Quando é possível à Câmara Superior do TIT avaliar a boa-fé nos casos de crédito Indevido?
No âmbito da segunda fase do Projeto “Observatório de Jurisprudência do TIT/SP, analisamos 15 acórdãos publicados no período de 28/10/2019 a 08/11/2019 proferidos pela Câmara Superior, a seguir resumidos, sob a análise do tema que escrevemos:
- 07 acórdãos em que não houve análise de mérito, em decorrência do não conhecimento dos respectivos recursos especiais por ausência dos pressupostos de admissibilidade (AIIMs n.º 4019747-5, 4108414-7, 4110674-0, 4050998-9, 4101126-0, 4038672-7 e 4048694-1), sendo que destes, 6 acórdãos se referem a Recurso Especial interposto pelo contribuinte.
- 3 acórdãos onde o Recurso Especial não foi conhecido, porém, o mérito foi analisado (AIIMs nº 4112139-9, 4108842-6 e 4032918-5).
- 3 acórdãos onde o Recurso Especial foi conhecido e provido, sendo que 2 são recursos da Fazenda e o AIIM foi restabelecido e somente 1 do contribuinte que se reconheceu a decadência.
É sobre a possibilidade técnica da Câmara Superior do TIT avaliar a boa-fé nos casos de acusação de crédito indevido que passamos a tratar adiante.
Da análise dos casos
Pela análise de cada caso pode-se notar o seguinte:
- Há casos tradicionais onde se peca justamente nos paradigmas, como o do auto de infração (AIIM) n.º 4108414-7. No tocante à alegação de decadência parcial, o recurso não pode ser conhecido porque no acórdão trazido a cotejo prevaleceu o entendimento de que se aplica, para contagem do prazo decadencial, o artigo 173, inciso I, do Código Tributário Nacional, mesma compreensão adotada pelo acórdão recorrido, ausente a divergência necessária para viabilizar o conhecimento do especial. O paradigma trazido a confrontação cuida de outra situação, na qual teria havido devolução das mercadorias pelo destinatário, a indicar que, ante as diferenças entre os substratos fáticos dos casos confrontados, não se pode identificar divergência interpretativa sobre o alcance da legislação de regência, resultando ausente requisito indispensável ao conhecimento do recurso especial;
- Dos 15 acórdãos, 12 se referem a Recurso Especial interposto pelo contribuinte e destes, somente 1 foi totalmente conhecido e provido, é o caso do AIIM nº 4024149-0, cujos arestos lançados como paradigmas atingiram o fim pretendido, e, portanto, o recurso foi conhecido. Ainda foi provido para se reconhecer a decadência de julho a dezembro de 2007;
- Dos 3 recursos interpostos pela Fazenda, 2 foram conhecidos e providos para restabelecer o AIIM, são eles os AIIM’s 4037255-8 (em razão da ausência de boa-fé) e o 4050988-9 (que indiretamente ao ser analisado o mérito, concluiu por restabelecer o lançamento exordial, haja vista que os serviços suplementares de telecomunicação estão englobados pelo serviço telefônico fixo comutado);
- Há também acórdãos dos Recursos Especiais interpostos pelo contribuinte, que não foram conhecidos, mas o mérito foi analisado, citando como exemplo, o AIIM nº 4112139-9 em que o aresto indicado não se prestava como paradigma, mas mesmo assim entendeu-se que não havia a decadência, porque o crédito foi realizado pelo contribuinte extemporaneamente, somente em GIA 2016.
Esses comentários superficiais apenas ilustram o conjunto dos julgamentos que analisei, preparando-me para adentrar num ponto que reputo fundamental quando se trata de matérias submetidas à Câmara Superior. Minha preocupação se assenta no fato de que, dos recursos especiais interpostos pelo contribuinte, somente 8% são conhecidos e providos, ao passo que dos recursos interpostos pela Fazenda, 66% são conhecidos e providos para restabelecer a infração original, sendo recorrente aquela relativa ao crédito indevido onde não se comprova a boa-fé e aí há um elemento importante a ser descortinado.
