Costuma-se dizer que a centralização e a descentralização de poder no Brasil obedecem a um padrão de “sístoles e diástoles”, ora concentrando-se os poderes na autoridade central, ora delegando-se mais poderes aos Estados. A expressão cardíaco-política é do general Golbery do Couto e Silva que, em que pese a ausência de credenciais democráticas, cunhou a metáfora muitas vezes mencionada quando se fala da história do federalismo brasileiro.
É certo que a luta por autonomia traz uma luta por recursos, que têm na tributação a sua fonte primordial. A partir da segunda metade do século XX, a disputa deixou de ser somente entre os Estados e o poder central e passou também a ser entre os próprios Estados da Federação.
A Constituição de 1967 e a Emenda 1/1969, que a reformulou, representaram uma centralização de poder, típica de ditaduras. Tentou-se, entretanto, criar um sistema de arbitramento dessas disputas entre Estados, ainda que somente pelo aspecto legal, dada a falta de democracia. Aquela Constituição trouxe a previsão de que isenções tributárias fossem concedidas ou revogadas somente mediante convênios entre Estados, que passaram então a ser firmados.
O desvirtuamento do sistema tributário empobrece o país como um todo, impedindo que a situação de carestia seja superada
Em 1975, criou-se, por intermédio da Lei Complementar nº 24/1975, o Conselho Nacional de Política Fazendária, instância oficial na qual seriam discutidos esses ajustes tributários, com a participação do Ministro da Fazenda e dos Secretários de Fazenda dos Estados. Uma das regras básicas desse sistema é que a concessão de benefícios fiscais seja unânime.
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, representou uma nova fase de liberdade e autonomia para os entes federativos. A estrutura de concessão de benefícios fiscais mediante a deliberação por convênio foi, todavia, mantida. Ocorre que a luta por recursos, de certa maneira tamponada pela centralização do período anterior, transformou-se em conflito aberto, bélico até nos nomes dos seus desdobramentos, como a Guerra Fiscal e a Guerra dos Portos.
Os Estados passaram a conceder incentivos e benefícios fiscais por conta própria, burlando a estrutura constitucional legítima para o endereçamento dessas questões. O Poder Judiciário, por sua vez, especialmente o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal (STF), não conseguiu resolver as refregas entre os Estados, deixando de reprimir adequadamente condutas ilegais e inconstitucionais por eles adotadas.
Essa situação, que ainda persiste, configura, em realidade, um verdadeiro “estado de coisas inconstitucional”, instituto que já foi reconhecido pelo STF quando do julgamento da Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 (ADPF 347 MC/DF).
A ADPF 347 refere-se à situação do sistema prisional brasileiro. Não se pode esquecer, entretanto, que a tributação também deve respeitar direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal, pois, se distorcida, ela afeta diretamente a igualdade, a legalidade e a propriedade, além de outros fundamentos e princípios gerais do Estado brasileiro como a livre iniciativa e a redução das desigualdades regionais e sociais.
O desvirtuamento do sistema tributário empobrece o país como um todo, impedindo que a situação de carestia – realidade de muitas famílias duramente penalizadas por impostos sobre o consumo – seja superada, e que o tão esperado crescimento econômico sustentado enfim se concretize. O reconhecimento desse estado de coisas inconstitucional leva a três impasses.
O primeiro tem-se que a perpetuação desses arranjos ilegais e inconstitucionais acabou por se incorporar ao planejamento econômico-financeiro dos Estados e das empresas que eles tentam atrair, o que torna muito difícil desatar esse nó, a esta altura, sem grandes prejuízos aos próprios Estados e aos agentes econômicos que investiram em entes federados que concediam benefícios ilegais.
O segundo impasse, decorrente do primeiro, é que o receio da perda de arrecadação, por parte dos Estados, é um dos grandes empecilhos à reforma tributária, que há décadas vem sendo discutida, sem que haja, porém, consenso político para sua efetivação.
Por fim, dada a complexidade institucional do assunto e o longo tempo pelo qual ele vem se arrastando, semeando em cada benefício ilegal concedido um “fait accompli”, qualquer solução dada à questão certamente implica lidar com uma saída que traga algum aspecto ilegal, inconstitucional, ou no mínimo inconsistente com a moralidade administrativa.
É o que se verificou com a edição da Lei Complementar nº 160/2017. Apesar de seu louvável intento de normatizar os benefícios concedidos, não apenar os atores privados por débitos em razão da inconstitucionalidade desses benefícios e, por fim, estabelecer um prazo para o fim da guerra fiscal, acabou por convalidar abomináveis práticas administrativas.
Qual a consequência da generalização dessas condutas? Entre tantas outras, na classificação das economias relativa à facilidade de fazer negócios, efetuada pelo Banco Mundial, o Brasil está na 125º posição entre 190 países. No que se refere à facilidade para o pagamento de impostos, amarga a 184º posição. A reciprocidade entre concessão de benefícios ilegais e retaliações leva os Estados federados a se revezarem na posição de perdedores e de ganhadores em um jogo de soma zero.
As eleições gerais de 2018 oxalá possam ajudar a conduzir à solução desses impasses. Os agentes políticos que forem escolhidos devem ter como prioridade a reforma tributária, especialmente no que se refere aos impostos sobre o consumo e à relação entre os Estados Federados. A sociedade brasileira deve, entretanto, ter em mente que o aperfeiçoamento da federação não será fácil e deixará traumas, mas é o único caminho a ser seguido.
Por Rogério Gaspari Coelho
Rogério Gaspari Coelho é advogado de Machado Associados
Fonte : Valor-10/08/2018