O requisito do proposito negocial para justificar a pretensão do contribuinte em reduzir sua carga fiscal começa a surgir pontualmente em Soluções de Consultas e julgados administrativos. Na SC Cosit nº 321/17 se exigiu que uma cisão parcial de créditos fiscais tivesse justificativa negocial para ser aceita. No Cc. 9.101-002.429 o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) recusou uma reorganização societária por falta de comprovação do “business purpose”.
Pior que isso. Acrescentou esse tribunal um corolário de fundamentos “socialistas”, ao se justificar pelos “princípios constitucionais e legais, entre eles os da função social da propriedade e do contrato, e da conformidade da ordem econômica aos ditames da justiça social”.
Cosit e Carf não podem aplicar conceitos não previstos em lei, ainda que supostamente bem-intencionados
Para que o propósito negocial passe do ideário filosófico das autoridades fiscais à validade jurídica é preciso que haja lei que o preveja e explicite porque é um conceito aberto e perigoso.
Ao regulamentar a norma antielisiva (CTN, art. 116, p. único), a MP nº 66/02, em seu art. 14, § 1º, previu expressamente a falta desse propósito e o abuso de formas como motores da desconsideração dos efeitos fiscais de atos jurídicos praticados pelos contribuintes.
Porém essa MP nunca foi aprovada pelo Congresso e outras tentativas subsequentes no mesmo sentido também não vingaram.
Portanto, a aplicação desses dois vetores sem base legal conduz a uma insolúvel situação: ou nunca foi preciso haver a MP 66, porque estão ínsitos nos princípios constitucionais, ou dependem de lei e não podem ser aplicados por enquanto.
O bom senso indica que as sucessivas propostas de leis antielisivas pelo Executivo, para normatizar o CTN, revelam a total impropriedade da aplicação precipitada desses conceitos para bloquear planejamentos tributários.
A doutrina tributária caminha nesse sentido, com mínimas dissensões.
A submissão do tema elisão fiscal a conceitos políticos constitucionais é fluida e contraditória, porque nossa Carta realmente cita a função social da propriedade, mas em paralelo também ressalta a livre iniciativa e a proteção da propriedade privada.
A linha divisória desses conceitos aparentemente antagônicos só pode ser estabelecida pela lei, porque cada interprete terá uma visão diferente, e a tributação não pode ser submetida a essas regras imprecisas de avaliação, em virtude do princípio da estrita legalidade.
Mesmo nos Estados Unidos, onde o business purpose encontrou algum espaço de aplicação, há respeitáveis dissenções: “a doutrina da substância econômica começou a absorver toda a lei tributária. Entramos em uma era em que os casos parecem ser decididos não com base em disposições estatutárias, ou, até onde posso dizer, com base na lei, mas com base em algo vagamente descrito como substância econômica, seja o for que isso signifique” (Prof. David Rosembloom).
Daí se segue que Cosit e Carf não podem aplicar conceitos não previstos em lei, ainda que supostamente bem-intencionados, na busca da melhor capacidade contributiva dos agentes econômicos.
Mas ainda que fosse possível, “ad argumentandum”, aceitar o propósito negocial como requisito da validade de certos planejamentos, ainda assim estaríamos num terreno movediço, pleno de inseguranças.
Vejamos o exemplo da cisão parcial: quer o Fisco que haja uma justificativa negocial para cindir um crédito fiscal acumulado de uma empresa para outra.
Ora, qual a régua objetiva que vai medir a qualidade da estrutura escolhida pelo contribuinte para atender a essa reivindicação fiscal?
Basta incluir na cisão um passivo de fornecedor equivalente ao crédito fiscal cindido, sob o argumento de que ele será pago tão logo haja a realização financeira do credito fiscal na sucessora, e o propósito negocial estará atendido.
Ademais, o protocolo-justificativa da cisão já deve contemplar os motivos da operação, que nunca são somente tributários.
Vejam que a falta de explicitação legal deixa esse conceito aberto suscetível de livre manipulação, sem que se possa opor válida restrição, na medida em que tudo que se refere aos ativos e passivos empresariais é negocial.
Ao enveredar por esse caminho tortuoso o Fisco está criando um problema para si próprio, pois não terá fundamentos legais para se opor a uma estruturação ou reorganização empresarial visando um planejamento tributário e que tenha um condimento extra mínimo designado para suprir o chamado propósito negocial, um requisito ainda impreciso.
Ao Fisco sempre será ingrato desconsiderar um planejamento fiscal com base nessa teoria, porque um empresário conhece melhor seu negócio e segmento econômico para justificar sua conduta.
No Carf o propósito negocial sempre foi confundido e absorvido pela simulação, para contornar a falta de regulamentação da norma antielisiva. São exemplos os casos “Martins”, “Klabin” e “Josapar”.
Por outro lado, o princípio da solidariedade social é endereçado ao legislador e não ao interprete da lei, que está adstrito à norma tributária legislada. “Não pode o juiz substituir-se ao legislador sob alegação de que a aplicação da lei não se harmoniza com seu sentimento de justiça ou equidade” (STF, RE nº 93.701).
O juiz federal Tiago Scherer assim se expressou em uma sentença sobre ágio interno e IR: “…o objetivo de reduzir o passivo fiscal e produzir lucro é inerente ao exercício de qualquer atividade econômica e chancelado pelo modelo capitalista da CF de 88 (…) o nosso sistema jurídico resguarda a liberdade empresarial para a organização dos negócios, inclusive para a exploração de lacunas ou brechas legais que possibilitem economia licita de tributos”.
Por Plinio J. Marafon
Plinio J. Marafon é sócio de Marafon, Soares, Nagai e Marsilli Advogados
Fonte : Valor -11/07/2018