No dia 14 deste mês, o STF concluiu o julgamento do RE 1.090.591/SC (DJE 14/5/2019), submetido ao regime de repercussão geral. O tribunal, por unanimidade, apreciando o Tema 1.042, conheceu do recurso extraordinário e deu-lhe provimento para, reformando o acórdão do TRF-4, entender compatível, com a Lei Maior, o condicionamento do desembaraço aduaneiro de mercadoria importada ao pagamento de diferença de tributos e multa decorrente de arbitramento implementado pela autoridade fiscal. Foi fixada a seguinte tese: “É constitucional vincular o despacho aduaneiro ao recolhimento de diferença tributária apurada mediante arbitramento da autoridade fiscal”. Não participou do julgamento o ministro Celso de Mello (Plenário. Sessão Virtual de 4/9/2020 a 14/9/2020. sessão iniciada na presidência do ministro Dias Toffoli e finalizada na presidência do ministro Luiz Fux).
O caso objeto do RE versa sobre retenção de mercadorias e exigência de recolhimento de tributos complementares e respectivas multas tributárias e, ainda, multa administrativa de 100%, ou prestação de garantia, como condição para o desembaraço aduaneiro. Em virtude de subfaturamento na operação de importação, as exigências da fiscalização aduaneira ao importador foram as seguintes: a) recolher a diferença de II e IPI; b) recolher a diferença de PIS/Cofins; c) recolher a multa administrativa de 100%, prevista no parágrafo único do artigo 88 da MP nº 2.158-35/2001 (diferença entre valor arbitrado e declarado com redução); e d) recolher a multa tributária de ofício de 150%, prevista no artigo 44, I, Lei nº 9.430/1996.
Analisando o conteúdo dos votos do relator, ministro Marco Aurélio, e do ministro Alexandre de Moraes, depreende-se que foi afastada a aplicação da Súmula 323 do STF ao caso, fazendo-se distinção do precedente que a gerou (RE 39.933), que tratava de hipótese em que a mercadoria transportada dentro do território nacional era apreendida para coagir o contribuinte a quitar seus débitos tributários, e no caso analisado, tratavam-se de exigências necessárias ao desembaraço aduaneiro.
O fundamento central para a tese firmada reside nos artigos 564, 570, e 571, §1º, do Decreto nº 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro), citados expressamente nos votos. Ainda, os dois votos invocaram o precedente do verbete Vinculante nº 48 daquela corte: “Não se tem coação indireta objetivando a quitação tributária, mas regra segundo a qual o recolhimento das diferenças fiscais é condição a ser satisfeita na introdução do bem no território nacional, sem o qual não se aperfeiçoa a importação”, bem como citaram o artigo 237 da Constituição Federal.
Esse entendimento põe fim a uma discussão de mais de uma década no âmbito da jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais e do Superior Tribunal de Justiça, que aplicavam a Súmula 323 do STF de forma irrestrita, entendendo que o ato de retenção de mercadorias, com a consequente exigência de recolhimento dos tributos complementares e multas ou prestação de garantia, se tratariam de meio coercitivo, sob o fundamento de que o Fisco possui mecanismos para a cobrança do exigido crédito tributário (STJ. AgRg no REsp 1227611/RS. Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima. 1ª Turma. DJe 25/03/2013; TRF1ªR. REOMS 10008585220194013502. 8ª Turma. Rel. Des. Fed. Marcos Augusto de Sousa. DJE 19.05.2020; TRF3ªR. ApelRemNec. 5001338-87.2018.4.03.6105. 4ª T. Rel. Des. Fed. Marcelo Mesquita Saraiva. DJE 26/05/2020; TRF4ªR. AC 5012159-83.2016.404.7208. 2ª T. Rel. Des. Fed. Rômulo Pizzolatti. DJE 18/04/2017).
