto, este texto será o primeiro dedicado ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), cuja competência para instituição passaria a estar prevista no artigo 152-A da Constituição Federal.
A questão apresentada neste artigo é: a PEC 45 — ou qualquer outra que extinga tributos estatuais e municipais relevantes — seria inconstitucional por abolir a forma federativa de Estado?
1. Por que a questão federativa se tornou tão relevante na PEC 45?
A esta altura, muitos leitores e leitoras já estão bastante familiarizados com a proposta de criação do IBS, veiculada na PEC 45. Ainda assim, é importante que dediquemos alguns parágrafos em uma breve análise dos impactos federativos potenciais desta proposta, para que todos estejam na mesma página.
A questão central por trás da proposta de criação do IBS é a fusão de cinco tributos em um. Assim, ao final do período de transição do IBS, seriam extintos (conforme o parágrafo único do artigo 118 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, na redação dada pela PEC 45) os seguintes tributos:
- a Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS);
- a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins);
- o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI);
- o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação (ICMS); e
- o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).
Percebe-se, então, que a discussão sobre a aprovação da PEC 45 passa pela tomada de posição quanto aos limites do federalismo fiscal brasileiro. É legítima a eliminação da competência de estados, Distrito Federal e municípios para instituírem o ICMS e o ISS? Se em um primeiro nível a questão é se é possível a eliminação dessas competências, em um segundo nível a pergunta passa a ser se a maneira como tal eliminação se encontra disciplinada na PEC 45 seria constitucional.
2. Estado federal é um tipo, não um conceito
Um aspecto interessante, que tem aparecido nos debates sobre a questão federativa da PEC 45, é a análise comparada. Alguns buscam amparo no desenho institucional do federalismo alemão, que convive com uma certa centralização arrecadatória. No outro extremo temos o exemplo do federalismo fiscal norte-americano, que coexiste com competências amplas de cada estado para instituir impostos.
Sem querer apequenar os entusiasmados debates sobre o desenho institucional do federalismo fiscal de outros países, o fato é que Estado federal é um tipo jurídico, não um conceito. Existem certos traços fáticos que um Estado tem que manifestar para ser uma federação. Contudo, pretender comparar Estados federais para sustentar uma ou outra posição a respeito da PEC 45 nos parece um grande equívoco. Dessa maneira, a análise da constitucionalidade desta proposta deve ser feita considerando exclusivamente a Constituição Federal brasileira.
3. As correntes em conflito
Neste estágio do debate sobre a PEC 45, há duas correntes principais a respeito de sua inter-relação com o pacto federativo: uma que defende que o federalismo fiscal brasileiro requer apenas que cada ente subnacional tenha receitas suficientes para fazer face às suas atribuições definidas na Constituição; e outra que vai sustentar que não basta que os entes subnacionais tenham recursos financeiros. Seria necessária a existência de competências que lhes possibilitem utilizar a tributação como instrumento de política econômica, o que dependeria de terem tributos próprios, sobre os quais exerçam uma competência legislativa ampla. Assim sendo, para quem sustenta esta posição, a limitação da competência dos entes subnacionais à fixação de alíquotas (artigo 152-A, parágrafo 2º), a uniformidade da alíquota para todos os bens, tangíveis e intangíveis, serviços e direitos (artigo 152-A, parágrafo 1º, VI) e a vedação à concessão de benefícios fiscais em geral (artigo 152-A, parágrafo 1º, IV) resultariam na inconstitucionalidade da PEC 45.
Veja-se que ninguém parece questionar que a autonomia financeira é inerente à autonomia federativa. A divergência se dá quanto à abrangência de tal autonomia financeira.
Essa análise constitucional deve ser feita em abstrato e em concreto. Uma coisa é examinar abstratamente se a extinção do ICMS e do ISS — sem a substituição por equivalentes competências estaduais, distritais e municipais — seria inconstitucional. Outra abordagem é questionar se, embora abstratamente possível a extinção do ICMS e do ISS, o desenho institucional proposto pela PEC 45 seria constitucional.