Da verdade dos fatos estabelecida na decisão ordinária
Em texto publicado, no site Migalhas, em fevereiro de 2013, a propósito da hermenêutica como fonte inesgotável de Justiça, Eudes Quintino de Oliveira Júnior escreveu o seguinte trecho:
“A lei vem expressa por palavras, nem sempre correspondendo à real intenção do legislador. A palavra, já advertia Maximiliano, é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias idéias, valores mais amplos e profundos dos que os resultantes da simples apreciação literal do texto.” (negritei)
Decorre que, se a sentença faz lei entre as partes – e é, portanto, lei – há de se aplicar para ela a mesma lição do doutrinador gaúcho, exigindo de quem a profere o melhor ato de inteligência e vontade que possa expressar, valendo-se de todas as técnicas, em especial, a persuasão racional (equiparo aqui, a decisão administrativa à sentença).
Mesmo assim, não é incomum (uma pena) de se ver depositado na sentença ou decisão frases de efeito e malabarismos verbais que tem apenas a intenção de acomodar um sentir próprio do julgador, dissociado do caso concreto.
Piero Calamandrei bem expressou esse fenômeno quando advertiu que o juiz possui, como o mago da fábula, o poder sobre-humano de fazer no mundo do direito as mais monstruosas metamorfoses e de dar às sombras a aparência de verdade, devendo a sentença e a verdade coincidirem, mas se a sentença não for inteiramente verdadeira, a verdade acaba por ser reduzida à medida da sua sentença. E é aí que mora o perigo.
É que quando um recurso chega à Câmara Superior, em tese, a verdade dos fatos da causa já está estabelecida na decisão do Recurso Ordinário e não cabe ao juiz relator (ou aos demais) alterar essa verdade como que querendo ajustá-la a sua subjetiva conclusão.
Isso tem acontecido quando o voto em discussão passa a avaliar a boa-fé sob o prisma das provas dos autos. Nesse caso, perscrutar sobre a boa-fé depende, necessariamente, de percorrer sobre o conjunto fático probatório apresentado e isso é vedado na fase do Recurso Especial.
Tomo como exemplo, o acórdão do AIIM nº 4037255-8 onde o recurso da Fazendo foi, em voto de vista, conhecido e provido ao argumento de que: “a não verificação da regularidade fiscal do emissor da documentação inidônea resta consolidado nos autos, o que impede o reconhecimento da denominada “Boa-Fé”.
Repare que essa posição, ali vencedora por maioria, modifica a verdade estabelecida no Recurso Ordinário, que já havia assentado a existência de boa-fé. A Fazenda recorreu justamente porque a acusação de crédito indevido fora cancelada, firme na existência de boa-fé. Bem por isso, não cabia ao juiz do voto condutor penetrar nesse âmago, porque necessariamente teve que analisar fatos e provas e isso não está nos lindes da sua competência. Pior, os demais juízes que o acompanharam também não se deram conta disso e ratificaram a posição.
Aliás, a bem verdade, nesse caso, o equívoco nasceu no próprio voto de relatoria que, vencido no conhecimento (inicialmente ele não conhecia e afirmo que estava certo) viu-se forçado a tratar do mérito, onde disparou:
“Vencido que fui, no mérito estou pelo desprovimento do apelo fazendário, forte em que continuo a ver caracterizada a “bona fides” do contribuinte acusado, consubstanciada nos procedimentos que assumiu e comprovou.
Temos como indisputável a entrada das mercadorias que ensejaram os créditos gerados (que não é negada pela própria Fiscalização), antecedidas pelos pedidos comerciais postos junto ao fornecedor e depois sucedidas pelos pagamentos feitos ao mesmo, em face das Notas Fiscais Eletrônicas por ele emitidas.
Tanto nos parece suficiente a caracterizar a boa-fé do recorrido, também considerando que o fornecedor tinha, no momento das operações, situações regulares junto à Receita Federal e à própria Fazenda do Estado, que validou a emissão das notas fiscais eletrônicas que acobertaram as transações.
