Temas como aplicação de precedentes judiciais e guerra fiscal ainda precisam ser pacificados pelo tribunal.
Durante o ano de 2019 foram publicados mais de 700 acórdãos relativos a julgamentos de recursos especiais pela Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas (TIT). Tais julgados foram objeto de acompanhamento, de análise e de artigos elaborados durante a 2ª fase do Observatório de Jurisprudência do TIT, por ilustres pesquisadores – juízes do TIT e experientes advogados tributaristas atuantes no âmbito do processo administrativo paulista.
Dentre os principais temas apreciados em 2019, destacam-se os seguintes:
- “Guerra fiscal”: refere-se a discussões decorrentes da concessão de benefícios fiscais do ICMS pelos Estados e pelo Distrito Federal, sem a autorização unânime no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ). Na 1ª fase do Observatório do TIT, notou-se, da análise dos julgados do TIT proferidos entre 01/08/2009 e 31/05/2017, entendimento pela legalidade da cobrança da parcela do ICMS desonerada no Estado de origem, tendo sido editada, a Súmula nº 11/2017, que dispõe ser legítima a glosa da parcela dos créditos de ICMS relativa a benefícios fiscais concedidos irregularmente pelo Estado de origem, na hipótese de transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular. Na 2ª fase do Observatório, que se ateve aos julgados publicados durante o ano de 2019, observou-se a falta de análise quanto à remissão e anistia previstas na Lei Complementar nº 160/2017 e no Convênio ICMS nº 190/2017, sob o argumento de que o contribuinte não teria desistido da discussão ou por considerar ausentes os requisitos previstos na mencionada legislação – muito embora os Estados tenham cumprido todas as formalidades exigidas ou estejam dentro prazo para cumpri-las. Desta forma, ao menos por enquanto, a Câmara Superior do TIT tem optado pelo prosseguimento do julgamento quanto ao mérito, mantendo as autuações fiscais com base na jurisprudência até então firmada sobre “guerra fiscal”. No entanto, o tema ainda está em aberto, tendo em vista os recentes procedimentos estabelecidos para reconhecimento dos créditos.
- Direito ao crédito de ICMS: sem dúvida, o subtema mais julgado relativo ao direito ao crédito de ICMS diz respeito aos casos em que a glosa é fundamentada nas aquisições de fornecedor declarado inidôneo, quase sempre de forma posterior às operações, e cujos efeitos foram aplicados retroativamente. A boa-fé do adquirente tem sido relativizada através da exigência ampliada de requisitos para a sua comprovação. Analisando-se comparativamente os acórdãos que trataram do direito ao crédito de ICMS, nesse subtema e também em hipótese de aquisição de combustíveis utilizados em veículos de terceiros subcontratados para a realização da atividade-fim da empresa, verificou-se a incongruência entre os julgados do TIT, na maior parte desfavoráveis aos contribuintes e em sentido inverso à jurisprudência predominante no TJ/SP e nos Tribunais Superiores sobre tal matéria. O cenário revela insegurança jurídica, além de ocasionar o movimento da máquina judicial para a anulação das autuações lavradas, em desprestígio ao princípio da economia processual.
Em análise dos precedentes que versaram sobre crédito indevido de ICMS decorrente da aquisição de mercadorias consideradas como de uso e consumo, em especial quando se trata de aquisição de sacos e sacolas plásticas por estabelecimentos varejistas, verificou-se que o entendimento consolidado pela SEFAZ/SP em Respostas de Consultas (ex.: 4867/2015, 15659/2017 e 18267/2018), até então favorável aos contribuintes, passou por abrupta alteração de orientação em respostas subsequentes, resultando na Decisão Normativa CAT nº 4, de 30/05/2019, que veda o crédito. Nos julgados, o TIT vem reconhecendo a legitimidade dos créditos relativos a fatos anteriores à modificação do entendimento da SEFAZ, e, para os fatos posteriores, provavelmente será mantida a glosa dos créditos, seguindo o atual entendimento acerca da matéria.