4. Nossa posição
Parece-nos que a extinção do ICMS e do ISS não seria, em abstrato, inconstitucional. Com efeito, cremos que a redação do artigo 60, parágrafo 4º, inciso I, da Constituição Federal respalda essa interpretação ao estabelecer que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir […] a forma federativa de Estado” (grifo nosso).
Ora, o que a Constituição proíbe é a deliberação de proposta que tenda a abolir, eliminar, cancelar, revogar, acabar com a forma federativa de Estado. Por mais que haja divergências sobre qual modelo se presta a fortalecer o pacto federativo brasileiro — o atual ou o da PEC 45 —, parece-nos muito difícil argumentar que a PEC 45 seja medida de abolição da forma federativa de Estado.
Se a proposta de extinção do ICMS e do ISS não nos parece inconstitucional em abstrato, deve-se analisar com mais vagar se ela não pode se apresentar inconstitucional em concreto.
De fato, se a premissa é de que o federalismo fiscal exige que União, estados, Distrito Federal e municípios tenham recursos livres e disponíveis para fazer frente às suas despesas, a gestão do IBS deve garantir o livre fluxo de tais recursos, sem preponderância de qualquer um dos entes federativos.
Aqui temos um dos grandes problemas da PEC 45. Embora ele tenha inundado a Constituição Federal com novos dispositivos financeiros e tributários, parte relevante do seu desenho institucional foi delegado a lei complementar. Este é o caso, por exemplo, da criação do Comitê Gestor do IBS, conforme previsto no artigo 152-A, parágrafo 6º.
Não há nenhuma justificativa razoável para que a gestão do comitê gestor não esteja disciplinada na Constituição Federal. Prevê o referido dispositivo que o comitê será composto de representantes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Como serão indicados? Qual o critério? Como serão as deliberações do comitê? Qual será o peso de cada ente federativo? Nada se sabe sobre o funcionamento do Comitê Gestor do IBS, e aí sim podemos ter uma quebra do pacto federativo.
5. Necessidade de manifestação do STF
Uma questão interessante é que, segundo o já citado artigo 60, parágrafo 4º, inciso I, da Constituição Federal, “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir […] a forma federativa de Estado”. Percebe-se, assim, que a constitucionalidade da PEC 45 já poderia ser analisada pelo STF. Uma coisa que parece certa é que, caso um dia a PEC 45 seja aprovada, ela será objeto de contestação. Não faz sentido aguardarmos a aprovação da proposta para buscar a posição da corte sobre sua compatibilidade constitucional. Este ponto foi analisado com muito mais competência pelo professor Fernando Facury Scaff em artigo publicado na ConJur, cuja leitura sugerimos.
6. O precedente de extinção do IVVC e do adicional estadual do Imposto de Renda
Temos na história tributária pós-1988 ao menos um exemplo de extinção de tributos da competência de estados e municípios por emenda constitucional. Tal se deu com a edição da EC 3/1993, que eliminou o adicional ao Imposto de Renda, de competência dos estados, assim como o Imposto sobre Vendas a Varejo de Combustíveis Líquidos e Gasosos, de competência dos municípios.
Esse caso não gerou grandes polêmicas sobre violação ao pacto federativo. Entretanto, dada a irrelevância orçamentária desses tributos para estados e municípios, o fato de a EC 3/1993 não ter sido alvo de grandes controvérsias não é decisivo para a questão surgida com a apresentação da PEC 45.
7. O peso do aspecto político
Todos os comentários acima tratam da PEC 45 sob a perspectiva jurídica. Nada obstante, talvez o seu desafio mais complexo seja político.
De fato, é difícil imaginar a aprovação de uma reforma, cujo eixo principal é a extinção do ICMS e do ISS, sem a aquiescência de estados, Distrito Federal e municípios.
Os estados e o Distrito Federal, em manifestação não usual de uniformidade de posicionamento, sustentam que aceitam o modelo proposto na PEC, mas com algumas alterações, dentre as quais a exclusão da União do Comitê Gestor do IBS. Improvável que a União aceite entregar a receita atualmente gerada por PIS, Cofins e IPI para a gestão por um comitê do qual não faça parte. Assim, se os estados e o Distrito Federal não aceitam o desenho institucional do IBS conforme apresentado na PEC 45, e parece improvável que a União concorde com a ideia de não participar do comitê gestor, ao que tudo indica a PEC 45 chegou a uma encruzilhada que dificilmente será superada.
