Alguns temas tributários se mantêm, concepções são atualizadas, análises aprofundadas, tem-se conhecimento dos argumentos divergentes, precedentes ultrapassados e outros revestidos da evolução dos tempos. E na vanguarda o pensamento de que a relação contribuinte x fiscalização deve amadurecer, de modo a estreitar a confiança, para um trabalho fiscal mais produtivo a todos.
Adentrando-se na permanente controvérsia que envolve os créditos de ICMS da aquisição de insumos e produtos intermediários, autuações fiscais ainda chamam a atenção por manter um trabalho fiscal ultrapassado, sem verificação pontual e fundamentada, partindo do pressuposto “contribuinte sonegador”.
Ainda há autuações fiscais em diversos Estados com a exigência de ICMS decorrente da glosa de créditos de imposto incidente na aquisição de produtos intermediários, com premissas passíveis de desconstrução em simples acompanhamento de um dia de produção. Nestes casos, a autuação se dá com a constatação de recolhimento a menor de ICMS em razão do aproveitamento indevido de créditos do imposto de aquisições de materiais de uso e consumo. Ocorre que a controvérsia se atém à natureza dos produtos adquiridos.
A relação entre contribuinte e Fisco deve amadurecer, estabelecendo relação inicial de confiança
Como exemplo, recente autuação por parte da Secretaria de Estado da Fazenda de Minas Gerais glosou créditos do imposto que, na realidade, referem-se à aquisição de produtos intermediários exauridos no processo produtivo. A fiscalização estadual sequer visitou a empresa para certificar a natureza dos produtos e sua destinação e desgaste na produção. Há produtos tão específicos que o registro contábil, por si só, jamais conferiria informações bastantes para autuar ou não autuar. E tal situação se vê em outros Estados.
Visualizar o processo produtivo da empresa, entender a aplicação dos insumos e produtos intermediários é o mínimo para autuações que afastam a aplicação e exaurimento no processo produtivo. A glosa do crédito deve ser fundamentada e não partir de trabalho fiscal generalista, embasado em premissas e presunções equivocadas e frágeis para quem conhece o processo produtivo específico.
É impossível presumir a utilização de insumos e produtos intermediários em produção específica sem conhecer o processo produtivo. E ainda há autuações fiscais sem verificação local, respaldada em registro contábil, presumindo a não aplicação dos produtos na produção. Ora, alguns produtos, pelo nome industrial, não permitem sequer saber do que se tratam.
A autoridade fiscal, na ânsia arrecadatória e com o pressuposto de sonegação, lavra o auto de infração de ICMS, com planilha indicando milhares de produtos e de notas fiscais (milhares, sem exagero), extraídos de registros contábeis, sem distinção.
O pressuposto da sonegação e de que o contribuinte burlou o Fisco prevalece para a fiscalização.
Retomando o exemplo dado, em lançamentos decorrentes de glosa de créditos de ICMS decorrente da aquisição de produtos intermediários consumidos no processo produtivo, é patente a necessidade de avaliação pela fiscalização pautada na boa-fé do contribuinte e não na evasão fiscal.
Não é demais suscitar que, atentando-se para a legislação tributária vigente, a caracterização do produto intermediário, na modalidade consumo imediato e integral, cujo imposto incidente na aquisição é passível de creditamento, exige, concorrentemente, os seguintes fatores: produto individualizado; consumido na linha principal de produção e com exaurimento, ainda que parcial, em decorrência de seu emprego no processo industrial; e produto essencial na fabricação do novo produto.
Em outras palavras, o produto intermediário é aquele que, ainda que não integre o produto final, é essencial e consumido, ainda que parcialmente, durante o processo produtivo.
Como autuar sem conhecer o processo produtivo, ainda mais e casos em que há lista de produtos em que alguns nomes sequer traduzem a que se destinam?
E ainda é comum: a autoridade fiscal, sem averiguar o processo produtivo da companhia, ao usar critérios presuntivos, levanta extensa lista de materiais adquiridos, sem distinção e sem conhecimento do processo produtivo.
A defesa, por óbvio, demonstrará a definição legal de produtos intermediários, evidências da natureza e exaurimento na produção, e pedirá prova pericial. Prova pericial necessária, pois se trata de glosa de créditos de imposto da aquisição de produtos intermediários, sendo óbvia a necessidade de conhecer o processo produtivo.
A crítica está aí: como fiscalizar créditos de ICMS da entrada de produtos intermediários sem visitar a empresa e visualizar a destinação e exaurimento dos produtos em processo técnico.
O que se espera, a partir daí, é que não seja o contribuinte tolhido, senão dizer, impedido, da ampla defesa e contraditório com a prova pericial no decorrer do processo administrativo, oportunidade em que o fisco, em visita local, conhecerá a aplicação e exaurimento dos produtos na produção.
Este contexto nos demonstra que a relação contribuinte x Fisco deve amadurecer, estabelecendo a relação inicial de confiança e verificação da verdade material, que deve nortear o ato administrativo.
O amadurecimento da relação contribuinte versus fiscalização deve ser ajustado para contribuinte E fiscalização, isto é o que se espera. Por óbvio, não se afasta o poder fiscalizatório e a busca pela arrecadação, mas deve-se partir da verificação fiscal pelo princípio da verdade material, e não pelo pressuposto “contribuinte sonegador”.
Por Bianca Delgado Pinheiro
Bianca Delgado Pinheiro é coordenadora do Departamento Tributário de Décio Freire e Advogados, professora de direito tributário em curso de pós-graduação e ex-conselheira no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – Carf/MF (2011/2014).
Fonte: Jornal Valor Econômico – 15/10/2018