- Aplicabilidade de precedentes dos Tribunais Superiores: a jurisprudência do TIT ainda oscila bastante quanto ao reconhecimento de decisões judiciais consolidadas. Em geral, a Câmara Superior tem aplicado a jurisprudência emanada pelos Tribunais Superiores em casos que considerou não haver legislação estadual específica; e, havendo disposição legal que se julgue contrária ao entendimento jurisprudencial, esta tem prevalecido, sob o argumento de que a sua desconsideração violaria ao artigo 28 da Lei nº 13.457/2009. Acerca da aplicação dos precedentes Judiciais, nas análises efetuadas durante a 2ª fase do Observatório do TIT, destacaram-se os seguintes julgados/subtemas:
(i) Erro na eleição do sujeito passivo da infração, na hipótese de a pessoa jurídica ter sido extinta regularmente antes da lavratura do AIIM: recentes julgamentos reformaram decisões ordinárias favoráveis ao contribuinte e mantiveram os autos de infração, indo de encontro à jurisprudência firmada no âmbito judicial. Tal posicionamento certamente acarretará ônus à Fazenda Pública, pois, uma vez extinta a execução por erro na eleição do sujeito passivo, não poderá a Fazenda Pública ingressar com execução fiscal contra o efetivo devedor, se já decorrido o tempo decadencial, por se tratar de erro material e não formal do título (CDA), conforme estabelecido nos julgados que serviram de base para a edição da própria Súmula 392 do STJ;
(ii) ICMS no transporte de mercadorias destinadas ao exterior: entendimento contrário do TIT ao firmado pelo STJ há mais de 10 anos, e que continua sendo aplicado atualmente, no sentido de que não incide ICMS sobre operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias;
(iii) ICMS na importação de bens por entidade de assistência social: reconhecida a competência do Tribunal Administrativo para a apreciação de normas constitucionais, especialmente quando se trata de auto de infração (e não pedido de isenção ou aplicação da imunidade), bem como a impossibilidade da cobrança do ICMS nas importações de bens realizadas por instituições de assistência social sem fins lucrativos, vinculados às suas finalidades essenciais, cancelando definitivamente a cobrança constituída ao arrepio da legislação e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca dos requisitos para fruição da imunidade tributária;
- A vedação ao reexame de provas pela Câmara Superior: dos recursos especiais interpostos pelo contribuinte, somente 8% foram conhecidos e providos, ao passo que dos recursos interpostos pela Fazenda, 66% foram conhecidos e providos para restabelecer a infração. Um dos temas mais recorrentes é relativo ao crédito indevido onde não se comprova a boa-fé, que deveria ser visto a partir da verdade estabelecida na decisão do Recurso Ordinário, e que, portanto, não poderia ser alterada no Recurso Especial. Nesse passo, o artigo “A Câmara Superior como instância de estabilização” analisa precedentes em que não foram conhecidos Recursos Especiais pela ausência de pressupostos de admissibilidade, discutindo acerca do papel do Pleno na estabilização do processo administrativo, do cuidado necessário na análise dos paradigmas e da perigosa revisitação das matérias de fato.
- Concomitância entre demandas administrativas e judiciais: verificadas as divergências entre Câmaras Julgadoras e Câmara Superior quanto aos efeitos e procedimentos após o reconhecimento da concomitância, resultando em decisões que ora cancelaram o AIIM, ora o mantiveram, o que leva a crer que, mesmo que em menor escala, o tema ainda permanecerá nas pautas do TIT.
- Decadência e o pagamento parcial: ao analisar caso envolvendo o não recolhimento do ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa, dando provimento ao recurso especial do contribuinte, a Câmara Superior reacendeu discussão envolvendo contagem de prazo decadencial, admitindo mais um caso de aplicação do art. 150, parágrafo 4º, do CTN, sem que tenha havido o pagamento antecipado do tributo – fundamento anteriormente já aplicado para as hipóteses de (i) lançamento do ITCMD; (ii) ICMS exigido por meio de guia especial; e (iii) falta de pagamento do imposto na qualidade de substituto tributário.