8. Mas, afinal, o que a União tem com isso?
Toda essa discussão federativa, segundo vemos, deveria ser, efetivamente, deslocada para as esferas estadual, distrital e municipal. Afinal, se estamos tratando da reforma da tributação sobre o consumo — a PEC 45 é apenas uma reforma sobre a tributação do consumo, e não uma reforma tributária ampla —, devemos ter em conta que a União não tem um tributo sobre consumo.
Nosso ponto de partida é que um imposto sobre consumo é um tributo cujo fato gerador seja a circulação de uma mercadoria, serviço ou intangível para o consumidor final. Ou seja, um imposto sobre o consumo grava uma relação circulatória, considerando a situação do consumidor.
Se analisarmos o PIS e a Cofins, por exemplo, notamos que o fato gerador das contribuições não é circulatório. Eles não se orientam pela situação do consumidor. São tributos juridicamente diretos cobrados para o financiamento da seguridade social. Uma empresa pode estar em situação pré-operacional e ainda assim pagar PIS e Cofins.
A seu turno, o IPI igualmente não é um imposto sobre consumo. Ele é um tributo com finalidade prioritariamente extrafiscal que serve de instrumento para a intervenção da União na economia. Embora a seletividade faça com que o IPI efetivamente considere a relevância do consumo, este tributo não incide, via de regra, sobre operações circulatórias para o consumidor final.
Se o IPI, o PIS e a Cofins não são típicos tributos sobre consumo, parece-nos que eles poderiam, simplesmente, ser excluídos do IBS. Sem a participação da União, a discussão federativa — que seguiria existindo — seria mais facilmente equacionável, já que boa parte dos municípios já sobrevive às custas de transferências de recursos.
Sabe-se que há anos a Receita Federal tem uma proposta de reforma do PIS e da Cofins que resolveria a maioria dos problemas desses tributos, além de unificá-los em uma única contribuição. A seu turno, como mencionamos no segundo texto publicado na ConJur, o IPI poderia ser reformado, simplificado e mantido.
Portanto, tendemos a acreditar que, em uma proposta ideal, o IBS seria apenas estadual e municipal, sem a participação da União e sem incluir o PIS, a Cofins e o IPI. Ainda neste caso teríamos discussões federativas. Porém, entendemos que o debate em nível estadual/municipal seria mais facilmente equacionável.
9. Conclusão
Considerando os comentários anteriores, é possível concluir que:
- a questão federativa é central na análise da constitucionalidade do IBS. Esse tema deve ser examinado não só tendo em conta a questão da possibilidade em abstrato de extinção do ICMS e do ISS, mas também o desenho institucional do IBS, sobre o qual, infelizmente, a PEC 45 diz muito pouco;
- o ideal seria que fosse ajuizada ADI questionando a PEC 45 e que ela fosse julgada pelo STF o quanto antes. Isso daria previsibilidade e evitaria a perda de tempo com uma reforma que poderia vir a ser considerada inconstitucional;
- considerando a manifestação dos estados por um IBS sem a participação da União no comitê gestor, tudo indica que esta proposta terá sérias dificuldades de aprovação;
- nada obstante, considerando que esta é uma reforma sobre a tributação do consumo, e que a União não tem um tributo sobre consumo, o ideal seria um IBS estadual/municipal, com a junção apenas do ICMS e do ISS, mantendo-se o IPI, o PIS e a Cofins, que seriam reformados — não vemos a necessidade nem da criação de um ou mais tributos extrafiscais federais nem de um IVA federal para substituir as contribuições.
Por Sergio André Rocha
Sergio André Rocha é professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e livre-docente em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP).
Revista Consultor Jurídico, 6 de agosto de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-ago-06/sergio-rocha-questao-federativa-central-analise-ibs