Na coluna desta semana discute-se um tema recorrente na 3ª Seção do Carf: a validade da segregação das atividades de industrialização e de atacadista nas hipóteses de contribuições para o PIS e para a Cofins sujeitas à incidência monofásica. Antes, porém, de abordar a jurisprudência do Tribunal, é indispensável contextualizar o problema a ser aqui analisado.
As contribuições para o PIS e para a Cofins sujeitam-se a dois regimes jurídicos distintos: o não-cumulativo[1] e o cumulativo[2]. Não obstante, dentro destes modelos, existem alguns produtos específicos[3] que se sujeitam à monofasia tributária[4], ou seja, a uma apuração de PIS e Cofins que é toda concentrada em uma das fases da cadeia produtiva, mais precisamente na fase industrial. Tal método de apuração tem, dentre outros objetivos, perfazer em concreto a ideia de praticabilidade tributária.
Nesse sentido, o legislador concentra toda a incidência tributária em um determinado elo da cadeia produtiva, em regra sujeitando tal contribuinte a uma incidência com alíquotas mais expressivas e, por conseguinte, desonerando os elos subsequentes dessa mesma cadeia econômica. Dentro deste contexto, são especificamente assim tratados os produtos de perfumaria, toucador, higiene e farmacêuticos, nos termos da lei n. 10.147/2000.
Já é possível perceber que, diante desse contexto normativo, é vantajoso para empresas do setor econômico alhures indicado dividir suas atividades entre operações industriais e estabelecimentos atacadistas, de modo a minorar a base de cálculo na operação industrial, a qual, em princípio, está sujeita às incidências de PIS, Cofins e IPI, para então agregar valor ao seu produto na operação atacadista subsequente, a qual, por sua vez, é desonerada de tais incidências tributárias[5].
Em se tratando de incidência de IPI, uma eventual erosão artificial da base de cálculo do tributo sempre foi combatida por regra antielisiva específica, qual seja, o valor tributável mínimo, questão essa, inclusive, que já foi objeto da presente coluna[6].
Acontece que, no âmbito do PIS e Cofins, não há uma regra antielisiva para evitar eventuais distorções[7], surgindo aí um contencioso administrativo pautado por acusações de simulação, dissimulação, ausência de propósito negocial, abuso de forma, subfaturamento etc. Neste cenário, a operação praticada entre a empresa industrial e sua relacionada comercial é desconsiderada e o valor exigido a título de PIS e Cofins acaba por recair sobre o importe das operações de venda efetuada pela empresa comercial para a etapa subsequente da cadeia. Em suma, este é o cenário fático-jurídico objeto de julgamento pelo Carf.
Pois bem. Em um primeiro momento, mais precisamente até o ano de 2016, a jurisprudência do Tribunal foi no sentido de vaticinar os modelos que segregavam as operações empresariais aqui tratadas, o que era pautado por fundamentos de caráter predominantemente formal, como as ideias de legalidade (acórdão Carf 3402-001.908)[8] ou com esteio em política fiscal (acórdão Carf 3403-002.519)[9]. Outro ponto também trazido à baila era o fato de inexistir norma específica antielisiva para as contribuições em apreço (acórdãos Carf 203-13.027, 3401-003.266 e 1402-002.337), o que daria margem para uma maior liberdade ao contribuinte no momento de “desenhar” suas operações empresariais.
É bem verdade que, já nesta época, alguns acórdãos também levavam em consideração questões de índole material, para, por conseguinte, refutar a suposta ilicitude da segregação empresarial. É o caso dos acórdãos Carf 3403-002.854 e 3401-003.266, que entenderam que tal modelo de negócio tinha objetivos econômicos, tais como ganhos logísticos e partilha do risco no caso de inadimplência, o que seria ainda reforçado pelo fato da cisão das atividades antecederem à própria legislação que instituiu a monofasia das contribuições sociais.
Por sua vez, a partir de 2018, a questão em tela passou a ter outro tratamento pela jurisprudência do Carf, com a manutenção das autuações fiscais ao fundamento de simulação (acórdão Carf 3201-003.930) e planejamento tributário abusivo (acórdão Carf 3201-004.699). Ressalte-se, inclusive, que no caso do acórdão Carf 3201-003.930, o contribuinte recorrente era empresa que já havia se submetido à fiscalização anterior para a mesma base fática de acusação, i.e., ilicitude da segregação das atividades empresariais, oportunidade em qual tal cisão foi analisada e referendada pelo Carf por intermédio do acórdão 3403-002.519.