De fato, no caso analisado pelo STF no Tema 1.042 não se aplica a tão invocada Súmula 323 do STF pelos importadores cujas mercadorias são retidas, uma vez que o prosseguimento do despacho aduaneiro de importação, com a liberação da mercadoria mediante recolhimento da diferença de tributos e multa respectiva ou prestação de garantia, são condições para o prosseguimento do despacho aduaneiro de importação e consequente desembaraço. Medidas nesse sentido não podem ser consideradas ilegais, tendo em vista que todos os tributos devidos devem ser recolhidos por ocasião do registro da declaração de importação (Lei nº 4.502/1964, artigo 26, I; Decreto-Lei nº 37/1966, artigo 27; Lei nº 10.865/2004, artigos 4º, 13, I; Decreto nº 6.759/2009, artigos 73, 107, 239, § 2º, 242, 252, I, 259).
Não obstante, a conclusão a que chegou o STF no julgamento do Tema 1.042 gera duas reflexões importantes.
A primeira tem a ver com a ausência de citação do embasamento legal para o condicionamento do desembaraço aduaneiro ao recolhimento da diferença de tributos e multas, incluindo a multa administrativa de 100% em virtude de subfaturamento, pois foram invocados apenas dispositivos do Decreto nº 6.759/2009, normas de hierarquia inferior à lei. Assim, se “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, artigo 5º, II), qual seria o fundamento legal para a retenção de mercadorias e consequente exigência de recolhimento de tributos complementares e multas ou a exigência de garantia como condição para o desembaraço aduaneiro?
A segunda questão tem relação com a distinção que deve ser feita quanto à exigência de crédito tributário e de multa administrativa ao controle aduaneiro das importações por ocasião do desembaraço aduaneiro, pois fora invocado no voto do ministro Marco Aurélio o artigo 571, §1º, do Decreto nº 6.759/2009, o qual menciona apenas exigência de “crédito tributário”, conceito no qual não se enquadram as multas administrativas decorrentes de infração ao controle aduaneiro. Assim, o precedente alcança também essas espécies de multa, tais como as multas previstas nos artigos 84 e 88 da Medida Provisória nº 2.158/2001, no artigo 69, §1º, da Lei nº 10.833/2003, e nos artigos 706 a 711, do Regulamento Aduaneiro?
No que tange a primeira questão, a exigência referida e o respectivo condicionamento ao desembaraço aduaneiro encontram respaldo em lei, e não apenas no Regulamento Aduaneiro. Conforme artigo 51, §1º, do Decreto-lei nº 37/66, não será desembaraçada a mercadoria cuja “exigência fiscal” relativamente a valor aduaneiro, classificação ou outros elementos do despacho, no curso da conferência aduaneira, esteja pendente de recolhimento, salvo mediante a prestação de garantia equivalente ao valor aduaneiro. Dispositivo semelhante há na Lei nº 9.019/95, nos artigos 3º, §§2º, e 3º, c/c artigo 7º, que se referem aos direitos antidumping, nos quais também se autoriza a retenção de mercadorias e se prevê a exigência de garantia como condição para o desembaraço aduaneiro. O artigo 39, do Decreto-Lei nº 1.455/76, por sua vez, dispõe sobre a exigência de garantia para “a liberação de mercadorias objeto de litígios fiscais, antes da decisão final”.
O Acordo de Facilitação do Comércio, aprovado pelo Decreto Legislativo nº 01/2016 e promulgado pelo Decreto nº 9.326/2018, está de conformidade com as normas referidas, pois, no artigo 7, itens 3.1. e 3.2., prevê como condição para o desembaraço aduaneiro: “a) o pagamento de direitos aduaneiros, tributos e encargos determinados antes da chegada ou no momento da chegada dos bens e uma garantia para qualquer quantidade ainda não determinada na forma de fiança, depósito ou outro instrumento adequado pré visto em suas leis e regulamentos; ou b) uma garantia sob a forma de fiança, depósito ou outro instrumento adequado previsto em suas leis e regulamentos”. No item 3.4 prevê que “nos casos em que tenha sido identificada uma infração que exija a imposição de penalidades pecuniárias ou multas, a garantia poderá ser exigida para as penalidades e multas que possam ser impostas”.