Dai que, “de meritis”, estou pelo não provimento do apelo fiscal, por não vislumbrar a infração irrogada ao particular, na estreita esteira da Súmula 509 do Superior Tribunal de Justiça, que assevera “É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda”.
Percebe-se claramente, do trecho acima, que o relator se imiscuiu em analisar e tratar da matéria de fato e das provas. Não podia. Mas o fez, e provocou uma segunda expropriação jurídica disparada, agora, pelo revisor, cujo voto condutor acabou acoimado desse mesmo defeito capital.
Em suma, boa-fé é característica que decorre da avaliação do conjunto probatório e, em tese, não pode ser analisada – sob esse prisma – pela Câmara Superior. Repito que a verdade estabelecida na decisão do Recurso Ordinário não pode ser alterada no Recurso Especial.
E quando se pode avaliar a boa-fé, então? Quando sobre a mesma realidade factual pesaram duas decisões distintas. É o caso, por exemplo, mutatis mutandis, do acórdão do AIIM 4110674-0, onde o trecho abaixo bem ilustra o que defendo:
“22. A comprovação da regularidade do pagamento aliado a “outros elementos de prova” convenceram os julgadores no paradigmal AIIM nº 4.016.671-5 do reconhecimento da denominada “Boa-Fé”.
- Neste paradigmal a prova de pagamento fora suficiente à comprovação da regularidade operacional; no acórdão recorrido as provas de pagamento restaram insuficientes.
- A singularidade factual com relação às provas de pagamento entre paradigmal e acórdão recorrido impede o cotejo nesta seara em especial.
- Assim, fundamentado, NÃO CONHEÇO do RESP do particular em face do paradigmal AIIM nº 4.016.671-5.
Nota-se que o voto se limita a reconhecer a verdade fática já estabelecida em cada caso e concluir que são distintas, redundando no não conhecimento.
Em suma, a Câmara Superior pode e deve enveredar para a discussão sobre a existência de boa-fé do adquirente da mercadoria em operações com nota inidônea quando o Recurso Especial trouxer paradigma em que a mesma realidade fática mereceu uma conclusão distinta daquela havida na decisão recorrida, exemplo: i) ambos tem só o SINTEGRA; ii) ambos tem só prova de pagamento; iii) ambos tem SINTEGRA e prova de pagamento; iii) ambos tem SINTEGRA, prova de pagamento e conhecimento de transporte, etc. Enfim, em qualquer dos casos há de se admitir que “ambos tem” mesmas realidades factuais. Não havendo, é caso de não conhecimento.
Bem por isso que afirmei, alhures, que o REsp do AIIM nº 4037255-8 não merecia conhecimento, porque o evento paradigmal referia-se não à questão da busca no SINTEGRA da situação do fornecedor, mas ao fato de não terem sido indicados os transportadores das mercadorias envolvidas. Daí, para que o recurso da Fazenda fosse conhecido o que se fez? Aquilo que Calamandrei temia, pois se deu à sombra aparência de verdade e em detrimento da similitude factual, se disse que “…o relevante é o fato da negligência em ambos os processos (neste e no paradigmal) na não busca da situação jurídica de REGULARIDADE nos termos do item 4, §1º do artigo 36 da Lei 6.374/89. Com todo o respeito, isso foi um sofisma.
Conclusão
É conhecida a lição de Norberto Bobbio para quem o problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter (“A Era dos Direitos”).
O direito que se tem é aquele que deve constar nas decisões administrativas e judiciais, sem maiores elucubrações, arremedos ou inclinações de um tal “sentir” e sem invasão de competência. O direito que se gostaria de ter deve ser deixado, quando muito, para as petições e recursos das partes…se é que me entendem.
Jota – Por Grupo De Pesquisa Sobre Jurisprudência do TIT do NEF/FGV Direito SP – 13 de dezembro de 2019