A modulação não produzirá efeitos sobre fatos decorrentes de atos concessivos de benefícios editados pelos Estados.
Nas últimas décadas travaram-se no Brasil intensas disputas entre Estados e entre municípios para ver quem oferecia mais vantagens fiscais e financeiras para atrair ou “roubar” empresas de outras unidades da Federação, constituindo-se no que se costumou chamar de guerra fiscal. Essas práticas, representadas pelo oferecimento de créditos fiscais presumidos, reduções de bases de cálculo, postergação de prazos e outros benefícios, sabidamente levariam seus agentes aos tribunais, em litígios envolvendo a legalidade e a constitucionalidade das normas criadoras das vantagens e, também, das medidas adotadas pelos Estados e municípios que, direta ou indiretamente, sentiram suas receitas impactadas.
É o caso do Recurso Extraordinário (RE) 628075/RS, que tem origem em ato do Estado do Rio Grande do Sul tendente a vedar o crédito e exigir o pagamento de ICMS não cobrado pelo Estado do Paraná, em razão da concessão de crédito presumido.
A modulação não produzirá efeitos sobre fatos decorrentes de atos concessivos de benefícios editados pelos Estados.
Em recente decisão tomada no citado recurso em sessão virtual (Tema 490 da Repercussão Geral), o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou tese no sentido de que “o estorno proporcional de crédito de ICMS efetuado pelo Estado de destino, em razão de crédito fiscal presumido concedido pelo Estado de origem sem autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), não viola o princípio constitucional da não cumulatividade”.
A Corte Constitucional conferiu à decisão efeitos ex nunc, a partir da decisão do Plenário, para que, conforme registrado no voto vencedor, fiquem resguardados todos os efeitos jurídicos das relações tributárias já constituídas e, caso não tenha havido lançamentos tributários por parte dos Estados de destino, este só poderá proceder ao lançamento em relação aos fatos geradores ocorridos a partir dessa decisão.
Alguns aspectos da veneranda decisão merecem comentários em razão dos impactos jurídicos e econômicos dela resultantes, não sem antes mencionar nosso respeito aos nobres julgadores que integram a mais alta Corte do país.
O primeiro aspecto é relativo à competência tributária, a qual está submetida diretamente às normas que emanam da Constituição Federal e não pode ser delegada, tampouco caduca pelo fato de não ser exercida. De sorte que cabe perquirir em que medida a tese fixada pelo Pretório Excelso pode atentar contra a competência privativa de cada um dos Estados da Federação.
Sobressai que, no caso do recurso extraordinário retro citado, o Estado do Paraná concedeu um crédito presumido a contribuinte lá estabelecido, para abater do ICMS a recolher ao Fisco paranaense, e a decisão, ao acolher a pretensão do Estado do Rio Grande de Sul de impedir o crédito ao estabelecimento adquirente aqui localizado, atribuiu ao Fisco gaúcho competência para cobrar parcela do imposto não exigido pelo Paraná.
Ou seja, com base na decisão o Estado do Rio Grande do Sul está autorizado a cobrar o imposto não cobrado correspondente ao abatimento concedido pelo Paraná.
Outro ponto a considerar, sem embargo do entendimento, há muito sedimentado na jurisprudência do STF, de que o estorno proporcional de crédito de ICMS não atenta contra o princípio da não cumulatividade, é que existem peculiaridades que devem ser sopesadas em cada situação, para que a conformação constitucional do imposto não seja desfigurada.
Há que se atentar para o fato de que não necessariamente todo o crédito presumido concedido representa dispensa do pagamento de ICMS na proporção do seu percentual. Casos há em que o crédito é concedido para simplificar a vida do contribuinte, em substituição ao crédito normal que o estabelecimento beneficiário teria direito. Em tal situação, para não malferir a não cumulatividade, é preciso verificar se o crédito presumido é maior do que o crédito normal e, se isso for comprovado, o Estado de destino poderá determinar o estorno do crédito nessa proporção. Há, ainda, crédito presumido de determinado percentual sobre o saldo devedor apurado mensalmente, caso em que a vedação do crédito não poderá ter como base o ICMS destacado na nota fiscal.
O terceiro ponto que reputamos relevante é o fato de ter o STF, por um lado, negado provimento ao recurso do contribuinte do Rio Grande do Sul que valeu-se de mandado de segurança para pleitear a garantia do direito ao crédito integral do ICMS e, por outro, modulado os efeitos da decisão, para resguardar todos os efeitos jurídicos das relações tributárias já constituídas por parte dos Estados de destino, sendo que novos lançamentos fiscais somente poderão ser lavrados em relação a fatos geradores ocorridos a partir da decisão.
Cabe aqui referência ao voto vencedor que a decisão do Supremo Tribunal Federal deve respeitar o que for decido pelos Estados com base na Lei Complementar nº 160, de 2017.
Neste particular é oportuno observar que os Estados, em reunião do Confaz, celebraram o Convênio ICMS nº 190, de 2017, mediante o qual decidiram que ficam remitidos e anistiados os créditos concedidos pelas unidades federadas de origem da mercadoria, bem como tornar válido, eficaz, o crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria, retroativamente à data de origem da concessão.
Diante desse quadro, independentemente dos impactos negativos decorrentes da guerra fiscal nas finanças dos Estados, os benefícios concedidos até 8 de agosto de 2017 foram convalidados, assim como também os créditos tomados pelos estabelecimentos recebedores das mercadorias.
Portanto, salvo melhor juízo, a modulação dos efeitos no caso concreto e nos demais, em razão do efeito erga omnes da decisão, não produzirá efeitos sobre fatos decorrentes de atos concessivos de créditos presumidos e outros benefícios editados pelos Estados até a data aqui referida.
FONTE: Valor Econômico – Por Gilson J. Rasador
01/10/2020