Em alguns casos, por ausência de previsão legal, a RFB acaba por aplicar a pena administrativa mais gravosa existente.
O comércio exterior responde por cerca de 25% do PIB brasileiro. Apesar disso, diversos são os desafios enfrentados pelos empresários que atuam no setor especialmente em razão da complexa legislação que o regulamenta.
De fato, do lado dos empresários, o pleito é pela necessidade de maior segurança jurídica e mais assertividade na aplicação das normas existentes. Já pelo lado da Receita Federal do Brasil (RFB), existe uma preocupação – louvável, por sinal – no sentido de se exercer um controle aduaneiro eficiente, que permita igualdade concorrencial e impeça a entrada ilegal de mercadorias no país.
Em alguns casos, por ausência de previsão legal, a RFB acaba por aplicar a pena administrativa mais gravosa existente.
No contexto da insegurança jurídica, um avanço foi a revogação, em 2020, de 122 instruções normativas editadas pela RFB, que tratavam de matéria aduaneira e que não eram mais utilizadas, apesar de ainda em vigor. A última vez que uma simplificação como essa ocorreu em matéria aduaneira foi em 2001.
Apesar dessa revogação, ainda estão em vigor outras 264 instruções normativas que regulamentam o tema no âmbito federal. Somando-se a essas instruções normativas todos os demais atos normativos editados pelo governo federal, temos um emaranhado legislativo que cria obstáculos ao pleno desenvolvimento do setor e gera insegurança jurídica e litígios.
O que se nota, em visão bem objetiva, é que o aumento da participação do Brasil no comércio exterior e o incremento da complexidade das operações não foram acompanhados pela legislação, que foi emendada diversas vezes apenas para se tentar solucionar situações pontuais, mas sem uma releitura estrutural da legislação. Logo, apesar dos diversos atos normativos regulando o comércio exterior, estes, por si só, não foram capazes de abordar todas as situações de ordem prática vivenciadas pelos contribuintes.
A consequência disso é o crescimento de litígios envolvendo o comércio exterior e a aplicação em larga escala de multas aduaneiras pela RFB. Essas multas, muitas vezes, são aplicadas para punir operações absolutamente lícitas, legítimas e existentes – tanto com relação à forma, quanto no que tange ao conteúdo econômico -, mas que não estão expressamente reguladas pela legislação aduaneira.
Apesar de a sociedade brasileira, por meio de sua Constituição Federal, estar baseada nos princípios da legalidade e da livre iniciativa, a RFB, em alguns casos, sob o argumento de agir em prol do controle aduaneiro, acaba por inverter essa lógica e por punir o contribuinte, simplesmente porque a legislação aduaneira não foi aperfeiçoada no mesmo ritmo do avanço do setor.
Ou seja, em alguns casos, por ausência de previsão legal, a RFB acaba por aplicar apena administrativa mais gravosa existente – a pena de perdimento -, que envolve a expropriação dos bens comercializados ou a sua multa pecuniária substitutiva, no valor de 100% das mercadorias envolvidas na operação. Essa multa é, por exemplo, aplicada em casos de acusação de interposição de terceiro na operação de comércio exterior, com emprego de fraude ou simulação, quando se tem por intuito ocultar o real destinatário das mercadorias.
No entanto, a existência de um terceiro nas operações mais complexas pode sim se justificar com base em reais motivações econômicas, tais como proteção contra variação cambial ou melhoria da eficiência logística. A simples interposição de terceiro na operação não pode ser considerada como indício de fraude ou simulação. É claro que o elemento mais importante, e que deve prevalecer sempre, a justificar a imposição de multa tão grave, é a efetiva prova da existência da fraude ou da simulação, com o propósito específico de se desejar ocultar o verdadeiro destinatário dos bens. E isso às vezes fica em segundo plano, por mais incrível que pareça.
Em muitos dos casos, a RFB tenta justificar a acusação de fraude alegando que determinadas operações são pensadas com o objetivo de redução de carga tributária. Ora, é claro que, nesses casos, o ônus da prova deveria caber ao Fisco e eventual ausência de recolhimento de tributos deve ser punida com a sua cobrança, mas nunca com a aplicação de uma multa que supera, e muito, o próprio valor do tributo envolvido. Essa multa de perdimento, convolada em pena pecuniária, que deveria estar relacionada unicamente a questões de controle aduaneiro, acabou se transformando em multa tributária, arrecadatória e confiscatória, o que não se pode admitir.
É por essas e outras que urge a necessidade de aperfeiçoamento da legislação, especialmente a que trata de casos de interposição fraudulenta, para se ter maior clareza sobre o que pode, ou não, ser objeto de punição por parte da RFB, bem como para se impedir que suposta infração tributária, como a ausência de pagamento de tributo, gere uma penalidade aduaneira de valores exorbitantes.
A conclusão a que se chega é a de que a atuação da RFB é legítima e deve ser incentivada quando busca a proteção de ambiente concorrencial justo, por meio do efetivo controle aduaneiro. Contudo, essa atuação não pode impedir o desenvolvimento de operações comerciais mais complexas, porém lícitas e legítimas, sob pena de se engessar o dinamismo das operações de comércio exterior e fazer com que o Brasil perca competitividade no cenário internacional. Portanto, essa também é a hora de se atualizar a legislação aduaneira. O país agradece.
FONTE: Valor Econômico – Por Carlos Henrique Bechara e Felipe Bernardelli – 20 de agosto de 2020