- Moderação Sancionatória: verificou-se que a Câmara Superior tem adotado um posicionamento mais homogêneo em relação a (i) situações de anulação da decisão recorrida, por falta de fundamentação dos requisitos dos “antecedentes fiscais” e “porte econômico”; (ii) necessidade de peticionamento para aplicação do artigo 527-A do RICMS; (iii) interpretação do requisito de “falta de pagamento do imposto” previsto no artigo 527-A do RICMS, e que deve nortear os próximos julgamentos de primeira e segunda instâncias julgadoras, de maneira a uniformizar a jurisprudência do Contencioso Administrativo Tributário paulista. Acerca do subtema Recapitulação de Penalidade, a Câmara Superior reclassificou e reduziu a multa de 100% do valor da operação para 20 UFESP por documento, aplicada por discrepâncias entre NFe e DANFE, impondo como critério a não alteração do destinatário e do valor total da operação. No que tange ao Princípio da Consunção/Absorção de Multas, tem sido vencedora no TIT a posição de que a conduta ilícita mais grave deve absorver a de menor gravidade, não sendo possível penalizar o contribuinte duas vezes. Porém, em 2019, a Câmara Superior afastou a aplicação do princípio por entender que no caso analisado havia autonomia dos estabelecimentos da mesma pessoa jurídica.
- Nulidades do lançamento fiscal: decidiu-se que a descrição incompleta e incongruente da infração implica cerceamento de defesa e vício insanável no ato administrativo, por falta de liquidez e certeza do crédito tributário e violação ao art. 142 do CTN.
- Responsabilidade Tributária: dentre os julgamentos acerca do tema, destaca-se, novamente, aqueles analisados sob o foco da responsabilidade do adquirente em operações inidôneas, inclusive a responsabilidade atribuída de forma solidária, considerada válida a aplicação da presunção absoluta de interesse comum, de forma equiparada às operações desacompanhadas de documento fiscal, independentemente da individualização da conduta. Outro subtema que merece atenção é relativo à responsabilização solidária do tomador de serviços de comunicação, adotada de forma objetiva pela Câmara Superior, em afronta à jurisprudência do STJ acerca da interpretação do art. 124, I, do CTN e da responsabilidade do adquirente de boa-fé.
Dentre outros importantes temas visitados, destaca-se também a análise acerca da incidência do ICMS nas operações de armazenagem de combustível. A exemplo dos precedentes analisados na 1ª fase, grande parte das autuações decorrem da inobservância de obrigações acessórias por parte dos depositantes ou do Armazém Geral, tendo sido identificadas interpretações restritivas, afastando-se a regra de não incidência do ICMS, ainda que o erro cometido pelo contribuinte não tenha implicado prejuízo efetivo ao Estado. Na 2ª fase do Observatório, destaca-se julgado em que a Câmara Superior considerou necessário que a pessoa jurídica que exerça atividade de armazém geral o faça de maneira exclusiva, sem a possibilidade de que tenha, ainda que apenas formalmente, outro objeto social, em especial atividade comercial (muito embora a legislação não imponha expressamente tal condição), como também que o contribuinte comprove que cumpre, além dos requisitos exigidos para a atividade de armazenamento, também aqueles estipulados por órgão regulador responsável pela atividade exercida, se for o caso.
Conclusão:
A análise realizada na 2ª fase do Observatório do TIT aponta para temas que ainda carecem de pacificação ou de apreciação mais aprofundada e adequada em âmbito administrativo, como é o caso das discussões acerca da aplicação de precedentes judiciais, da guerra fiscal (especialmente com o retorno dos processos analisados sob égide dos procedimentos instituídos pela Resolução Conjunta SFP/PGE nº 01, de 07 de maio de 2019), dos requisitos para comprovação da boa-fé do contribuinte adquirente de mercadorias, do reconhecimento da decadência, dos créditos nas diversas hipóteses albergadas pela legislação e pelo dinamismo das operações praticadas, dentre outras matérias.
O mapeamento realizado tem sua importância não apenas para a formação de repertório de precedentes, mas na constante busca pela construção de uma jurisprudência comprometida com o rigor da análise casuística dos fatos, devidamente esgotada no decorrer do processo administrativo, e, sobretudo, da aplicação dos princípios basilares do Direito, em especial o da segurança jurídica.
No próximo biênio (2020/2021), os debates ocorrerão sob novos olhares, tendo em vista a mudança de composição das Câmaras Julgadoras do TIT – renovação que, ainda que parcial, espera-se que seja positiva.
Jota – Por Grupo De Pesquisa Sobre Jurisprudência do TIT do NEF/FGV Direito SP – 10 de janeiro de 2020.