A eleição do atual presidente da República trouxe para a arena política a pauta previdenciária, cujos debates iniciados no governo anterior converteram-se em um texto que deverá ser votado ainda no primeiro semestre deste ano.
Paralelamente, a premência de equilíbrio das contas públicas, a crise financeira dos estados e municípios e a desaceleração da economia impulsionaram o ressurgimento da discussão sobre a necessidade de uma reforma do sistema tributário nacional. Obviamente, complexidade, burocracia, insegurança jurídica e o percentual da carga tributária que incide sobre o PIB são fatores que, somados aos primeiros, contribuem sobremaneira para tornar o assunto interesse de primeira urgência.
Evidências apontam que, após votação da reforma previdenciária, a atenção estará voltada para a reforma do sistema tributário. Neste contexto, discorreremos brevemente sobre o status das quatro principais iniciativas em voga, dos pontos (positivos e/ou negativos) mais importantes de cada uma delas e sobre algumas reflexões que podem fomentar os debates sobre a matéria.
A primeira proposta, a PEC 293/2004, do ex-deputado Luiz Carlos Hauly, contempla a criação de dois tributos: IBS (Imposto com Operações sobre Bens e Serviços) e um imposto seletivo monofásico sobre petróleo, derivados combustíveis, lubrificantes, cigarros, energia elétrica, telecomunicações, bebidas e veículos automotores. Extingue IPI, IOF, CSLL, PIS/Pasep, Cofins, salário-educação, ICMS, Cide-combustíveis e ISS. Incorporaria a CSLL ao IRPJ. Embora possua aspectos positivos como o creditamento amplo, eliminação de tributos cumulativos, simplificação e transparência, a tramitação da iniciativa encontra-se parada desde o ano passado na Câmara dos Deputados.
A PEC 45/2019, de autoria do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), aprovada pela CCJ na Câmara dos Deputados no dia 22 de junho, tem como texto-base o projeto elaborado pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) e pelo seu diretor, o economista Bernard Appy. A ementa da proposta deixa claro que o objetivo é tão somente a “alteração do sistema tributário” através da substituição de cinco tributos (PIS/Cofins, IPI, ICMS, Pasep e ISS) por um único imposto — IBS.
As principais críticas enfrentadas pela PEC 45/2019 dizem respeito: i) ofensa ao pacto federativo — entendida a competência tributária como inerente a autonomia federativa (embora essa posição não seja unânime na doutrina[1]; ii) concentração de competência na União (que poderá modelar o tributo por meio de lei complementar); iii) manutenção da carga tributária; iv) ampla base de hipótese de incidência do IBS (não discriminação do que estaria contemplado em “bens e serviços”); v) adoção do sistema tributário regressivo em detrimento do princípio constitucional da capacidade contributiva do contribuinte; e vi) reforma tributária pontual relativa aos impostos sobre o consumo.
Superadas essas questões, a proposta tem como objetivos principais: a) recuperar a base tributária; b) restaurar a observância do princípio da não cumulatividade, pois prevê a ampla e imediata dedução dos créditos; c) simplificar e uniformizar as alíquotas; c) eliminar as isenções e privilégios tributários concedidos de forma contrária à lei.
Fato incontroverso é que os impostos sobre o consumo oneram a atividade econômica, independente do resultado positivo ou negativo, além do mais, representam custos que são transferidos para o preço final das mercadorias ou serviços. Portanto, a PEC 45/2019 se mostra, a priori, capaz de resolver este efeito colateral, entretanto, enfrenta fortes objeções do ponto de vista da justiça tributária e da manutenção do pacto federativo.
A terceira proposta (ainda não enviada ao Congresso Nacional) está sendo discutida pelo secretário da Receita Federal, Marcos Cintra. Em linha gerais, o objetivo seria criar um imposto sobre movimentação financeira (IMF) para substituir alguns tributos federais reduzindo assim o custo trabalhista, o que aumentaria a geração de empregos. A adoção deste modelo poderia gerar algumas vantagens como: i) redução do custo de conformidade; ii) facilidade de fiscalização e arrecadação; e iii) diminuição dos custos relativos as contribuições acessórias.
A par da existência da discussão e das propostas e iniciativas acima identificadas, foi instalada, em março, a Frente Parlamentar Mista da Reforma Tributária na Câmara dos Deputados, liderada pelo deputado federal Luis Miranda (DEM-DF), cujo principal objetivo é apresentar sugestões para uma reforma que contemple todo o sistema tributário nacional.
Esta iniciativa, amparada pelos estudos realizados pela Associação Nacional dos Auditores da Receita Federal (Anfip) e pela Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), tem como premissa a necessidade de uma reforma tributária baseada na justiça fiscal.