Apesar de um resultado final distinto no julgamento, tal fato não implica a automática afirmação de que teria ocorrido uma superação (overruling) do precedente anterior do Tribunal, com a consequente assertiva, precipitada, de que as operações de cisão de atividades empresariais (industrial e atacadista) nas operações sujeitas à monofasia do PIS e da Cofins seriam pressupostas como inválidas pelo citado Tribunal.
E isso porque, ao se cotejar os dois acórdãos supracitados, é possível verificar que, no primeiro caso, a decisão pautou-se fortemente em uma alegação de vício na motivação da autuação e, no segundo julgado, em uma análise mais minudente das provas produzidas na fase fiscalizatória.
Aliás, esse segundo julgado tem mostrado uma tônica da jurisprudência atual do Carf neste tipo de situação: uma análise mais detida das circunstâncias fáticas que permeiam a segregação da atividade e, em especial, as provas produzidas ao longo do processo administrativo. A segregação das atividades empresariais com a consequente redução da carga tributária não seria, por si só, motivo para a exigência fiscal, cabendo a demonstração fático-probatória de que tal operação se sustenta ou não por outros fundamentos, com especial relevância para aspectos econômicos deste modelo segregado de atividades empresariais.
Neste esteio, a demonstração de ganho logístico, de redução quanto ao risco financeiro da operação e, ainda, uma cisão da atividade empresarial previamente à instituição da monofasia do PIS e da Cofins, seriam elementos hábeis a justificar a operação cindida.
Em síntese, o que se observa desta discussão no âmbito do Carf é que o debate ganhou um maior refinamento técnico, na medida em que não se restringe mais à validade da segregação das atividades em um altiplano exclusivamente normativo, cabendo, em verdade, às partes litigantes demonstrar em concreto, i.e., por meio de provas, a (in)viabilidade jurídica e econômica desta cisão empresarial.
Há, portanto, uma maior ênfase para as circunstâncias fáticas do caso em julgamento, o que de fato se espera de órgãos que exercem atividade judicativa, ainda que de forma assemelhada, já que a função deste órgão é de julgar casos em concreto e não veicular teses jurídicas em abstrato.
Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.
[1] Artigo 195, §2º da Constituição Federal e Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003.
[2] Lei n. 9.784/99.
[3] Em regra, tal regime é aplicado para produtos com alto valor agregado. A título de exemplo destacam-se os setores de bebidas, medicamentos, combustíveis e peças.
[4] Importante registrar que a monofasia não se confunde com o regime de substituição tributária, já que neste último modelo as receitas estão obrigatoriamente sujeitas ao regime cumulativo de apuração de tributos, o que não acontece no caso da monofasia.
[5] Em verdade, a não incidência do IPI perdurou entre os anos de 1994 e 2015, já que o Decreto 8.393/15 reestabeleceu a regra da Lei n. 7.798/89 e voltou a equiparar os estabelecimentos comerciais aos industriais, sujeitando-os, portanto, ao IPI.
[6] https://www.conjur.com.br/2019-jan-16/direto-carf-aplicacao-valor-tributavel-minimo-ipi-validada-carf
[7] O art. 22 da MP nº 497/2010 trazia uma norma atielisiva específica para tais situações, mas tal norma não foi recepcionada pelo legislador quando da sua conversão na lei nº 12.350/2010.
[8] Segundo o voto do Relator do caso a cisão parcial, que redundou em várias empresas do mesmo grupo econômico, por encontrar guarida legal, não poderia ser considerada como ato ilícito ou simulação pelo simples fato de gerar economia tributária.
[9] Segundo o voto do relator a monofasia afeta a neutralidade fiscal e os contribuintes são economicamente “compelidos” a se organizar pautados pela verticalização de suas atividades.
Por Diego Diniz Ribeiro
Diego Diniz Ribeiro é advogado tributarista, ex-conselheiro do Carf na 3ª Seção de Julgamento e professor de Direito Tributário, Processo Tributário e Processo Civil. Doutorando em Processo Civil pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).
Revista Consultor Jurídico, 2 de outubro de 2019.