O Judiciário convive com um problema de congestionamento de casos repetitivos. É o fenômeno da litigiosidade de massa, reflexo da massificação das relações, do acesso à informação e da globalização. As relações jurídicas passam a ter contornos semelhantes, exigindo soluções isonômicas para conflitos quase sempre da mesma ordem. Um exemplo interessante é o caso que envolve a propriedade da União sobre terras localizadas na Gleba Rio-Anil, localizada na ilha de São Luís, onde está sediada a capital maranhense de mesmo nome.
Em suma, diversos contribuintes têm questionado a propriedade da União sobre os imóveis que compõem a referida Gleba, circunstância que repercute, diretamente, na legitimidade da cobrança de taxa de ocupação e laudêmio sobre os referidos terrenos por parte da Secretaria de Patrimônio da União (SPU).
Sem adentrar propriamente nas minúcias da controvérsia jurídica, o fato é que, recentemente, as 7ª e 8ª Turmas do Tribunal Regional Federal da 1ª Região firmaram posicionamentos contraditórios a respeito do assunto, o que conferiu ainda mais insegurança para os moradores da capital maranhense, tornando imprevisível o destino de um número incontrolável de demandas judiciais com o mesmo fundamento de direito.
O direito fundamental à segurança jurídica no processo é elemento indissociável da ideia de processo justo
Tentando gerir problemas dessa natureza, o novo CPC consagra um microssistema de resolução de casos repetitivos. Dele fazem parte o incidente de resolução de demandas repetitivas e o julgamento dos recursos extraordinários e especiais repetitivos. As decisões tomadas no bojo destas técnicas possuem eficácia obrigatória. Tratam-se, pois, de precedentes vinculantes, instrumentos postos à disposição para superarmos litígios de massa.
Tudo é reflexo de uma tendência que há algum tempo vem se desenhando desde a emenda constitucional nº 45/2004 (reforma do Judiciário), que criou a repercussão geral no recurso extraordinário e previu a súmula vinculante, mecanismos vocacionados à solução de causas repetitivas. Após, o próprio CPC/73 sofreu alterações, com a previsão do antigo o art. 285-A (improcedência liminar) e do recurso especial repetitivo.
Há duas principais funções deste microssistema: i) gerir de forma eficiente causas repetitivas, evitando decisões conflitantes; ii) formar precedentes vinculantes. Vertem-se os olhos para uma técnica de uniformização da jurisprudência e garantia da isonomia e segurança jurídica.
O sistema de precedentes é regido pela necessidade de proteção às expectativas que surgem a partir da atuação dos tribunais. A garantia constitucional da segurança jurídica (art. 5°, caput) respeita não só à atuação do Legislativo, mas também do Judiciário, que desempenha atividade criadora de direito através das decisões que profere.
O direito fundamental à segurança jurídica no processo é elemento indissociável da ideia de processo justo. A segurança jurídica garante previsibilidade e estabilidade das relações, permitindo aos jurisdicionados que conheçam as soluções construídas pelo Judiciário para os conflitos vindouros. Tem por corolário, nesse sentido, a proteção da confiança. Ora, no momento em que o sujeito se depara com uma lide (pretensão resistida), a jurisprudência uniforme permite conhecer desde logo a possível solução que será adotada caso leve o caso à solução jurisdicional.
Por outro lado, o princípio da igualdade garante que situações semelhantes receberão solução semelhante. Assim, a jurisprudência uniforme dará tratamento isonômico aos casos análogos que se lhes apresentem, subsumindo-se a mesma regra do precedente anterior aos casos futuros.
A estruturação de um sistema de precedentes, pois, é fundamentada nos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia. Impõe-se aos tribunais a uniformização de sua jurisprudência, eliminando a divergência de entendimentos.
O dever de uniformização da jurisprudência pelos tribunais está inscrito no caput do art. 926 do CPC. Firma-se a preocupação do legislador com a racionalização dos entendimentos, indispensável para garantir a segurança jurídica, a proteção da confiança, a estabilidade e a isonomia, protegendo o jurisdicionado de um resultado imprevisível dentro do processo.
No caso de São Luís-MA, o vice-presidente do TRF 1ª Região, desembargador Federal Kassio Marques, após atuação conjunta da Procuradoria Regional da Fazenda Nacional e da Procuradoria Regional da União, decidiu selecionar oito recursos extraordinários como representativos para que a controvérsia seja definitivamente dirimida pelo E. Supremo Tribunal Federal, e suspendeu todos os processos pendentes que continham a mesma questão jurídica, em todas as instâncias.
Hoje, os cidadãos ludovicenses e a própria União aguardam, ansiosamente, por uma definição sobre o assunto, capaz de dirimir dúvidas que pairam não apenas sobre uma área ou sobre as centenas de milhões de reais em cobrança, mas, sobretudo, sobre a confiança e legitimidade que deve permear a relação entre o cidadão e o Poder Público. Estamos diante de uma excelente oportunidade para que o Judiciário brasileiro demonstre maturidade institucional, legitimidade democrática e boa técnica no manejo dos precedentes.
Por Manoel Tavares Netto e Murilo Teixeira Avelino
Manoel Tavares Netto e Murilo Teixeira Avelino são, respectivamente, especialista em direito processual civil e procurador-chefe da Defesa na PRFN 1ª região; mestre em direito processual civil e procurador-chefe da Divisão de Defesa de Segunda Instância na PRFN 1ª região.
Fonte: Valor-11/01/2019