Não há dúvida de que uma boa reforma tributária deve ser global, contemplando todo o sistema, tanto do ponto de vista racional quanto democrático. No entanto, é uma quimera defender a redução da carga tributária de forma drástica[2], sem antes volver os olhos para a maior conquista cidadã dos últimos anos, a Constituição Federal de 1988. Na Carta estão insculpidas garantias irrenunciáveis, direitos que não comportam flexibilização e, também, deveres inescusáveis. Em síntese, é utopia partir de uma discussão sobre a carga tributária “desejável” sem observar a responsabilidade do Estado plasmada na Constituição.
Dito isto, liberdade, desenvolvimento, igualdade e justiça são valores supremos que devem nortear qualquer reformulação do sistema tributário brasileiro, o que torna inadmissível qualquer proposta que não contemple a redução da carga tributária dos impostos sobre consumo e, em contrapartida, a elevação da tributação das grandes riquezas.
Nesse sentido, é salutar examinar alguns dados que integram o relatório produzido pela Anfip e Fenafisco[3], cujo conteúdo, produzido a partir de estudos e diagnósticos conduzidos por professores universitários, técnicos e especialistas em tributação, pode fomentar a reflexão acerca das propostas de reforma que estão em andamento na Câmara dos Deputados.
As conclusões do relatório supramencionado são categóricas e indicam que a reforma tributária deve: a) efetivar a progressividade da tributação pela ampliação dos tributos incidentes sobre renda e patrimônio; b) implementar a progressividade pela redução da tributação que incide sobre o consumo; c) fortalecer as bases do equilíbrio federativo; c) aperfeiçoar a tributação sobre o comércio internacional; d) não resultar em aumento da carga tributária, mas fomentar ações que resultem em aumento das receitas etc.
Atualmente no Brasil há um ponto em comum nos debates que ocorrem entre àqueles que estão profundamente interessados na realização de uma reforma tributária, sejam pesquisadores, instituições acadêmicas, civis ou industriais: o sistema tributário brasileiro constituí óbice ao desenvolvimento social e econômico, portanto, deve ser reformulado. Outrossim, parte das soluções, por vezes bem-intencionadas, ao defenderem interesses setoriais ou apenas arrecadatórios se tornam incompatíveis entre si ou de difícil adequação por ofender cláusulas pétreas constitucionais. O que antes de ser um problema é uma excelente oportunidade para que os fundamentos e a motivação das propostas sejam trazidos a lume e apreciados pela sociedade.
Assunto importante que vem sendo destacado pela doutrina e por alguns especialistas é a necessidade de que as propostas de reforma tributária incluam hipóteses de tributação de riquezas produzidas por empresas cujo patrimônio é constituído através da operação digital. É factível que os intangíveis estão passando à margem da tributação.
A síntese das principais iniciativas sobre reforma tributária brasileira atualmente discutidas demonstra que o momento para iniciar a reformulação do sistema é ótimo. Os atores envolvidos, além de tecnicamente capacitados e embasados cientificamente, estão realmente empenhados e comprometidos com a reforma; mas não apenas isso, o Parlamento e Executivo estão sinalizando, cada um a seu modo, que a reforma tributária entrará na ordem do dia.
Uma das principais preocupações, embora esteja perdendo força na medida em que as discussões avançam, está relacionada à aprovação de uma reforma pontual, o que culminaria na impossibilidade de aprofundamento de temas ligados a justiça fiscal realmente urgentes. Contexto em que a emenda poderia sair pior do que o soneto.
Do ponto de vista democrático, a melhor alternativa seria a unificação das propostas e iniciativas acima identificadas (e, talvez de algumas vindouras), haja vista que submetidas ao crivo do debate crítico podem resultar em uma boa PEC que resolveria, além de algumas discrepâncias do sistema tributário, os anseios do setor industrial, comercial e produtivo e restaria alinhada ao Estado Democrático de Direito.
[1] Admissibilidade da proposta já analisada na audiência pública na Câmara dos Deputados no dia 22 de maio. Na ocasião, Ricardo Lodi Ribeiro se manifestou pela inconstitucionalidade da proposta, em sentido contrário se posicionaram Eduardo Maneira, Alexandre Tortato e Demetrius Nichele Macei.
[2] O plano fiscal implementado pelo presidente Donald Trump reduziu a alíquota do imposto corporativo pago nos EUA de 35% para 21% a partir de dezembro de 2017. <https://www.thebalance.com/trump-s-tax-plan-how-it-affects-you-4113968>. Acesso em 25/6/2019.
[3] <http://plataformapoliticasocial.com.br/wp-content/uploads/2018/05/REFORMA-TRIBUTARIA-SOLIDARIA.pdf>. Acesso em 25/6/2019. Relatório disponível na íntegra.
Por Aline Cardoso de Faria
Aline Cardoso de Faria é advogada, doutoranda em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela mesma instituição. Membro da Comissão de Reforma Tributária do Estado do Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 13 de julho de 2019.