Apesar da importância da lei, o que temos presenciado com julgamentos pelo STF é um aviltamento do instituto.
A Constituição Federal tratou de estabelecer os principais contornos ao sistema tributário nacional, de modo que, dentre os princípios resguardados pela Carta Magna brasileira para regular a tributação, encontra-se o da lei complementar tributária.
A principal lei complementar tributária vigente no Brasil é o Código Tributário Nacional (CTN), que dispõe pormenorizadamente acerca do sistema tributário nacional, tratando sobre regras gerais de direito tributário, “aplicáveis à União, Estados e municípios” (conforme reza a sua ementa).
Apesar da importância da lei, o que temos presenciado com julgamentos pelo STF é um aviltamento do instituto.
Para além do CTN, dentre outras, temos, por exemplo, a Lei Complementar (LC) nº 87 (conhecida como Lei Kandir), de 1996, contendo regras gerais para a tributação estadual pelo ICMS. De outro bordo, regulando a tributação municipal pelo ISS, temos a LC nº 116, de 2003.
A rigidez para a aprovação da lei complementar pelo Congresso Nacional (maioria absoluta) explica sua eleição pelo constituinte para tratar de questões tributárias, por ser um instituto de cunho nacional que impõe balizas à atuação de todos os entes federados no exercício de suas respectivas competências, de modo a preservar um equilíbrio mínimo necessário ao pacto federativo.
Apesar da importância da figura dessa lei tributária nacional, o que temos presenciado com os recentes julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é um aviltamento do instituto, com a sua indevida relativização, dando espaço ao arbítrio por parte dos legisladores ordinários, em todos os níveis da federação.
O primeiro julgamento que merece crítica é aquele ocorrido no Plenário do STF, por maioria de votos sob o rito da repercussão geral, nos autos do RE 1221330. Julgou-se que seria constitucional lei ordinária editada pelo Estado de São Paulo que instituiu a cobrança de ICMS sobre importação realizada por não contribuinte, após a edição da Emenda Constitucional (EC) nº 33, de 2001, que permitiu tal cobrança, mas antes da edição da LC nº 114, de 2002, que regulamentou a questão.
A tese acolhida pela Corte para não declarar a lei estadual inconstitucional se cinge na ideia de que os Estados possuiriam uma competência concorrente à da União Federal para tratar de direito tributário, de modo que a morosidade do Congresso Nacional não poderia prejudicar a tributação estadual. Assim decidiu-se que, mesmo sem suporte de lei complementar, a lei ordinária estadual seria formalmente válida, apenas tendo a sua eficácia suspensa até o advento da LC nº 114, de 2002.
Tal linha adotada pelo STF contraria a lógica do nosso ordenamento jurídico, que não permite a convalidação superveniente de norma jurídica que nasce, em sua origem, eivada de inconstitucionalidade formal. No julgamento, o STF relativizou de forma abstrusa diversos institutos, confundindo a condição constitucional de validade formal (no caso, a exigência da Constituição Federal de 1988 por lei complementar tributária que regule a questão), com uma mera condição de eficácia.
A bem da verdade, a razão para se manter a validade da lei do Estado de São Paulo (apenas suspendendo a sua eficácia até a edição da LC nº 112, de 2002) deu-se por um motivo não jurídico, mas consequencialista. Explica-se: caso fosse declarada a inconstitucionalidade da lei estadual, os cofres públicos sofreriam com uma enxurrada de ações de repetição de indébito por parte dos contribuintes (tal motivo fica claro após uma atenta leitura dos votos que compuseram o acórdão).
Outro caso que também põe em debate a força da lei complementar tributária é o ARE 1237351, pendente de julgamento pelo Plenário do STF, que decidirá a validade da cobrança do ICMS/Difal previsto na Constituição após a EC nº 87, de 2015. Isso porque, mesmo sem a existência de lei complementar que regule a exigência, diversos Estados já possuem leis estaduais instituindo a sua cobrança.
O julgamento iniciou-se bem, com voto favorável aos contribuintes, proferido pelo relator, ministro Marco Aurélio, que acentuou a imprescindibilidade da lei complementar para a instituição do ICMS/Difal. Após o ministro Dias Toffoli acompanhar o relator, o julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Nunes Marques.
Outro caso preocupante é o RE 851108, no qual se discute a (in)constitucionalidade das leis estaduais que instituem, sem suporte de lei complementar, o ITCMD sobre doação realizada por doador residente ou domiciliado no exterior, ou sobre herança de bens localizados no exterior, deixados por “de cujus” que tinha residência ou domicílio no exterior, ou que o inventário tenha sido processado no exterior.
Os contribuintes defendem a inconstitucionalidade da cobrança por lei estadual, sem a prévia edição de lei complementar. Já as Fazendas Estaduais defendem que os Estados e o Distrito Federal teriam competência concorrente para instituir a cobrança, na ausência de lei complementar.
O relator do caso, ministro Dias Toffoli, já proferiu seu voto (acompanhado pelo ministro Edson Fachin), no sentido de que seria inconstitucional essa cobrança na ausência de lei complementar. Entretanto, sem fundamentos plausíveis, propôs a modulação dos efeitos dessa declaração de inconstitucionalidade, apenas para fatos geradores ocorridos após o julgamento, que ainda não foi concluído, diante do pedido de vista pelo ministro Alexandre de Moraes.
O que nos resta é aguardar o desfecho desses casos ainda pendentes, vigilantes para que o princípio constitucional da lei complementar seja preservado, bem como para que o instituto da modulação dos efeitos não seja utilizado de forma desvirtuada, para sublimar as violações a esse veículo normativo essencial à federação.
Valor Econômico – Por Caio Malpighi, 30 de novembro de 2020.