Desse modo, segundo a legislação, tratando-se da hipótese de retenção de mercadorias em virtude de pendência de recolhimento de tributos e respectivas multas (tributárias), há duas possibilidades para desembaraço da mercadoria importada: a) aceitação da exigência, mediante reconhecimento da necessidade de retificação da declaração de importação, efetuando o recolhimento dos tributos e multas devidos (Decreto-Lei nº 37/66, artigo 54; Decreto nº 6.759, artigo 570, §§ 1º e 2º); e b) não aceitação da exigência mediante manifestação de inconformidade, situação em que será efetuado o lançamento fiscal, porém a liberação da mercadoria somente poderá ser efetivada se prestada garantia equivalente ao valor aduaneiro (Decreto n 6.759/2009, artigo 570, § 3º). Sendo apresentada essa insurgência, o auditor fiscal efetua o respectivo lançamento, na forma prevista no Decreto nº 70.235/72, ou seja, lavra auto de infração no prazo de oito dias, e terá início o processo administrativo fiscal (Decreto-Lei nº 37/1966, artigos 94, 96, III, 118; Lei nº 9.430/1996, artigo 44; Decreto nº 6.759, artigo 725; IN SRF nº 680/2006, artigo 42, §§1º e 2º).
No que tange à segunda questão, que está ligada a primeira, o artigo 51, §1º, do Decreto-Lei nº 37/66, se refere a “exigência fiscal”, enquanto o artigo 571, § 1º, do Decreto nº 6.759/2009, citado no voto do ministro Marco Aurélio, menciona: “exigência de crédito tributário no curso da conferência aduaneira (…)”. Assim, ao regulamentar o decreto-lei, o Regulamento Aduaneiro especificou que se trata de exigência relativa a crédito tributário, que corresponde a “exigência fiscal”. O artigo 39, do Decreto-Lei nº 1.455/76 faz referência à garantia que pode ser exigida quanto a “litígios fiscais”.
Nesse contexto, surge dúvida quanto à abrangência da decisão objeto do Tema 1.042, pois o caso versa também sobre a aplicação da multa de 100%, prevista no artigo 88 da medida provisória, que não é uma multa de natureza tributária, observando-se que tributo não constitui sanção de ato ilícito (CTN, artigo 3º). Trata-se de uma multa administrativa, aplicada por infração ao controle aduaneiro (subfaturamento), que não é considerada crédito de natureza tributária (Lei nº 4.320/64, artigo 39, §2º), embora também seja inscrita em dívida ativa. Logo, tratando-se multa de natureza administrativa, decorrente do exercício do controle aduaneiro, o seu prévio recolhimento poderia ser exigido como condição para o desembaraço aduaneiro ou poderia ser exigida a prestação de garantia?
Conforme a decisão do STF no julgamento do Tema 1.042, a resposta seria positiva. No entanto, a questão carece de melhores esclarecimentos, por não se tratar a multa do artigo 88 da MP 2.158/2001 de crédito tributário, lembrando que o Direito Aduaneiro, no que tange às multas não tributárias, tem natureza extrafiscal. Assim, exigência de multa dessa espécie não poderia obstar o desembaraço aduaneiro tampouco caberia a exigência de garantia para se ultimar referido ato, ou seja, a multa deveria ser lançada em auto de infração e ser instaurado processo administrativo para sua cobrança, nos termos do Decreto nº 70.235/72. Assim, o Tema 1.042 deveria se aplicar somente quanto se tratasse de diferença de tributos e da respectiva penalidade tributária (Lei nº 9.430/96, artigo 44) e não abrangeria também as multas administrativas referidas.
Embora o acordo de Facilitação do Comércio estabeleça a possibilidade de exigência de garantia também em relação às multas administrativas, o que implica autorização para a retenção das mercadorias em caso de não recolhimento ou de não prestação de garantia, verifica-se, segundo seu artigo 7, item 3.1., claramente ser necessário que essa medida esteja prevista em lei. Conforme exposto acima, o artigo 51, §1º, do Decreto-Lei nº 37/66, o artigo 39, do Decreto-Lei nº 1.455/76, e o artigo 571, §1º, do Decreto nº 6.759/2009, tratam de exigência referente a crédito tributário, não abrangendo as multas administrativas aplicadas em virtude de infrações ao controle aduaneiro.
FONTE: Conjur – Por Vera Lúcia Feil Ponciano – 30/09/2020